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Âncoras e incógnitas no filme Malcon X de Spike Lee

Íris de Carvalho Sá Hoisel (PPGLL/Ufba)

 

Resumo: o artigo toma como foco as diferentes estratégias de construção de identidade que podem ser depreendidas do filme Malcom X de Spike Lee. Dois processos marcam essas estratégias: um processo de esvaziamento de significado, marcado pela imagem da incógnita e um processo de atribuição de sentido, marcado pela imagem da âncora.

Palavras-chave: diáspora, identidade, etnia, nacionalidade.

Abstract:this paper focuses on several identity constructing strategies that can be drawn from Spike Lee's picture Malcolm X. Two procedures mark these strategies: a process of significance drainage, marked by the image of an incognita and a procedure of ascribing sense, marked by the image of an anchor.

Key-words: Diaspora, identity, ethnic diversity, nationality.

Entre as metáforas do mar e do navio, Paul Gilroy desenvolve a noção de “Atlântico negro”, como configuração de um macrocosmo político e cultural, resultante da ação diaspórica da escravidão (GILROY, 2001). Em confronto com a fixidez das idéias de terra, território nacional e até de identidades cultural e étnica – quando compreendidas como elementos que atestam a integridade do nacional, – aquelas metáforas sinalizam fluidez, movimento, troca e dispersão. A diáspora negra, movimentada pelo comércio de escravos africanos desde o século XVI, marcaria significativamente o início de uma série de rupturas em idéias que atribuem um estatuto absoluto a noções de cultura, etnia e nacionalidade e que assombram o pensamento ocidental. As rotas percorridas pelos navios negreiros, que ligavam três pontos continentais, Europa, América e África, promoveriam, inevitavelmente, uma experiência de troca e de possibilidades de novas configurações territoriais e extraterritoriais entre esses três pontos de chegada e partida dos navios.


O momento da entrada nos navios marca o início de um processo de desterritorialização e de desidentificação [1] que se intensifica com o passar dos séculos de experiência de escravidão. Esse processo, porém, é simultaneamente acompanhado por dois outros que investem de maneiras diferenciadas sobre ele: o primeiro diz respeito à carga de significações atribuídas aos escravos africanos e, posteriormente, aos seus descendentes, pelo discurso do colonizador; o segundo corresponde à necessidade de âncoras lançadas pelos sujeitos escravizados e seus descendentes, no sentido de forjar identificações e de resistir ao e rasurar o discurso colonial. Este ensaio toma como foco a leitura destes três processos no filme Malcom X, de Spike Lee. Retomando o título, associo à incógnita o espaço em aberto deixado pelo primeiro movimento da migração forçada, quando os sujeitos são apartados de todo um conjunto que constituiria seus processos primeiros de identificação; à imagem da âncora sobreponho os processos de re-significação e construção estratégicas de identidades originárias.

Malcom X é um dos filmes mais marcantes na trajetória de um cineasta que podemos considerar como um ‘intelectual orgânico’ [2] das telas. A leitura da vida do líder negro norte-americano, além de bastante rica em dados biográficos, traz à cena a construção de um mito que habita o imaginário de um conjunto disperso de pessoas que, de alguma maneira, se identificam com a condição periférica [3]. Enquanto negro e norte-americano, Spike Lee pertence a esse conjunto. Não é à toa que, através de suas lentes e dos diversos recursos que a associação entre imagem, movimento e texto sobrepostos proporcionam, a predominância do mito faz-se evidente. Malcom X é o herói de uma espécie de “epopéia trágica”, através da qual acompanhamos toda a sua trajetória, desde a infância até o seu assassinato em 1965.

A primeira cena do filme é antológica e merece uma descrição minuciosa. Trata-se de um jogo de superposições discursivas. A imagem da bandeira americana, em tela inteira, é intercalada por uma seqüência de imagens do famoso espancamento de Rodney King, transmitido pela TV na ocasião. Na quinta vez em que a bandeira aparece, ela está pegando fogo aos poucos, a partir das bordas, e sua imagem continua sendo intercalada pelas cenas do espancamento. Cada vez que a bandeira aparece, a partir desse momento, o fogo em suas bordas começa a desenhar uma figura, resultando, ao final dessa seqüência, na imagem da bandeira americana, em chamas e em forma de ‘X’. O símbolo, evidentemente, não corresponde apenas ao nome próprio assumido pelo protagonista do filme, mas, de forma mais expressiva, à incógnita que esse nome representa. Tudo isso acontece ao som de um discurso inflamado de Malcom X, que tem como principal elemento uma crítica ofensiva ao homem branco e seus discursos de paz, harmonia, democracia e integridade nacional. Malcom X, nesse discurso, questiona o auto-reconhecimento dos negros como americanos, levando em consideração sua condição marginalizada em uma nação marcada pelo racismo.

