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Não-coincidências do dizer nos Parâmetros Curriculares Nacionais:

a língua portuguesa em questão

 

Marcos Bispo dos Santos

Mestrando em Letras (PPGLL – UFBA)

 prof.msantos@uol.com.br

 

 

Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é mostrar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhe uma fugidia aparência.

 

Michel Foucault. Arqueologia do saber

 

 

 

Resumo

Este trabalho pretende apontar divergências entre o dizer e o fazer nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), no que diz respeito à constituição da disciplina Língua Portuguesa para o Ensino Médio. Para isso, confrontaram-se as motivações e os objetivos da reformulação do Ensino Médio contidas nas Bases Legais com as orientações estabelecidas nos PCN’s. Foram utilizadas algumas questões da prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) do ano de 2004 para asseverar as conclusões apresentadas.

 

Palavras-chave: Ensino de língua materna; Análise do discurso; Lingüística

 

Abstract

This work intends to point divergences between saying and making in the National Curricular Parameters (PCN’s), in that it says respect to the constitution of the discipline Portuguese Language in the High School. For this, the motivations and the objectives of the reformulation had been collated of high school teaching contained in the Legal Bases with the established orientations in PCN's. Some questions of the Enem (National Examination of High School) test, of the year 2004, had been used  to be sure about the presented conclusions.

 

Word-key: Teaching of maternal language – Discourse Analysis  - Linguistic

 

 

Introdução

 

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), de acordo com o Ministério da Educação e Cultura (MEC), constituem um esforço na tentativa de atualização da educação brasileira. Atualização necessária tanto para impulsionar uma democratização social e cultural mais efetiva, como para responder a desafios impostos por processos globais que têm excluído da vida econômica os trabalhadores, por conta da formação exigida de todos os partícipes do sistema de produção e de serviços. Outra justificativa para a necessidade de atualização, segundo o MEC, é a expansão exponencial do Ensino Médio brasileiro, razão pela qual esse nível de escolarização demanda transformações de qualidade para adequar-se à promoção humana de seu público atual.

 

A idéia central expressa na nova lei, e que tem a finalidade de orientar a transformação, estabelece o Ensino Médio como etapa conclusiva da educação básica de toda a população estudantil. Para o MEC, isso desafia a comunidade educacional a pôr em prática propostas que superem as limitações do antigo Ensino Médio, organizado em função de duas tradições formativas, a pré-universitária e a profissionalizante. Em lugar dessas tradições, fixa-se o postulado básico de se preparar o estudante para a vida.

 

Este suposto deslocamento suscita questões do tipo: Qual a concepção de vida subjacente a tal postulado? É possível conceber a vida humana fora do sistema produtivo em sociedades capitalistas? Este novo paradigma rompe efetivamente com o antigo Ensino Médio? Nesta conjuntura, qual seria o papel desempenhado pela disciplina Língua Portuguesa?

 

Estas questões e alguns de seus desdobramentos serão objetos de reflexão neste artigo, que se propõe a apresentar divergências entre o dizer e o fazer nos PCN’s. Vale salientar que o que estamos chamando de PCN’s aqui envolve, além dos Parâmetros propriamente ditos, as Bases Legais e os PCN+: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais.

 

 

1. A construção do ethos nos PCN’s

 

Um aspecto que chama bastante a atenção nos PCN’s é a contribuição de teorias lingüísticas diversas. Sem muito esforço, é possível identificar em sua formatação a vocação sociointeracionista que os caracteriza, coadunando aportes teóricos da Sociolingüística, Teorias Enunciativas, Lingüística Textual, além, é claro, da Gramática Tradicional.

 

O deslocamento conceitual operado na prática pedagógica referente à Língua Portuguesa – antes, centrada quase exclusivamente na Gramática Tradicional, agora, aberta às tendências contemporâneas da Lingüística – pode ser analisado e melhor compreendido à luz das determinações legais responsáveis pela reformulação do Ensino Médio no Brasil. É exatamente a partir daí que faremos uma descrição do processo de construção do ethos nos PCN’s.

