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A relação entre as construções de tópico e a posição dos clíticos no português europeu dos séculos XVIII e XIX

 

Edivalda Alves Araújo

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras e Lingüística da UFBA

edivaldaraujo@ig.com.br

 

 

Resumo

O objetivo deste estudo é avaliar a proposta de Raposo e Uriagereka (2004) em relação às construções de tópico e a posição do clítico. Para eles, o tópico não licencia a próclise por estar em adjunção a FP, o que o impede de ser um hóspede fonológico para o clítico. Eles acreditam que o português europeu, ao longo de sua história, tem em FP um traço [+afetivo] ou [-afetivo]. O traço [+afetivo] induz a próclise porque provoca o deslocamento dos operadores afetivos para Spec, FP, tornando-se eles um hóspede fonológico para o clítico; o [-afetivo] induz a ênclise porque é o verbo que se move para FP para hospedar o clítico. Mas o português europeu, diacronicamente, tem apresentado variação na posição do clítico: próclise generalizada no século XVI e ênclise generalizada no português moderno. Acreditamos que essa variação na posição dos clíticos com as construções de tópico está relacionada com a posição sintática que o tópico ocupava e que lhe permitia ser o hóspede fonológico para o clítico, mas nos séculos XVIII e XIX essa posição sofreu reanálise a partir da gramática do século XVI, e o tópico perdeu essa possibilidade.

Palavras-chaves: sintaxe; tópico; clíticos; diacronia.

 

Abstract

The aim of this study is to evaluate Raposo and Uriagereka’s (2004) proposal in relation to the topic constructions and the position of the clitics. To them, the topic doesn’t license the proclisis because it is adjoined to FP, what prevents it to be a phonological host for the clitics. They believe that European Portuguese, through its history, has had in FP both features [+affective] and [-affetive]. Feature [+affective] induces proclisis because it provokes the displacement of the affective operators to Spec, FP, constituting as a phonological host for the clitic; feature [-affective] induces enclisis because the verb is what has to move to FP to be the phonological host for the clitic. But, diachronically, European Portuguese has presented variation in the clitic position: generalized proclisis in 16th century and generalized enclisis in modern Portuguese. We believe this variation in the clitic position with the topic constructions is related to the syntactic position the topic occupied and that allowed it to be the phonological host for the clitics, but in 18th and 19th centuries this position underwent re-analysis, departing from the grammar of the 16th century, and the topic lost this possibility.

Key-words: syntax; topic; clitics; diachrony.

 

1. Introdução

 

Temos como objetivos neste trabalho (i) avaliar a proposta de Raposo e Uriagereka (2004) em relação às construções de tópico (do tipo CLLD e Tópico Pendente) e a posição do clítico, com dados do português europeu dos séculos XVIII e XIX constantes no Projeto Tycho Brahe[1]; e (ii) apresentar uma perspectiva de análise sintática para as construções em que se observa próclise com tópico. Os dados dos séculos XVIII e XIX parecem indicar que, na gramática do português desse período, a posição sintática que o tópico ocupava lhe permitia licenciar tanto a ênclise quanto a próclise. Embora a próclise apareça em menor escala com as construções de tópico nesse período, é ela que nos interessa porque acreditamos que é a partir de sua existência que se evidencia uma reanálise da posição sintática do tópico.

Na verdade, a possibilidade das construções de tópico com próclise remonta ao período do século XVI, quando se verifica próclise generalizada, como foi observado por Ribeiro (1995), em construções do tipo Topicalização V2. Nos séculos XVIII e XIX, entretanto, apesar de haver uma maior tendência para a ênclise com as construções de tópico, a próclise também é encontrada nesse tipo de construção, talvez como resquício da gramática do século XVI. Os dados de pesquisas realizadas sobre esse assunto parecem indicar que entre os séculos XVII e XIX ocorreram mudanças sintáticas que restringiram a possibilidade de a posição sintática do tópico licenciar a próclise e que derivaram o português europeu moderno, em que as construções de tópico licenciam somente ênclise (cf. Galves, 2001).

Nesse trabalho, defendemos que a posição sintática do tópico sofreu reanálise nos séculos XVIII e XIX a partir da gramática do século XVI, derivando a gramática do português moderno, em que não lhe é permitido licenciar a próclise.