A questão que se faz presente, nessa primeira seqüência de imagens, é a da experiência da dissociação entre a identidade étnica e a identidade nacional, vivenciada pelo negro, e, por outro lado, a profunda associação entre essas duas identidades, que prega o discurso dominante. O que há, portanto, é uma dissonância no discurso da integridade nacional, representada na marcação inflamada de seu símbolo por excelência, a bandeira. Esse símbolo é consumido – tomo licença para ler aqui um certo tom antropofágico – por um outro, a marca da incógnita, do indefinido, do desconhecido. A leitura antropofágica se justifica, pois a imagem da incógnita resulta da bandeira e, por isso mesmo, guarda seus vestígios. O ‘X’ final contém a bandeira, todas as suas cores e os rastros do seu desenho. Nesse sentido, o potencial perturbador da ordem nacional, que determinadas formas de ‘dupla consciência’ guardam, pode ser depreendido dessa imagem pela associação entre a marca ‘X’ do sujeito diaspórico e o símbolo da nacionalidade americana. Segundo Paul Gilroy:

Esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla consciência. [...] Onde os discursos racista, nacionalista, absolutista orquestram relações políticas de modo que essas identidades pareçam ser mutuamente exclusivas, ocupar o espaço entre elas ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado como um ato provocador de insubordinação política. (GILROY, 2001, p. 33-4)

Embora o eco dessa forma de dupla consciência não seja ouvido no discurso de Malcom X que acompanha a primeira seqüência de imagens do filme, ele está presente na sugestiva montagem das primeiras cenas descrita acima. A incógnita resulta da impossibilidade de retorno à origem perdida, mas também, da impossibilidade de um pertencimento tranqüilo às novas formas de identificação que se impõem. Os vestígios da bandeira, por outro lado, são marcas das irremediáveis contaminações promovidas pelo deslocamento.

Uma cena aparentemente insignificante sintetiza o impasse do discurso da nacionalidade, quando este precisa lidar com identidades étnicas minoritárias, que bordejam o discurso nacional, pois estão, simultaneamente, dentro e fora dele. Trata-se da cena em que Louis Kayos, ou Joe Louis, boxeador negro, vence uma luta. Sobre as imagens das eufóricas comemorações no Harlem e ao som do Jazz de Ella Fitzgerald, a voz de um apresentador de TV se impõe, anunciando, em tom entusiasmado, o acontecimento com as seguintes palavras: “Joe é um crédito para a sua raça. Que cavalheiro! Mas ele é também um bom americano. A bomba marrom. Joe Louis!” (grifos meu). O possessivo e a adversativa grifados são as marcações discursivas do impasse, dentro do discurso dominante, que lida com a identidade nacional como estável e inteiriça. O possessivo, além de marcar o lugar hegemônico da fala do apresentador, afasta, exclui, marca a ‘diferença racial’ de Joe Louis e dos moradores do Harlem. A adversativa, porém, reconhece Joe Louis, e não todos os moradores do Harlem, como ‘bom americano’. A necessidade do adjetivo talvez esteja sugerindo que Joe é americano por ser ‘bom’, embora seja negro.

O que veremos, já nas últimas cenas do filme, é que esse jogo específico de identidades, que Gilroy considera como uma forma de dupla consciência, será traduzido na denominação ‘afro-americano’, enquanto síntese das identidades étnica e nacional, mas também enquanto afronta às concepções absolutas de identidade. Depois do assassinato de Malcom, o discurso final em sua homenagem dá ênfase a essa denominação para designá-lo. Segundo esse discurso, Malcom deixou de ser nigger e se tornou um afro-americano, no sentido de que ele deixou de ser alguém que lida apenas com as identificações que lhe são dadas de antemão, por um discurso hegemônico, e passou a ser um sujeito que problematiza seus processos de identificação.