 

Escrevendo sobre o ethos, D. Maingueneau (1997, p. 45,46) apresenta sua natureza na retórica aristotélica e os novos matizes que o conceito adquire ao ser incorporado pela Escola francesa de Análise de Discurso (doravante AD).

 

Na retórica antiga, a demonstração por ethos consistia nas propriedades utilizadas pelo orador para causar boa impressão de si ao auditório, para dar uma imagem de si capaz de convencer esse auditório e ganhar sua confiança, através do modo como se construía o discurso. Tais propriedades estavam relacionadas com o tom da voz, facilidade de comunicação, seleção lexical e argumentos, gestos, mímicas, direcionamento do olhar, postura etc. Nesta acepção, o ethos está ligado à própria enunciação e não a um saber extradiscursivo sobre o locutor. Não é a história deste que lhe garante a credibilidade, mas a sua habilidade na construção do ethos enquanto efeito discursivo.

 

Este fenômeno foi utilizado por O. Ducrot (1987, p. 188,189) para ilustrar a distinção entre locutor–L (o locutor enquanto tal) e o locutor–l (o locutor enquanto pessoa no mundo). Para Ducrot,

 

o ethos está ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, por contraponto, torna esta enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia dizer de si, enquanto objeto da enunciação, diz, em contrapartida, respeito a l, o ser no mundo, e não é este que está em questão na parte da retórica de que falo (a distância entre estes dois aspectos do locutor é particularmente sensível quando L ganha benevolência de seu público pelo próprio modo como humilha l: virtude da autocrítica). (loc. cit)

 

 

Nessa perspectiva, como se dá a construção do ethos nos PCN’s?

De acordo com o documento que apresenta as bases legais (Brasil, 2000a, p. 6) dos PCN’s, dois fatores foram preponderantes para uma nova configuração do Ensino Médio. Primeiramente, o fator econômico se apresenta e se define pela ruptura tecnológica característica da chamada terceira revolução técnico-industrial. Em segundo lugar, a denominada “revolução informática” promove mudanças radicais na área do conhecimento, que passa a ocupar lugar central nos processos de desenvolvimento em geral.

 

Diante desse quadro, o documento “propõe no Ensino Médio a formação geral, em oposição à formação específica; o desenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar informações, analisá-las, selecioná-las; capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples exercício de memorização.” (loc. cit)

 

Esta “formação específica”, ainda segundo o documento, foi empreendida no Brasil, na década de 70, com dois objetivos: formar especialistas capazes de dominar a utilização de maquinarias ou de dirigir processos de produção e visava a diminuir a pressão da demanda sobre o Ensino Superior.

 

O distanciamento do locutor, o MEC, em relação ao que é enunciado demonstra sua competência na construção do ethos. Ao contrastar o novo Ensino Médio com o antigo, o MEC coloca-se como o locutor–L. Apaga sua  história enquanto ser no mundo, no momento da enunciação e produz um discurso agradável ao leitor. O que diz de si mesmo, enquanto objeto da  enunciação, diz respeito a l, o ser no mundo. Assim, como o contato do leitor não é com o locutor-l , mas com o locutor-L, os PCN’s conseguem passar uma imagem de si capaz de convencê-lo.

 

Para Maingueneau (op. cit. p. 47,48 ), a AD só pode integrar a questão do ethos retórico, realizando um duplo deslocamento, abaixo transcrito:

 

1. precisa afastar qualquer preocupação “psicologizante” e “voluntarista”, de acordo com a qual o enunciador, à semelhança do autor, desempenharia o papel de sua escolha em função dos efeitos que pretende produzir sobre o auditório. Na realidade, do ponto de vista da AD, esses efeitos são impostos, não pelo sujeito, mas pela formação discursiva. Dito de outra forma, eles se impõem àquele que, no seu interior, ocupa um lugar de enunciação, fazendo parte da formação discursiva [...]. O que é dito e o tom com que é dito são igualmente importantes e inseparáveis. (grifos do autor).