 

 

2. O contexto teórico

 

Ao longo dos tempos, a relação entre as construções de tópico e a posição dos clíticos vem sofrendo modificações, como já foi observado por alguns autores, dentre eles Ribeiro (1995), Torres Morais (1996) e Galves (1998; 2001). Em geral, considera-se que o português europeu tinha em seu período arcaico construções de tópico com ênclise, passando a construções de tópico com próclise, no período clássico, chegando a construções de tópico com ênclise no período moderno.

Ribeiro (1996), por exemplo, observa que, no português arcaico, é possível encontrar dois tipos de construção com tópico a depender da posição do clítico: se ocorrer a ênclise, o constituinte fronteado é um tópico marcado; mas se ocorrer a próclise, o elemento fronteado é um tópico V2, típico das construções de topicalização V2, em que além da diferença na posição dos clíticos, tem-se também uma inversão na ordem dos constituintes, realizada em VS. Exemplo desse tipo de construção pode ser visto abaixo, extraído de Ribeiro (2001):

 

(1) E esto lhis fazia ele pêra lho agalardoar (DSG.1.22.7)[2]

 

observam-se aí o deslocamento à esquerda do objeto direto, realizado pelo pronome demonstrativo esto, e conseqüente inversão verbo-sujeito, fazia ele, e o clítico em posição proclítica, lhis fazia, diante de um tópico. Nesse tipo de construção X-VS, que caracteriza a topicalização V2, o clítico proclítico geralmente não é co-referencial ao tópico, como apresenta Ribeiro (1995).

Torres Morais (1996), na análise de textos dos séculos XVI e XVII, também observa que o português desse período, apesar de obedecer à restrição ao clítico em posição inicial da sentença, apresentava próclise em estruturas V2.

Galves[3] (1998) apresenta como exemplo da variação ênclise / próclise com construções de tópico a análise dos Sermões de Antonio Vieira, do século XVII. Nessa análise, Galves mostra que a ênclise aparece de maneira consistente quando o tópico é contrastivo; enquanto a próclise ocorre com os tópicos não-contrastivos, como se pode ver nos exemplos seguintes retirados por Galves dos Sermões de Viera:

 

(2) [p. 91] O Juiso com que Deus ha-de julgar aos que mandam e governam, ha-de ser um Juiso durissimo; porque aos pequenos conceder-se-ha[4] misericordia; porém os grandes e poderosos serão poderosamente atormentados: Potentes potenter tormenta patientur

 

(3) [p. 157] Deus vos livre de vossas boas obras, e muito mais das grandes; os peccados soffremol-os facilmente; os milagres não os podemos soffrer

 

(4) [p. 123] D'esta distincção que o Evangelista faz de livro a livros, se vê claramente, que o livro era da vida, liber qui est vitae, e que os livros eram da conta, porque pelos livros foram julgados os mortos: Et judicati sunt mortui ex his quæ scripta erant in libris.

 

 

Em Galves (2001), a autora reconhece que no século XVIII encontra-se uma variação na posição do clítico tanto com o sintagma inicial sujeito quanto com outro tipo de sintagma que antecede o verbo, como um argumento ou adjunto topicalizado, um advérbio, uma conjunção ou uma oração adjunta; o que parece evidenciar que o português do século XVIII, segundo a autora, encontra-se numa fase intermediária entre o português do século XVI e o português moderno.

Embora as autoras citadas acima trabalhem numa perspectiva de que a mudança na colocação dos clíticos esteja relacionada com traços de AGR em CP[5], há outras propostas que defendem que a colocação dos clíticos está relacionada com o componente fonológico e que a próclise ou a ênclise resulta de uma operação em PF (Phonetic Form[6]) para salvar a estrutura sintática, como a de Raposo e Uriagereka (2004).

Raposo e Uriagereka (2004) acreditam que entre CP e IP exista uma categoria funcional, FP[7], destinada aos elementos com função discursiva: alguns em adjunção, como o tópico; e outros em Spec, FP, como os operadores afetivos, dentre eles, os sintagmas quantificadores, sintagmas com operadores visíveis de foco, e elementos que codificam a polaridade de uma proposição, como os advérbios aspectuais , ainda, também, o morfema negativo não e outras expressões negativas, assim como expressões enfáticas e de perguntas. No núcleo dessa categoria funcional, como defendem os autores, o português europeu tem um traço [afetivo], f, um elemento clítico morfofonológico abstrato, que atrai o clítico. f pode ser forte ou fraco: se for forte, há deslocamento de operadores afetivos para Spec, FP, os quais servirão de hóspede fonológico para o clítico que a eles se adjungirá à esquerda; se for fraco, não há deslocamento de operadores afetivos na sintaxe visível, devendo o verbo ser movido para Spec, FP, como operação de último recurso, para ser o hóspede fonológico do clítico, salvando a construção em PF.