No decorrer do filme, presenciamos três momentos bem marcados na vida de Malcom. O primeiro deles nos apresenta o jovem Malcom Little alisando os cabelos pela primeira vez. Em toda essa parte do filme, conhecemos, em flashback, a sua história familiar: o destino trágico de seu pai, assassinado pela Ku Klux Klan, e de sua mãe, separada dos nove filhos por uma agencia estadual americana e internada num sanatório, e sua infância em meio a crianças brancas. Essas cenas estão sempre associadas a um acontecimento do tempo cronológico do filme, como recordações traumáticas do protagonista. O jovem que nos é apresentado, além de alisar os cabelos, namora mulheres brancas e se veste como ‘caipira’ – como eram considerados, inclusive por outros negros, aqueles que aderiam a moda dos ternos coloridos e dos chapéus com penas de aves. Antes de se envolver em negócios ilícitos, Little trabalha como servente de uma lanchonete que funciona num trem, tendo deixado para trás a intenção que tinha, quando criança, de ser advogado, graças aos desestímulos de um professor que, lançando mão do discurso de poder da divisão dos saberes, atribuía aos negros o dom de fazer, exclusivamente, coisas manuais e não intelectuais. A entrada para o mundo do jogo, do tráfico de drogas e do roubo traz como saldos, para o jovem, oito anos de prisão e o conhecimento do islamismo. O período da cadeia, no filme, assinala uma fase de transição para um segundo momento na vida de Malcom.

Quando Malcom Little sai da prisão, nasce Malcom X, o orador que falou às massas e ficou conhecido pela eloqüência e paixão do seu discurso de exaltação e afirmação do negro e pela pregação da violência contra a violência racial. Essa parte do filme é marcada pelo nascimento de um mito, tendo merecido uma cena digna de histórias fantásticas de super-herói. Este, porém, sem os superpoderes extraordinários, mas com poderes dentro da ordem do possível e, mais ainda, do plausível. Nessa cena, Malcom movimenta, a partir de um pequeno gesto com os dedos e sob os olhos estupefatos das autoridades oficiais, uma multidão de muçulmanos, em marcha, pelas ruas de Nova York. Essa segunda parte do filme, que inicia com sua entrada no islamismo, nos apresenta um homem que casa, tem filhos e se dedica à oratória e aos seus fins políticos e religiosos, que, nesse caso, estão associados. O fim desse período na vida de Malcom decorre, segundo o filme, de uma decepção com o líder da Nação do Islã nos Estados Unidos, Elias Mohamed, e alguns de seus seguidores, especialmente aquele que, pela primeira vez, na prisão, lhe apresentou o islamismo.

A segunda fase de transição é, mais uma vez, acompanhada da reclusão. Dessa vez, porém, a reclusão não é forçada, nem cercada de grades, mas fruto de uma escolha. Malcom viaja para a Arábia Saudita, na intenção de conhecer de perto o islamismo, e é apresentado a uma realidade que vai abalar suas concepções raciais extremistas e promover uma clivagem entre o seu discurso, enquanto seguidor de Elias Mohamed, e o seu discurso enquanto líder dissidente. A criação de sua própria ordem inicia o terceiro momento na vida do protagonista. Seus discursos, embora não exatamente pacifistas, perderão a fúria extremista que marcou os anteriores. Malcom continua a pregar a reação à violência perpetrada pelos brancos, mas também passa a considerar preconceituosas as idéias que atribuem qualificativos intrínsecos às pessoas de acordo com a cor de sua pele. Essa cisão será acompanhada por um cotidiano extremamente conturbado, ameaças constantes e atentados contra a sua vida, até o seu assassinato.