 

2. a AD deve recorrer a uma concepção de ethos que, de alguma forma, seja transversal à oposição entre o oral e o escrito. A retórica organizava-se em torno da palavra viva e integrava, consequentemente, à sua reflexão o aspecto físico do orador, seus gestos, bem como sua entonação. Na realidade, mesmos os corpora escritos não constituem uma oralidade enfraquecida, mas algo dotado de uma voz [...]

 

 

Esta nova caracterização do ethos, mais ampla do que a teoria polifônica de Ducrot e não subjetiva, que permite a aplicação do conceito aos textos escritos, funda-se sobre um novo fundamento: o das formações discursivas, definidas por M. Foucault (2004, p. 133) como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa.”

 

Logo, não se trata de determinar quem diz o quê, mas de explicitar a posição que deve ocupar o sujeito para dizê-lo.

 

Correlacionado ao conceito de formação discursiva está o de discurso, que será entendido aqui na acepção foucaultiana como:

 

[..] um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, [...] é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que tem além do mais, uma história; [...] é de parte a parte histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (op. cit., p. 132,133)

 

 

Tendo em vista o discurso como histórico de parte a parte, uma análise da construção do ethos nos PCN’s sob a égide da AD não pode deixar de trazer à tona as contradições que permeiam a reformulação do Ensino Médio que, apesar de criticar acentuadamente o caráter propedêutico do antigo, incorre no mesmo erro que condena:

 

O Ensino Médio passa a ter a característica da terminalidade, o que significa assegurar a todos os cidadãos a oportunidade de consolidar e aprofundar os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental; aprimorar o educando enquanto pessoa humana; possibilitar o prosseguimento nos estudos; garantir a preparação básica para o trabalho e a cidadania; dotar o educando dos instrumentos que o permitam continuar “continuar aprendendo”, tendo em vista o desenvolvimento da compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos. (Brasil, 2000a, p. 9,100) (grifos meus)

 

 

É clara a continuidade da vocação propedêutica, embora o documento tente a todo momento convencer-nos de que o grande diferencial da nova proposta está na compreensão de que as competências desejáveis ao pleno exercício humano aproximam-se das necessárias à inserção no processo produtivo. Dessa forma, pretende nos fazer pensar que não é a educação que se submete ao sistema produtivo, mas que este se está humanizando.

 

A eficácia da imagem construída pelos PCN’s no campo do ethos enunciativo, seu suposto corte com o antigo modelo, suas aparentes transformações e seu pretenso surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo constituem, na realidade, um ajuste do sistema educacional para atender às demandas do sistema produtivo.

 

 

2. O dito e o feito

 

A língua nos PCN’s é definida como “a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los em sistemas arbitrários de representação que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida e sociedade.” (Brasil, 2000b, p. 5)

 

Partindo desse conceito de língua, os Parâmetros determinam que o ensino de língua materna deve centrar-se na aquisição e no desenvolvimento de três competências: interativa, textual e gramatical.

 

A competência interativa diz respeito a uma concepção de língua fundada nos princípios operadores da comunicação nas diversas trocas sociais de que os indivíduos participam. Comporta, dentre outras coisas, os temas da variação lingüística, da adequação do registro lingüístico à situação comunicativa. Para tanto, alunos e professores precisam ter clareza sobre as várias situações comunicativas de que participam: que discursos produzem, de onde, para quem, como, com que intenções.

 

A competência só pode ser pensada a partir da concepção de texto adotada pelos Parâmetros: “o texto é uma unidade lingüística concreta, que é tomada pelos usuários da língua, em uma situação de interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente de sua extensão”. (Brasil, 2000c, p. 77 )

 

A competência gramatical, finalmente, está bastante ligada à teoria da variação lingüística. Associando as abordagens descritiva e prescritiva da gramática, propõe substituir as noções de certo e errado, típicas da gramática normativa, pelas noções de adequação e inadequação, em virtude das situações comunicativas de que o falante participa. Por conta disso, esta competência perpassa tanto a competência interacional como a textual.