A base da proposta desses autores está em eles considerarem os clíticos como determinantes que encabeçam um DP[8]; sendo assim, eles não precisariam ser movidos para a checagem de traços morfológicos, porque poderiam ficar in situ do mesmo modo que os DPs plenos. Mas, por serem determinantes, assim como os artigos, os clíticos devem estar dentro de um grupo prosódico em forma fonética. Desse modo, o seu movimento se transforma numa operação de último recurso, não para checar traços, mas para evitar o fracasso em PF. Em termos mais precisos, o clítico deve ter um hóspede fonológico adjacente em seu domínio imediato de c-comando dentro do DP, onde eles são proclíticos. Os clíticos sofrem fusão com esse hóspede, sendo essa fusão uma operação morfológica do componente PF, que se aplica dentro de um ciclo fonológico, como se pode observar no seguinte exemplo:

 

(5) a. Não comprei [DP o carro vermelho]

 b. Não comprei [DP o vermelho]

 

 

Dado o devido contexto, em (5), o artigo determinante o é fundido com o seu hóspede, o NP carro. Na ausência do NP, o artigo funde-se com o AP vermelho, formando um grupo fonológico. Mas se não houver um hóspede interno ao DP, como em:

 

(6) *não comprei [DP o - ]

 

a derivação fracassa em PF, o que leva a uma operação de último recurso: o clítico se move para uma posição onde ele possa encontrar o hóspede apropriado para a sua fusão, de modo a evitar o fracasso:

 

(7) a. Não o comprei

 

com a seguinte representação:

 

Em uma sentença como a acima, em que a negação se caracteriza como o hóspede do clítico, o clítico se move para o núcleo de FP e se adjunge à esquerda do seu operador; mas em sentenças como em (8), abaixo, em que não há um hóspede para o clítico, depois que o clítico se move para o núcleo de FP, o verbo se move para Spec, FP, para ser o hóspede apropriado para o clítico:

 

(8) a. Comprei-o.

 

com a seguinte representação:

 

 

Essa operação evidencia que os clíticos determinantes se movem para uma posição onde seus requerimentos prosódicos sejam encontrados. Desse modo, a alternância entre próclise e ênclise resulta do atendimento aos requerimentos prosódicos do clítico. Como o resultado final da colocação dos clíticos está relacionado aos requerimentos de PF, Raposo e Uriagereka (2004) defendem que os clíticos são os últimos elementos a se adjungirem ao núcleo alvo.

Analisando os exemplos[9] abaixo, a partir da proposta dos autores, observamos que há coerência no que se refere à postulação desse traço afetivo, f, e à sua relação com os operadores afetivos, uma vez que a próclise estará justificada pela presença desses operadores em FP, os quais servirão como apoio fonológico para o clítico, bem como a ênclise nos casos em que o verbo se constitui como apoio fonológico para o clítico:

 

- Foco + próclise:

 

(9) ¡Quantas incoerências me achará Vossa Excelência, meu Pai! (MA.2.10.18)[10]

 

- Advérbios e operadores afetivos que induzem a próclise: também, já, só.

 

(10) e se as tenho às vezes em pouca conta, também me tenho a mim em pouca conta muitas vezes, porque conheço que me parece muito mal o que me pareceu bem outro tempo (AC.5.69.18)

 

(11) Fui para lá ontem às 5 horas da tarde e me vim embora à 1 hora da noite. (RO.37.154.19)

 

- NPs quantificados que induzem a próclise, como todos e ninguém:

 

(12) Lancei-me na política e enquanto cada qual achava que devia ter procedido à maneira que lhe indicava a própria fantasia, todos se retraiam, ninguém me ajudou. (OM.19.139.19)

 

- Contexto inicial à movimento do verbo para “salvar” o clítico e conseqüente ênclise:

 

(13) parece-me que entendo bem umas coisas e outras mal, e assim me parece que as entendem os outros... (AC.5.69.18)

 

(14) Assentou-se que o papagaio partiu para a América, a visitar os parentes. (CO.3.12.18)

 

 

 

3. O problema

 

Não há o que se discutir em relação aos operadores afetivos e a ocorrência de próclise, uma vez que o deslocamento desses operadores constrói o contexto favorável para o apoio fonológico para o clítico, o que implica que os requerimentos fonológicos para o clítico, nesse contexto, são satisfeitos em PF, como o demonstra a proposta de Raposo e Uriagereka, confirmada pelos exemplos em (9) - (14).

O problema que se verifica nessa proposta está em relação às construções de tópico, visto que, para esses autores, o tópico é gerado em adjunção a FP, o que não lhe permite “salvar” o clítico em PF. Ou seja, quando não há deslocamento de operadores afetivos, o tópico, por estar em adjunção a FP, não consegue salvar o clítico em PF, o que implica a subida do verbo, derivando a ênclise. Considerando que eles fazem uma abordagem que também pretende capturar os fatos diacrônicos, não é possível explicar como as construções de tópico podem favorecer a próclise de acordo com esse modelo, como se pode observar nos seguintes exemplos dos séculos XVIII e XIX:

 

(15) O moral lho ensinam as damas com o amor, e a teologia não é coisa de que se fale, achando-se absolutamente desterrada do mundo galante e moderno. (CO.37.180.18)

 

(16) Tudo o que entendem o entendem por si mesmos. (CO.1.6.18)

 

(17) Nada vi nem sei do que vem. Somente sei que lhe tinha encomendado para ti dous serviços de toalhas de mesa; e que ella me diz, como verás de um dos bilhetes, que só veio um. Esse um m'o mandou e eu t'o mando, e ficarás com elle se quizeres e se não quizeres, nada me importa, só me pezará se realmente é bello e bom e o não approveitares tu. (AG.93.82.19)

 

(18) Não vejo razões para que digas que não No entanto para meu governo telegrafa-me uma resposta - um simples sim ou não. Explicações as dará por escrito. (QM.Q.27.99.19)

 

(19) De sorte que, ou eu me engano, ou os defeitos que achaste no meu plano - os repetes no teu. (QM.Q.42.128.19)

 

Que os elementos em (15), o moral, (16), tudo o que entendem, (17), esse um, (18) explicações, e (19), os defeitos que achaste no meu plano, são exemplos de tópico parece ser fato inconteste, uma vez que há a retomada desses elementos por um clítico que lhes seja co-referencial, o que implica que eles são tópicos e não focos (cf. Raposo, 1986; Cinque, 1990; Rizzi, 1997; Brito, Duarte e Matos, 2003; sobre retomada de tópicos por clíticos).

Os exemplos em (15) - (19) parecem indicar que os tópicos podem ser um hóspede fonológico para o clítico. Mas é necessário considerar que existem tipos diversos de tópico e que nem todos podem ser o hóspede fonológico para o clítico. Parece que, para ser o hóspede, o tópico, assim como o foco, deve sofrer movimento (cf. Rizzi, 1997). Desse modo, há uma questão que se levanta aqui que pode ser fundamental para elucidar outros fatos: será o tópico realmente gerado na base ou sofre movimento?

Considerando as construções com tópico presentes nos dados e a sua relação com a posição dos clíticos, salientamos apenas dois tipos de tópico que apresentam comportamento sintático diferenciado: o Tópico Pendente, com ou sem retomada interna à frase, e o Deslocado à Esquerda Clítica (CLLD). Os dados indicam que o primeiro tipo de tópico, o Tópico Pendente, é gerado na base, enquanto o segundo, CLLD, sofre movimento (que também é corroborado por Rizzi, 1997; 2004; e Cecchetto, 2001). A diferença sintática entre esses dois tópicos é observada pela colocação dos clíticos. Nos primeiros, há sempre a ênclise; nos segundos, pode haver ou ênclise ou próclise, conforme os dados dos séculos XVIII e XIX. É o que se pode ver abaixo:

 

- Tópico Pendente:

 

(20) Quanto ao nosso Homem digo-vos que está-se nas tintas. (CO.16.98.18)

 