Para reafirmar a predominância da construção do mito Malcom X, no filme, a leitura das últimas cenas é fundamental. Começando pela seqüência do seu assassinato, Malcom pressente a sua morte, balbuciando: “É tempo dos mártires” e diz suas últimas palavras, de pé, no púlpito, como de costume: As Salaam Aleikam, saudação árabe que significa “Que a paz esteja convosco”. Após a saudação, tumulto e tiros. Um depoimento em preto e branco de Martin Luther King e uma seqüência extensa de imagens do Malcom histórico, também em preto e branco, acompanhada de um discurso veemente em sua homenagem, sucedem a cena do assassinato. A associação entre o enterro de Malcom e o plantio de uma semente é sugerida pelo discurso. Associação esta, que ficará ainda mais clara nas cenas posteriores à seqüência de imagens em preto e branco: uma passeata em que as pessoas levantam bandeiras com sua foto; a comemoração do aniversário do líder negro pelas crianças de uma escola que, após a homenagem da professora, levantam, uma a uma, repetindo a frase I am Malcom X; um discurso de Nelson Mandela em lembrança do companheiro de luta. Todas essas cenas descritas deixam transparecer a imagem do mito que, como tal, habita também o imaginário do diretor do filme, normalmente menos propício a construção de personagens honradas, do que degradadas por preconceitos de todas as naturezas.

Tendo discorrido sobre o enredo, podemos agora articular os processos identitários, anunciados no início deste ensaio, com mais desenvoltura. Uma questão se coloca diante do protagonista na prisão: “Quem é você?”, pergunta do mediador entre Malcom e o Islã que tem como resposta, “Sou Malcom Little”. Pela primeira vez, ele fica sabendo que esse é o nome que o senhor de escravos deu a sua família – o little é, nesse sentido, bastante significativo. Baines, seu companheiro de prisão muçulmano, insiste na pergunta e, na ausência de resposta, afirma: “Nem sabe quem é. É Nada. Menos que nada.” Essa estratégia de esvaziamento do sujeito, nesse caso, será o primeiro passo para problematizar seus processos de identificação. Não é à toa que o discurso colonial precisa simultaneamente esvaziar o sujeito colonizado de suas referências e preenchê-lo de novas significações, ou, de forma mais eficiente, atribuir valores negativos a suas identificações, dentre os quais encontram-se o adjetivo “primitivo’ e seus derivados perversos e aparentemente inofensivos. Faz-se necessário, a partir daí, aprender a lidar com o incerto, daí a adoção da incógnita ‘X’ como nome. Despojar-se de suas identificações é, no caso de Malcom, acima de tudo, abrir-se a novas possibilidades de subjetivação e por em suspenso cargas de significação que lhe foram atribuídas. É interessante lembrar que, nas recordações de sua infância numa escola de crianças brancas, Malcom afirma que era uma espécie de mascote, como um poodle rosa, porque era o único garoto negro na turma, e foi tão chamado de nigger que achava que esse era o seu nome.

Malcom adotará como âncora, para sua subjetividade à deriva, o islamismo, deslumbrado com a resposta de Baines para aquela pergunta enigmática, “Somos uma nação, a tribo de Shabaaz, perdidos nesse deserto, chamado de América do Norte”. O discurso do futuro companheiro muçulmano de Malcom se dá no pátio da prisão para um grupo de presos, todos negros, que ouvem atentos uma outra história sobre o negro. Baines afirma, com eloqüência: “Somos o homem original. Os primeiros homens da terra eram negros, eles mandavam. Não havia uma cara pálida em lugar nenhum. Mas nos ensinam que nos balançávamos nas árvores. Isso é mentira. O negro nunca fez isso. Éramos reis quando o branco chegou rastejando da Europa.” Nota-se, nesse discurso, uma inversão da ‘hierarquia racial’, o engrandecimento da história negra é acompanhado da depreciação do homem branco. Esse tabuleiro de xadrez irá atravessar os discursos mais extremistas de Malcom, a partir do que a dicotomia preto x branco será mantida, provavelmente como forma de virar o jogo. Embora não venha a pregar, como seu pai, o retorno físico ao lugar de origem, a África, Malcom vai se voltar para esse passado glorioso e iniciar a sua luta.

Essa atitude de se voltar ao passado como continuidade e extensão de uma cultura partilhada, verdadeira e una desempenhou papel fundamental nas lutas pós-coloniais, segundo Stuart Hall, e continua a ser “[...] uma força muito poderosa e criativa em formas emergentes de representação entre povos até agora marginalizados”.(HALL, 1996) Acontece que, segundo Franz Fanon: A colonização não se satisfaz somente em manter um alvo em suas garras e esvaziar o cérebro do nativo de toda alma e conteúdo. Por uma espécie de lógica pervertida, ela se volta para o passado dos povos oprimidos e o desfigura e destrói (apud, HALL, 1996).

