Edições anteriores

 

 

 

 

Como citar esse artigo

 

Baixar o arquivo ou imprimir

 

O desenvolvimento da consciência cultural crítica como forma

de combate à suposta alienação do professor brasileiro de inglês

 

Sávio Siqueira

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação

em Letras e Lingüística da UFBA

 

saviosiqueira@oi.com.br

 

 

Resumo

O artigo pretende discutir o papel do professor brasileiro de inglês como língua internacional nos dias atuais. Buscando refletir sobre a necessidade de uma prática pedagógica adequada a este contexto e propondo mudanças de atitude e postura profissional que levem em consideração os aspectos políticos de se ensinar e aprender uma língua mundial, aponta-se o desenvolvimento da consciência cultural crítica como uma alternativa para atingir tal objetivo, assim como para desafiar rótulos como alienado, acrítico, apolítico, reacionário e conformista, dentre outros, comumente atribuídos ao profissional em questão.

 

Palavras-chave: Consciência Cultural, Inglês Como Língua Internacional, Prática Reflexiva, Pedagogia Crítica.

 

 

Abstract

The article intends to discuss the role of the Brazilian teacher of English in the current context of English as an international language. Reflecting upon the need for an appropriate pedagogy and also changes in attitude and professional posture which should take into consideration the political aspects of teaching and learning a world language, it appoints the development of the so called critical cultural awareness as an alternative to reach such an objective, and also to challenge labels such as alienated, acritical, apolitical, reactionary, and conformist, among others, commonly ascribed to the referred professional.

 

Key words: Cultural Awareness, English As An International Language, Reflective Praxis, Critical Pedagogy.

 

 

 

 

O professor de línguas é um mestre não

somente de uma língua, mas de uma cultura,

“uma forma de vida”.

Gee, 1988.

 

 

 

1.    Introdução

 

Em trabalho intitulado Alienação e Mimetismo Cultural no Ensino de Línguas Estrangeiras, Cruz pontua de forma provocativa que “o processo de globalização pelo qual passa a economia do nosso país corrobora o fenômeno de americanização do mundo” (CRUZ, 1999, p.43), chamando a atenção para o fato de que, pela herança de nação colonizada, nós, brasileiros, sempre valorizamos (e, provavelmente, continuamos a fazê-lo) o que vem do exterior. Em tempos mais remotos, a Europa era o centro de referência do desejo do estrangeiro; nos dias atuais, são os Estados Unidos, com seu poderio bélico e econômico, sua hegemonia cultural e toda sua prepotência política. Insistimos em minimizar o que é local, negligenciamos o que é próprio do nosso povo, e o que é pior, importamos modos, modelos pré-fabricados e formas de viver de culturas dos chamados países desenvolvidos sem a devida filtragem e o cuidado necessário com os efeitos que a adoção de tais hábitos, estilos e comportamentos pode acarretar às nossas vidas em todos os aspectos. Como lembra LEFFA (1999), somos eternamente criticados por copiar o que vem de fora e por promover uma imitação servil de outras culturas e a violação da nossa identidade.  

 

Trazendo essa perspectiva para a prática pedagógica de ensino de línguas estrangeiras, pode-se afirmar que há fortes e inegáveis indícios de que essa tendência de emulação da cultura do outro perdura até hoje. Sempre ouvimos o bordão de que não há como separar língua de cultura. A língua é o meio principal através do qual conduzimos nossa vida social. Quando usada em contextos de comunicação, aparece impregnada pela cultura das mais diversas e complexas maneiras (KRAMSCH, 1998)[1]. Passamos tais premissas adiante, buscando incutir na mente dos nossos alunos o alcance do seu significado, porém, infelizmente, parece que encampamos tal visão de forma unilateral, tomando como referência, na maioria das vezes apenas, a cultura alvo, isto é, aquela que está sendo estudada, principalmente se ligada a países economicamente poderosos e influentes. Em outras palavras, nos rendemos àquilo que GRADDOL (1997) chamou de o ‘poderio econômico’ das línguas. E assim, santificamos a língua, divinizamos a cultura (ou culturas) por esta representada.