(21) mas eu parece-me que mais depressa isto será malícia dos que assim falam para confundir um com o outro, que nada se parecem. (MA.32.112.18)

 

(22) e quanto à companhia, seguro-lhe a Vossa Mercê que bem a desejara (AC.11.126.18)

 

(23) E quanto ao modo de remessa, far-me-ia[11] muito favor de mandar entregar esta bagatella em Londres por Francisco Wanzeller. (AG.107.95.19)

 

(24) Quanto ao caso - Paris, disse-me ontem o Barros Gomes estar decidida a tua nomeação: por isso o participei aos leitores do Repórter. (QM.M.17. 80.19)

 

(25) A respeito de Prado diz-me Queiroz: "Não sei se Você já o viu depois de casado. Se viu não lhe digo nada. Se não viu também lhe não digo nada". (RO.22.111.19)

 

 

- CLLD:

 

Com próclise:

 

(26) Logo que recebeu o sacramento, tanto eu como mana assentámos que todo o aparato destas funções, que é desnecessário a quem tem virtude e juízo, ... sem deixar intervir nenhum dos eclesiásticos que, sem método, pudessem abreviar a vida de minha Mãe. Para isto se necessitava valor, e Deus nos tem dado todo quanto é necessário. (MA.12.35.18)

 

(27) ... descobri o livro mais curioso, pouquíssimo conhecido aqui, desconhecido inteiramente em Portugal. Este livro são as memórias de um português chamado Pinheiro, que no século XVII, sob o reinado de Felipe III, isto é, sob o jugo da terrível dominação castelhana, vivia com vários outros portugueses em Madrid. Desse livro se depreende que os portugueses eram então estimadíssimos na sociedade espanhola. (RO.16.90.19)

 

(28) Então Moguel desencabrestou inteiramente, quis-se fazer mundano, principiou a tirar as camélias magníficas que estavam na corbeille do centro da mesa e a oferecê-las a torto e a direito às senhoras que não conhecia. (...)  Todo aquele escândalo monumental o dava por chic à sua moda, por despeito rancoroso, por despique, por dor de um pontapé no traseiro, o maior que de nós outros leva Castela depois de Aljubarrota. (RO.18.98.19)

 

(29) Não vejo razões para que digas que não No entanto para meu governo telegrafa-me uma resposta - um simples sim ou não. Explicações as dará por escrito. (QM.Q.27.99.19)

 

- Com ênclise:

 

(30) Ao amigo que prega os guardanapos grandes, sucedeu-lhe neste dia uma desgraça. Vindo da Favorita para a Assembleia, quebrou-se-lhe o coche e chegou a pé. (CO.4.31.18)

 

(31) Telegrafei para Paris imediatamente à Emília Resende e ao Rosa. A este pedia-lhe instantemente que me desse informações. (RO.31.135.19)

 

 

Os exemplos constantes em (20) – (25) e em (26) – (31) mostram que os dois tipos de tópico realmente se diferenciam. Nos primeiros, observamos que há somente a ênclise enquanto, para os segundos, existia a possibilidade de haver ou próclise ou ênclise. Em relação a estes últimos, a existência da próclise parece indicar que os tópicos da CLLD sofrem movimento para Spec, FP, de modo que o clítico poderia subir para FP porque lá os seus requerimentos fonológicos seriam satisfeitos.

 

4. A proposta

 

O fato de haver construções de tópico com a próclise nos leva a acreditar que este poderia sofrer movimento para Spec, FP, onde serviria como hóspede fonológico para o clítico. Tal fato não parece tão estranho, uma vez que se admite que o foco, por ser um operador afetivo, ligado ao discurso, sofre movimento, não há razão para não se admitir que também o tópico possa sofrer movimento, uma vez que também ele é ligado ao discurso, embora sem a força de um operador, típica de um foco.

O que defendemos aqui é que, entre os séculos XVI e XVIII, havia a possibilidade de o tópico da CLLD sofrer movimento para Spec, FP, uma posição que era, até esse período, destinada tanto aos elementos ligados ao discurso, como o tópico e o foco, quanto aos operadores afetivos.