 

2.1 Conceitos estruturantes da disciplina

 

A Língua Portuguesa está organizada no PCN’s em torno de três eixos:

a) Representação e comunicação;

b) Investigação e compreensão;

c) Contextualização sociocultural.

 

Por razões de espaço, nossa discussão centrar-se-á apenas no eixo da linguagem como representação e comunicação. O eixo engloba os conceitos de: linguagem verbal, não-verbal e digital; signo e símbolo; denotação e conotação; gramática; texto; interlocução, significação, dialogismo; protagonismo.

 

2.1.1 Linguagem verbal, não-verbal e digital

 

A linguagem é tida nos PCN’s como todo sistema que se utiliza de signos e que serve como meio de comunicação. Outra definição presente no documento, e já vista neste trabalho, aponta a linguagem como a capacidade humana de articular significados e compartilhá-los em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade.

 

Essas definições envolvem três concepções distintas de linguagem: a linguagem como representação do mundo e do pensamento; a linguagem como instrumento de comunicação; a linguagem como forma de ação e interação.

 

Embora a terceira concepção seja, declaradamente, a norteadora dos PCN’s, sua articulação com as outras duas torna a língua nos Parâmetros um verdadeiro mosaico conceitual, e de certa forma incoerente, já que essas concepções são divergentes em muitos aspectos na história dos estudos lingüísticos.

 

A “capacidade humana de articular significados” pode ser relacionada com a langue saussuriana: “ela é a parte social da linguagem, exterior ao individuo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade.” (Saussure, 2004:21)

 

Para Bakhtin (1988), a significação na sociedade se dá por meio da ideologia. O “contrato”, de Saussure, não recebe a assinatura de todos os segmentos da sociedade, mas apenas a das classes dominantes. Uma prova disto está nas noções de adequação e inadequação delineadas na competência gramatical.

 

A existência de tais variantes demarca fronteiras sociolingüísticas que não apenas expõem formas diferentes de usar a língua, como querem demonstrar os PCN’s, mas denunciam desigualdades na educação oferecida às diferentes classes sociais.

 

A linguagem não-verbal aparece como pretexto para atividades de tradução intersemiótica, sem nenhuma menção ao seu valor como símbolo ideológico.

 

Por outro lado, a linguagem digital constitui mais um passo na direção do aprofundamento das desigualdades sociais. Afinal, quem, de fato, tem acesso a esse tipo de linguagem?

 

 

2.1.2 Signo e símbolo

 

Os PCN’s diferenciam signo e símbolo, considerando o primeiro como aquilo que significa, o componente da trama textual, a palavra; o segundo, por sua vez, está ligado a um sentido mais simbólico que o signo gera ao remeter a elementos extraverbais (MEC, 2000c, p. 59)

 

É visível a tentativa de reformular a dicotomia saussuriana entre o significante e o significado, só que a despindo de sua abstração característica em favor de uma abordagem mais concreta. Permanece a idéia de linearidade segundo a qual um determinado significante faria emergir um determinado conceito. Para Bakhtin, a relação do signo com seu exterior não é conseqüência de uma propriedade apriorística da linguagem, pois:

 

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito a critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. (op. cit., 32)

 

 

Este valor ideológico do signo é deixado de lado na abordagem dos Parâmetros, como se pode ver nesta questão extraída da prova do Enem/2004:

 

Cândido Portinari (1903-1962), em seu livro Retalhos de Minha Vida de Infância, descreve os pés dos trabalhadores.

 

Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. (...) Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Agarrados ao solo, eram como alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente.