 

Com a grande expansão e a consolidação do domínio do inglês como língua mundial, nós, professores de língua inglesa que trabalhamos em ambientes monolíngües e monoculturais como as salas de aula brasileiras, numa freqüência cada vez maior, somos favorecidos por este fenômeno, e ao que parece, nos colocamos como uma elite de profissionais, integrantes de um clube fechado que se mostram alheios às verdadeiras implicações, principalmente ideológicas, que cercam o ofício que abraçamos.

 

Se formos mais a fundo na questão, veremos que sinais são dados em todos os níveis do nosso trabalho. De forma imposta ou não, facilmente sucumbimos à ditadura do livro didático (embora não em todos os contextos)[2] e, juntamente com seus autores, em grande parte estrangeiros, enfatizamos, de maneira quase ostensiva, alimentando uma espécie de entocentrismo às avessas, os aspectos (normalmente, os positivos) da língua e cultura estrangeiras, sem sequer tentarmos promover a importantíssima relação dialógica entre cultura alvo e cultura materna. Fazemos o trabalho pela metade e embarcamos numa viagem perigosa, já que ao se adotar (mesmo que inconscientemente) ou se deixar levar por essa prática, fomentamos a já antológica alienação cultural do professor não-nativo de inglês que, não raramente, é estereotipado como americanófilo, apolítico, acrítico e reacionário, um legítimo representante do imperialismo ianque (COX e ASSIS-PETERSON, 1999).

 

Alguns estudos, de fato, apontam para uma possível alienação do professor brasileiro de inglês (MOITA LOPES, 1996; Cox e Assis-Peterson, 1999; 2001), onde parece emergir uma atitude exageradamente positiva, pouco crítica e de quase adoração pela(s) cultura(s) de língua inglesa, consolidando-se, assim, uma visão de reforço de valores neo-colonialistas, direta ou indiretamente, por parte desses profissionais. Como generalizações são sempre perigosas, é de suma importância debater-se o tema exaustivamente e, quem sabe, apontar alternativas que visem a uma tomada de consciência e, possivelmente, mudança de postura e atitude, caso tais argumentos se mostrem verdadeiros em toda sua amplitude. Se isto realmente vier a se concretizar, o desenvolvimento da consciência cultural crítica é um desses caminhos. Discutir esta alternativa é a tarefa a que se propõe este artigo. 

 

2.    O professor brasileiro de inglês é mesmo um alienado?

 

De acordo com o dicionário Aurélio, ser um alienado é ser um cedido, vendido, alheado. Em tese, quem não é alienado, é crítico, assume uma postura política diante de sua prática. Não é novidade no nosso meio de ensino de inglês como língua estrangeira abater-se uma crítica vigorosa diante da postura supostamente alienada e apolítica da maioria dos professores, onde a glorificação de culturas estrangeiras, principalmente as culturas americana e britânica, se tornou uma máxima. 

 

Mas será essa apenas uma percepção arraigada no inconsciente coletivo? Há indícios concretos de que somos mesmo um bando de cordeiros alienados, amantes e divulgadores do imperialismo americano e da terra de Sua Majestade? Dois estudos com professores de inglês fazem-se pertinentes mencionar: o primeiro, de Moita Lopes (1996), com aproximadamente cem professores de inglês de diversos segmentos educacionais (universidades, escolas de ensino médio dos setores público e privado e cursos livres), no qual o autor analisa a alienação e o ensino de inglês como língua estrangeira (LE), fazendo um contraponto com o ensino de cultura. Seguidas as fases da pesquisa, dentre algumas conclusões, podemos citar: uma preocupação genuína dos docentes com o ensino de cultura, embora de maneira assistemática, a escolha pela imitação perfeita do modelo do falante nativo no tocante à oralidade, o predomínio quase absoluto de referências aos Estados Unidos, a preferência por uma abordagem integrativa de ensino de língua e cultura e, finalmente, uma atitude exageradamente positiva em relação à cultura da língua alvo e negativa em relação à própria cultura, esta última totalmente calcada em estereótipos, onde aflora uma atitude racista e etnocêntrica. Em suma, o estudo de Moita Lopes aponta claramente para uma certa alienação do professor brasileiro de inglês e uma quase adoração pela(s) cultura(s) de língua inglesa.