Se o português europeu, ao longo de sua história, conforme o defendem Raposo e Uriagereka (2004), manteve, além do traço [-afetivo], o traço [+afetivo], sendo este o provocador do deslocamento de operadores afetivos aos quais o clítico se adjunge à esquerda, como explicar os casos em que o tópico licencia a próclise, não sendo este um operador afetivo? Levantamos duas possibilidades para explicar esse fato: ou o português europeu sofreu modificações nesse traço [afetivo]; ou a posição do tópico sofreu reanálise ao longo do tempo. A primeira opção não se justifica, uma vez que subsistem no português europeu moderno as duas possibilidades: o deslocamento de operadores afetivos para FP, como o foco, ou a sua ocorrência in situ. A segunda opção se revela mais apropriada porque os exemplos entre (15) – (19) indicam que o clítico está adjungido ao tópico, o que leva a se cogitar que a posição designada aos tópicos em FP podia não ser a de adjunção, mas interna a essa categoria, o que lhe permitia ser o hóspede fonológico para o clítico.

Considerando que a segunda opção seja a correta, acreditamos que o tópico poderia ser movido para Spec, FP, na ausência de um outro elemento, como o foco, por exemplo, o que lhe permitia salvar a construção em PF. Tomando o exemplo apresentado em (18), repetido em (32) por conveniência, teríamos a seguinte derivação:

 

(32) a. Explicações as dará por escrito.

       b. [FP [IP [VP dará [DP explicações as] por escrito]]][12]

       c. [FP explicações [IP [VP dará [DP as] por escrito]]]

       d. [FP explicações [F as [dará por escrito]]]

 

Havendo o movimento do tópico para Spec, FP, como se pode ver em (32c), o movimento do clítico para o núcleo de FP teria apoio fonológico, porque o tópico, nessa posição, serviria como hóspede para o clítico, satisfazendo os requerimentos em PF, como em (32d); o que implicaria que a construção seria salva pelo próprio tópico sem precisar do movimento do verbo como último recurso.

O mesmo procedimento poderia ser observado no caso de um DP complexo, ou DP grande (cf. Belletti, 2003), em que o clítico é o núcleo, tendo como complemento outro DP encabeçado por um determinante, como no exemplo (19), repetido em (33) abaixo:

 

(33) a. ... os defeitos que achaste no meu planoos repetes no teu. (QM.Q.42.128.19)

 

com a seguinte derivação:

 

(33) b. [FP [IP [VP repetes [DP1 os [DP2 os defeitos que achaste no meu plano]] no teu]]]

       c. [FP os defeitos que achaste no meu plano [IP [VP repetes [DP1 os [DP2 t] no teu]]

       d. [FP os defeitos que achaste no meu plano [F os [IP repetes [VP [DP1 t [DP2 t]] no teu]]]

 

 

Um problema que se levanta em relação à análise aqui proposta é nos casos em que há ocorrência dos dois elementos: o tópico e um operador afetivo. Se o tópico ocupa a posição de Spec, FP, para onde vai o operador afetivo? Ou ainda: para onde vai o tópico, quando o operador afetivo é movido para Spec, FP? Exemplos com a ocorrência simultânea de tópico e operador afetivo são apresentados abaixo (para melhor visualização, os tópicos estarão entre colchetes e os operadores afetivos, entre chaves):

 

(33) E [a culpa de Vossa Mercê não saber governar neste caso a sua paixão] {como} a chamaremos neste mundo, minha Senhora? (CO.3.11.18)

 

(34) [A história] {eles mesmo} a fazem. (CO.37.180.18)

 

(35) [As 3 caixinhas pequenas do Brasil] {} as recebi; mas uma coisa não tem nada com a outra. (AG.85.78.19)

 

(36) [Homens] {também} os não havia - uns tinham morrido na África, outros andavam rezando pelas igrejas de Lisboa. (QM.Q.54.145.19)

 

 

Esse problema de ocorrência simultânea do tópico e do operador afetivo numa mesma construção poderia se constituir um entrave para a análise aqui proposta, uma vez que não existe a possibilidade de ambos ocuparem a mesma posição em Spec, FP. Uma forma de resolver esse problema é acreditar que, quando há concorrência de dois elementos para a mesma posição – Spec, FP –, o primeiro a ser movido ocupa essa posição e o segundo adjunge-se a essa projeção funcional, estando fora do domínio dela, não podendo conseqüentemente ser o hóspede para o clítico. É o que ocorre nos exemplos em (33) – (36), em que os respectivos operadores como, eles mesmo, e também estão em Spec, FP, servindo como hóspedes fonológicos para o clítico aos quais este se adjunge. O tópico, em contrapartida, em função de Spec, FP, estar ocupado por um foco, vai para uma posição mais alta, não interferindo na colocação do clítico.