(Cândido Portinari, Retrospectiva, Catálogo MASP)

 

As fantasias sobre o Novo Mundo, a diversidade da natureza e do homem americano e a crítica social foram temas que inspiraram muitos artistas ao longo de nossa História. Dentre estas imagens, a que melhor caracteriza a crítica social contida no texto de Portinari é

 

(A)

(B)

(C)

 

 

(D)

(E)

       

 

 

Apesar de mencionar o clichê “crítica social”, nenhuma relação é feita entre os signos e o sistema ideológico a que ele alude. Quem é o alvo dessa “crítica social”? Esse efeito de neutralidade dado ao sintagma passa a imagem de que o Estado não tem responsabilidade alguma com as condições de vida dos excluídos. As desigualdades sociais aparecem como um fenômeno natural. Algo que faz parte da natureza humana, como andar, comer, procriar. 

 

 

2.1.3  Denotação e conotação

 

 

A denotação é definida como o vínculo direto de significação, relação objetiva entre referência e conceito. Por conotação, entende-se o conjunto de alterações ou implicações que uma palavra agrega ao seu sentido denotado. (Brasil, 2000c, p. 60)

 

Em outras palavras, estes conceitos partem do seguinte pressuposto: o signo tem um significado literal, contudo possibilita ampliações de sentido, de acordo com o contexto situacional. Trata-se de um esforço na tentativa de sustentar uma teoria da significação pura, descontextualizada, positivista, linear.

 

O conceito de conotação foi usado na semântica americana por Bloomfield (Malmberg, 1971, p. 169), que tentava, dessa forma, explicar as representações secundárias evocadas pela palavra.

 

Que este princípio semântico seja aceito pela lingüística estrutural bloomfiediana, mecanicista, behaviorista, é perfeitamente compreensível. O que é bastante incoerente, no entanto, é a sua aceitação como conceito-chave numa proposta que se auto-intitula sociointeracionista, segundo a qual a significação não é dada a priori, mas construída na interação.

 

 

2.1.4 Interlocução, significação e dialogismo

 

Estes conceitos estão relacionados com a linguagem em uso. De acordo com os PCN’s, os sentidos e os interlocutores se constituem na interlocução. Compete aos professores de Língua Portuguesa propor situações que incentivem a produção de textos orais e escritos nos quais se considere: a situação de produção em que se encontram os interlocutores, a intencionalidade dos produtores e o público ouvinte ou o leitor específico.

 

Nesse sentido, a produção de textos se aproxima da teoria bakhtiniana da interação verbal, segundo a qual:

 

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente  o produto da interação do locutor e do ouvinte. [...] Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (op. cit. p.  113)

 

 

Entretanto, o problema que se coloca aqui, e que não aparece nos PCN’s, é: como se dá a construção do sentido na interação?

 

Para Bakhtin (op. cit. p. 118), não é tanto a expressão (objetivação exterior para outrem de um conteúdo interior) que se adapta ao nosso mundo interior, mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis.

 

Nesse sentido, o que se tem designado hoje de condições de produção textual está subordinado a condições de possibilidade, que, por sua vez, estão diretamente ligadas à noção de formação discursiva. Isto equivale a dizer que os sentidos não são construídos simplesmente pelas intenções dos locutores, mas que sua emergência é condicionada pelas formações discursivas nas quais esses locutores estão inscritos.

 

 

 

5.1.5 Texto e protagonismo

 

O conceito de texto adotado pelos PCN’s já foi apresentado quando falamos da competência textual. O de protagonismo está ligado à noção de sujeito: o aluno como sujeito da aprendizagem; a aluno/sujeito como fonte de seu dizer.

 

Nessa perspectiva, o aluno/sujeito, na sua relação com o texto, teria dois momentos de protagonismo: o da produção textual e o da recepção (leitura). No primeiro, ele seria o transmissor ou defensor de uma visão de mundo. No segundo, entraria em contato com outra transmissão ou defesa de visão de mundo. Subjazem a este teorema, portanto, uma linearidade e uma unidade do sujeito.