 

O segundo estudo, conduzido por Cox e Assis-Peterson (1999; 2001), à luz da pedagogia crítica freiriana, analisou as respostas de vinte professores mato-grossenses por elas entrevistados. No bojo da discussão, as pesquisadoras provocam uma reflexão importante ao assinalarem que para muitos desses professores, ‘crítico’ se opõe a ‘mecânico’. Em outras palavras, a dimensão do que é ser crítico na concepção desses nossos colegas não vai além dos procedimentos e técnicas corriqueiras de sala de aula, perpassando por uma pedagogia aparentemente limitada e neutra: “Pedagogia crítica é você pensar: ‘Hoje minha aula não foi bem’... é isso, é o dia a dia que te incomoda no sentido positivo, te faz pesquisar, refletir sobre a sua própria ação” (Informante 18 apud Cox e Assis-Peterson, 2001, p.27).

 

A partir de respostas como esta, que naturalmente denotam um certo desconhecimento do que significa ser crítico, mas não necessariamente corrobora a adoção premeditada de uma postura consciente e deliberada de alienação, as autoras postulam que “a dimensão política do ensino de uma língua estrangeira é a grande ausência nessa concepção da pedagogia crítica” (Cox e Assis-Peterson, 2001, p.27), o que, fatalmente, desemboca numa certa neutralidade do professor de inglês, uma vez que, conforme Moita Lopes (1996), o docente está acostumado a ver o seu trabalho como uma atividade não-política, desprovida de valores ideológicos, muito mais ligada a metodologias pré-fabricadas importadas de países centrais.

 

Se concordamos com PENNYCOOK (1989) quando este afirma que é de suma importância enxergarmos a prática educacional, seja ela de qualquer natureza, como uma arena essencialmente política, é possível postular, como apontam os estudos citados, que os professores brasileiros de inglês ainda estão bem distantes desse choque de realidade. Grosso modo, pode-se argumentar que ainda regemos nossas classes como verdadeiras ilhas da fantasia, promovendo o que Cruz (1999) chama de uma ‘falsa felicidade’, criando artificialmente um ambiente idealizado, onde professores e alunos compartilham do belo, do fantástico, de um mundo perfeito em que o veículo de comunicação é a língua mais falada do planeta, a língua da “libertação”, da aproximação com os valores globais reinantes, do futuro promissor e da inclusão no admirável mundo novo tecnológico.

 

Desta forma, cada vez mais, pode-se perceber que são escassas as salas de aula de inglês como língua estrangeira (ou língua internacional) em que a dimensão política, principalmente no tocante à preservação e afirmação da nossa identidade e dos nossos alunos, dos nossos direitos lingüísticos e culturais, é levada em conta, debatida e cultivada. Entretanto, tal atitude que poderíamos cunhar de (neo)colonizada, como aponta Moita Lopes (1996), não surgiu simplesmente do nada. Para este autor, “os professores de inglês não estão sozinhos: esta parece ser uma posição latente no Brasil” (Moita Lopes, 1996, p.38), e embora sejamos criticados ferozmente por tal postura, nota-se que o caminho da conformidade e da acomodação é geralmente o escolhido.   

 

É nessa linha de raciocínio, então, que Cruz (1999) questiona de que forma nós, professores de língua estrangeira (o autor inclui também os de literatura), na nossa tarefa diária, podemos sair da zona de conforto, reagir a essa situação de apatia e aparente neutralidade e preparar os nossos alunos para o confronto com a língua e a cultura do outro. Um chamado como este nunca é demais, exatamente pelo fato de que, como dito anteriormente, por termos, ao longo da nossa história, desenvolvido uma admiração desmedida e, até certo ponto, atabalhoada, pelo que é estrangeiro, a postura do professor frente a novas culturas e como ele/ela as repassa aos seus alunos, pode sim, reforçar ou promover a transplantação de valores e comportamentos estranhos e inadequados à nossa realidade, além de solidificar uma visão míope, anacrônica e preconceituosa de que há culturas mais importantes ou melhores que outras. Em outras palavras, a experiência vem expondo no nosso meio marcas cada vez mais visíveis de uma espécie aculturação às avessas.