Fanon ainda considera a necessidade de uma

[...] busca apaixonada [...] norteada pela esperança secreta de descobrir além das misérias de hoje, além do auto-desprezo, da resignação e da abjuração, alguma era muito bela e esplêndida cuja existência nos reabilita, quer em relação a nós mesmos, quer em relação aos outros (apud, HALL, 1996).

O sentido dessa busca, porém, não será encontrado numa arqueologia do passado que a colonização enterrou, mas na construção desse passado. Não se trata de descobri-lo, mas de recontá-lo. Nesse sentido, esse primeiro caminho de pensar a identidade cultural, como Hall sugere, tangencia uma segunda maneira de pensá-la, também sugerida por ele. Trata-se de enfatizar as diferenças que essa identidade comporta, considerando, agora, menos a questão “o que somos?” e mais a questão “o que nos tornamos?”.

Essas duas formas de pensar a identidade aparecem em um outro texto de Hall, sob as designações tradição e tradução (HALL, 2001). A tradição se refere aos processos de identificação que tentam recuperar uma unidade anterior perdida. A tradução, por outro lado, se refere à concepção de que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença, sendo impossível o retorno a uma unidade. Essas palavras comportam em sua imanência, em sua estrutura física, o jogo de Jacques Derrida com as palavras différence e différance, para designar uma acepção de diferença que não é pura alteridade (HALL, 2001). Trad(i)ção está para différ ence como trad(u)ção para différ ance.

A concepção de identidade enquanto tradução não ecoa muito nos discursos de Malcom. A década de 60 nos Estados Unidos ainda não era um terreno muito fértil para concepções instáveis, em devir, de identidades étnicas. Na terra do Ku Klux Klan esse período foi marcado pelas inúmeras repressões policiais a manifestações negras e pela necessidade, em contrapartida, de territorialização e de ancoragem de identidades minoritárias, como estratégia de afirmação étnica e coesão política. Embora o nome do protagonista e personagem histórico tenha incorporado a marca da fluidez através da incógnita ‘X’, o espaço em aberto foi preenchido por significados trazidos de um passado remoto e tomado como verdadeira origem do negro americano, o que configura uma concepção de identidade como tradição.

Isso não quer dizer, porém, que não possamos ler, na construção cinematográfica, a concepção de identidade tanto como tradição, quanto como tradução. Retomo aqui, novamente, a imagem inicial da bandeira em chamas e em forma de ‘X’ e o termo ‘afro-americano’, que aparece insistentemente no discurso final em homenagem a Malcom. Ambos são formas discursivas que sugerem contaminação, assimilação e não inteireza, fixidez, diferença radical.

Talvez seja necessário substituir o ponto final por reticências e conciliar dever de finalizar e hesitação em dizer. Trabalhar com conceitos que articulam, simultaneamente a questão racial, políticas minoritárias, concepções extremistas e relativistas, questões que despertam o mundo recôndito de paixões, recalques, desejos e interditos requer tanto palavras quanto silêncios.

NOTAS

1 Segundo informações do documentário Atlântico Negro, filme que se encontra no arquivo da videoteca do IRDEB, os africanos que eram comercializados como escravos, antes de embarcarem nos navios, passavam por um ritual que simbolizava o esquecimento. As três voltas em torno da ‘árvore do esquecimento’ deveriam fazer com que os indivíduos esquecessem o seu passado, para se tornarem escravos.

2 O conceito de intelectual orgânico foi assimilado da teoria de Gramsci pelos teóricos dos Estudos Culturais e implica em formas de aliança entre as práticas teórica, acadêmica e institucional e as políticas sociais ou, atualmente, as micropolíticas de identidades.

3 Na cena do documentário brasileiro, O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, um jovem morador de uma favela de Recife tatua no corpo a imagem de três ídolos, Che Guevara, Martin Luther King e Malcom X.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MALCOM X . Direção: Spike Lee. Roteiro: Arnold Perl e Spike Lee. Intérpretes: Denzel Washington, Angela Bassett, Albert Hall, Al Freeman Jr., Delroy Lindo, Spike Lee e Theresa Randle. EUA: Universal Pictures, 1992, videocassete (192 min.), VHS, son., color.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência . São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do patrimônio histórico e artístico nacional. Brasília, n. 24, 1996, p. 68-75.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

 





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