 

Ao longo deste trabalho vimos afirmando a importância do conceito de formação discursiva na constituição do sentido. As palavras, expressões, proposições etc recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. Se tal é a relação, como se caracteriza o sujeito e qual o seu papel na produção do texto?

 

M. Pêcheux (1995, p. 163) considera que a soberania do sujeito como origem do que diz constitui um idealismo. Para ele, esta evidência do sujeito se dá por meio de esquecimentos. Pelo esquecimento nº 2 – esta ordem de apresentação é dada pelo próprio Pêcheux – define que todo sujeito falante “seleciona” as coisas que diz no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase. Por outro lado, o esquecimento nº 1 está vinculado à noção de sistema inconsciente e dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina.

 

Dessa forma, a evidência do sujeito, ou melhor, sua identidade, resulta de uma identificação, que é o que constitui sua interpelação. Essa interpelação é viabilizada pela ideologia – produz o sujeito sob a forma de sujeito de direito (jurídico), que é justamente o sujeito responsável, o cidadão que os PCN’s querem formar. Sujeito ao mesmo tempo autônomo e determinado por condições externas.

 

Assim, tomar o texto como objeto empírico, portador de unidade de sentido, é tentar conferir ao sujeito uma unidade e autonomia que na prática não existem. Mesmo buscando a sua relação com outros textos, plano da intertextualidade, não é possível apreendê-lo em sua complexidade. Complexidade, aliás, resultante do fato de que os textos fazem parte de um universo bem mais amplo: o universo do discurso.

 

O discurso é uma dispersão de textos e o texto é uma dispersão do sujeito. Assim sendo, a constituição do texto pelo sujeito á heterogênea, isto é, ele ocupa várias posições no texto. Essas diferentes posições do sujeito correspondem a diversas formações discursivas. Isto ocorre porque em um só texto podemos encontrar enunciados de diversos discursos, que derivam de várias formações discursivas.

 

Vejamos agora, através da proposta de redação da prova do Enem/2004, como se dá a relação discurso – texto – sujeito.

 

Leia com atenção os seguintes textos:

 

Caco Galhardo. 2001.

 

Os programas sensacionalistas do rádio e os programas policiais de final da tarde em televisão saciam curiosidades perversas e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama de cidadãos humildes que aparecem nas delegacias como suspeitos de pequenos crimes. Ali, são entrevistados por intimidação. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre de fim de semana no bar da esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando.

Eugênio Bucci. Sobre ética e imprensa. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000.

 

Quem fiscaliza [a imprensa]? Trata-se de tema complexo porque remete para a questão da responsabilidade não só das empresas de comunicação como também dos jornalistas. Alguns países, como a Suécia e a Grã-Bretanha, vêm há anos tentando resolver o problema da responsabilidade do jornalismo por meio de mecanismos que incentivam a auto-regulação da mídia.

http://www.eticanatv.org.br

Acesso em 30/05/2004.

 

No Brasil, entre outras organizações, existe o Observatório da Imprensa – entidade civil, não-governamental  e não-partidária –, que pretende acompanhar  o desempenho da mídia brasileira. Em sua página eletrônica , lê-se:

Os meios de comunicação de massa são majoritariamente produzidos por empresas privadas cujas decisões atendem legitimamente aos desígnios de seus acionistas ou representantes. Mas o produto jornalístico é, inquestionavelmente, um serviço público, com garantias e privilégios específicos previstos na Constituição Federal, o que pressupõe contrapartidas em deveres e responsabilidades sociais.

http://www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br (adaptado)

Acesso em 30/05/04.

 

Incisos do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988:

 

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X –   são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

 

 

Com base nas idéias presentes nos textos acima, redija uma dissertação em prosa sobre o seguinte tema:

 

Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?

 

Ao desenvolver o tema proposto, procure utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo de sua formação. Selecione, organize e relacione argumentos, fatos e opiniões para defender seu ponto de vista e suas propostas.