Com essa análise, entendemos que o foco ou qualquer outro operador afetivo seria o primeiro elemento a ser movido, ocupando Spec, FP, porque tem força de operador e, conseqüentemente, uma relação sintática mais forte com a frase do que o tópico; o tópico, em contrapartida, seria o segundo elemento a ser movido, indo para adjunção a FP. Tal fato se justifica se se considerar que o tópico está mais relacionado ao discurso, estabelecendo um elemento sobre o qual algo vai ser dito, o que implica que não tem força de operador, não podendo, portanto, controlar uma variável interna à frase.

Acreditamos, desse modo, que Spec, FP, poderia ser a posição do tópico nos séculos XVI e XVII, quando se encontravam em larga escala construções do tipo Topicalização V2 com o tópico seguido de próclise (cf. verificado por Ribeiro (1995)). Mas, nos séculos XVIII e XIX, começa a haver uma reanálise dessa posição, porque a geração destes séculos passou a interpretar a posição sintática do tópico apenas como uma adjunção a FP, sem a possibilidade de o tópico pousar em Spec, FP. A interpretação da posição do tópico como em adjunção a FP implica a não-ocorrência de construções de tópico com próclise porque, nesta posição, o tópico não pode servir de hóspede fonológico para os clíticos, daí se justifica nesses últimos séculos maior ocorrência de construções de tópico com ênclise.

 

5. Conclusão

 

Os dados de construções de tópico do tipo CLLD com próclise, presentes no corpus analisado, parecem indicar que essas construções no período dos séculos XVIII e XIX seriam remanescentes da gramática do século XVI, em que havia próclise generalizada, exceto nos contextos em que o verbo iniciava a oração. Além disso, os dados parecem sugerir que é nos séculos XVIII e XIX que começa a haver a reanálise e conseqüente mudança para a gramática do português europeu moderno, em que se estabelece a posição mais marcada do tópico, a de adjunção a FP. Daí resulta que, no português europeu moderno, a ênclise ou a próclise, além de ser conseqüência da satisfação dos requerimentos em PF, passa a ter uma relação direta com os elementos discursivos que antecedem o clítico: se tópico, obtém-se ênclise; se foco, ou outro operador afetivo, obtém-se próclise.

 


[2] O exemplo é dos Diálogos de São Gregório (DSG), texto do século XVI.

[3] O texto Sintaxe e estilo: colocações de clíticos nos sermões do Padre Vieira foi-me gentilmente cedido pela professora Dra. Charlotte Galves, da UNICAMP, e faz parte parte do projeto "Padrões rítmicos, fixação de parâmetros e mudança lingüística" financiado pela FAPESP ( Processo 98/03282-0).

[4] Os grifos são de Galves (1998).

[5] Para mais aprofundamento sobre o assunto remetemos às autoras citadas.

[6] Forma Fonética. Adotaremos aqui o procedimento de manter os rótulos sintáticos da gramática gerativa na sua forma em inglês.

[7] Essa categoria funcional foi proposta por Uriagereka (1995), onde FP representa Functional Phrase.

[8] DP = Determiner Phrase

[9] Exemplos retirados do corpus em análise

[10] A disposição da codificação presente nos exemplos é a seguinte: as letras inicias se referem ao nome do autor; os números que seguem se referem, respectivamente, ao número da carta, à página e ao século. Tem-se então: MA = Marquesa de Alorna; carta 2; página 10; século 18.

[11] Seguindo Raposo (2000), estamos considerando que a mesóclise é um subtipo da próclise.

[12] Optamos pela representação de modo simplificada, sem abrir as projeções por completo e sem apresentar todos as derivações, por uma questão de ênfase ao assunto aqui abordado.

 

6. Referências

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Corpus:

http://www.ime.usp.br/~tycho

 

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

ARAÚJO, Edivalda Alves. A relação entre as construções de tópico e a posição dos clíticos no português europeu dos séculos XVIII e XIX. In: Revista Inventário. 4. ed., jul/2005. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/04/04earaujo.htm.





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