 

 

 

O primeiro aspecto a ser abordado e que constitui, na realidade, uma contradição no que diz respeito à teoria dos gêneros textuais, refere-se ao texto que deve ser produzido: uma dissertação em prosa. Poderíamos nos perguntar: o que é uma dissertação em prosa? A que gênero pertence? O que impede que outro texto qualquer como um editorial, uma carta do leitor ou uma crônica argumentativa, por exemplo, seja uma dissertação?

 

O outro aspecto refere-se à seleção dos fragmentos de textos utilizados para fornecer ao aluno/candidato a chamada orientação argumentativa que deveria ser dada ao texto. Todos eles conduzem para a conclusão de que o governo garante a liberdade de imprensa, que, porém, deve ser usada com responsabilidade. E, o pior, esta falta de responsabilidade da imprensa já está causando prejuízo à sociedade.

 

O mais interessante em todo esse jogo é que, na verdade, o interesse do governo era proteger apenas a si próprio das reportagens que, pouco antes da realização das provas do Enem, mostravam denúncias originadas de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em curso no Congresso Nacional. Os integrantes dessa CPI tiveram acesso à movimentação de contas de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, e de Cássio Casseb, presidente do Banco do Brasil. Esses documentos chegaram às mãos de repórteres e ganharam enorme publicidade por retratar condutas pregressas potencialmente incompatíveis com o exercício dos cargos por Meirelles e Casseb. Para proteger-se, o governo tentou criar o Conselho Federal de Jornalismo, que teria a função de supervisionar a imprensa. Para a Revista Veja (Cf. Revista Veja, 18 de agosto de 2004), a criação desse Conselho teria, em sua essência, a finalidade de transformar jornalistas em propagandistas do governo.

 

Esse quadro aponta para formações discursivas divergentes. Entretanto a proposta apresentada ao aluno/candidato, fundamentada num documento que o concebe como protagonista do processo de produção textual, impede-lhe o acesso à formação discursiva oposta à formação governamental ao fornecer-lhe uma orientação que só lhe permite uma conclusão.

 

 

3. Considerações Finais

 

A necessidade de modernização do Ensino Médio, que motivou a reformulação das Bases Legais da educação no Brasil, é inegável. O esforço empreendido pelo MEC, traduzido nos PCN’s, promove deslocamentos conceituais importantes, se comparado ao antigo Ensino Médio.

 

Todavia, esses deslocamentos se efetuaram, prioritariamente, conforme foi mostrado neste trabalho, com uma intenção deliberada de adequar a sociedade às novas imposições do mundo produtivo.

 

A imagem de atualidade que os PCN’s construíram e depositaram na consciência dos profissionais de educação não subsiste a um exame atento e crítico de seus pressupostos.

 

Na realidade, não se pode analisar tais pressupostos do ponto de vista científico ou humanista. Trata-se, antes, de determinar a formação discursiva que lhes torna possíveis.

    

 

Referências

 

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud & Y. F. Vieira. 4. ed. São Paulo: Hucitec. 1988.

BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II.  Trad. E. Guimarães et al. Campinas, SP: Pontes, 1989.

BRANDÃO, H. N. Introdução à análise do discurso. 8. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002.

BRASIL. Ministério da educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais:  ensino médio, parte II – linguagens, códigos e suas tecnologias. 2000a

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais:  Bases legais, 2000b

BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. 2000c

DUCROT. O. Esboço de uma teoria polifônica da enunciação. In: __________. O dizer e o dito. Tradução Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987. cap. 8, p. 161-218.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

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COMO CITAR ESSE ARTIGO

SANTOS, Marcos Bispo dos. Não-coincidências do dizer nos Parâmetros Curriculares Nacionais: a língua portuguesa em questão. In: Revista Inventário. 4. ed., jul/2005. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/04/04msantos.htm.


 

 

 



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