 

3.    Aculturação às avessas

 

BROWN (1980) define aculturação como o processo de se adaptar a uma nova cultura, uma reorientação de pensamento, sentimento e, se necessário, de comunicação. Ainda segundo este autor, tal processo emerge de forma mais drástica quando entra em cena a questão da língua: “Cultura é algo que está profundamente enraizado em cada fibra de uma pessoa, mas língua – o meio de comunicação usado pelos membros de uma certa cultura – é a sua expressão mais visível e disponível” (Brown, 1980, p.128). Nas mais diversas situações em que ocorre o ensino de LE, variados graus de aculturação podem acontecer, já que as pessoas aprendem uma determinada língua por uma série de razões. Nos diz Brown, então, que, devido a isso, o contexto de uma LE, ao contrário do daquele de uma segunda língua, está sempre muito mais carregado do componente cultural, uma vez que a língua é quase sempre aprendida numa situação de entendimento da cultura do outro.

 

É nessa ‘aventura’ de buscar o entendimento da cultura do outro que, ao longo do tempo, tem-se notado também dentro das salas de aula um crescente estado de idolatria pela cultura estrangeira, levando os professores a, além de não debaterem questões culturais de forma crítica, tornarem-se verdadeiros seres ‘re-aculturados’ na sua própria terra; em muitos casos, até assumindo apelidos ou pseudônimos na LE, chegando ao ponto de tal confusão atingir o nível da identidade dos indivíduos inseridos no processo de ensino e aprendizagem, em que não é raro surgirem personagens que costumam assumir um papel permanente se o fenômeno de negação da cultura materna se acentua. Desta forma, Raimundo se torna Raymond (ou apenas Ray), Rogério, Roger, Antonio, Tony, Bárbara, Barbie, e assim por diante. Brasileiros que escolhem ser conhecidos e chamados por nomes estrangeiros para, de certa maneira, deixarem-se engolfar por valores da(s) cultura(s) da língua que ensinam. 

 

Tal comportamento, fatalmente, influencia o aprendiz (em especial aquele em plena formação, embora não se deseje aqui argumentar que em todos os contextos ele exerce um papel passivo ao longo do processo) e orienta-o para uma pedagogia que pode levá-lo a um enorme e perigoso distanciamento da dimensão mais importante relacionada ao estudo de uma outra cultura, que é exatamente a adoção de uma nova maneira de entender e apreciar o estilo de vida, os costumes, os valores de outra nação, para junto com tudo isso, resgatar e entender mais profundamente a própria cultura (STERN, 1999). Infelizmente, e como pode-se constatar nos estudos apresentados, parece que no nosso contexto de país periférico, integrante do círculo expansionista da transnacionalização do inglês (KACHRU, 1995), principalmente no tocante aos professores, essa via, teoricamente de mão dupla, não se concretiza, e é sempre a cultura alvo que é apreciada, adorada e que fascina, sejam seus aspectos gerais ou específicos, regularmente apresentados de maneira superficial.

 

Na verdade, chega-se, em muitos casos, a alimentar e ratificar, mesmo que inconscientemente, uma espécie de culturicídio particular, uma vez que o que passa a ter importância é apenas o universo estrangeiro, e em tempos de tentativa de homogeneização cultural, em boa parte devido à onda globalizante de países como os Estados Unidos, o professor de inglês tem o privilégio de se encontrar, literalmente, no olho do furacão. O que ele faz dessa condição é o seu grande desafio, o seu dilema.

 

Essa postura de unilateralidade tende a garrotear a natureza intrínseca da maioria dos currículos, programas e materiais instrucionais do ensino de uma LE, o que, por sua vez, acaba favorecendo abertamente a cultura dos países dominantes, desprezando os valores e as riquezas das culturas locais. Assim como “duas línguas podem conviver harmoniosamente, na mesma pessoa, de maneira complementar, sem causar conflitos” (Leffa, 2003, p.16), o mesmo pode ser dito em relação a duas ou mais culturas, desde que estudadas e confrontadas em total equilíbrio de forças. Entretanto, o que salta aos olhos nas nossas salas de aula de inglês é uma prática exatamente inversa: o professor, mesmo o não-nativo mais brilhante, aquele voltado para o aspecto não-tecnicista da profissão, além de não exercitar a sua competência cultural crítica, parece não estar muito preocupado (ou não dispõe de tempo, devido às obrigações sufocantes impostas pelo cumprimento rigoroso do conteúdo lingüístico formal do programa) em proporcionar meios que privilegiem uma pedagogia orientada para uma tomada de consciência sobre a importância de ambas as culturas no processo de aprendizagem da LE. Destarte, a relação que aflora é sempre potencializada a favor da(s) cultura(s) alvo, emergindo, assim, com toda clareza, os rastros da aculturação às avessas do docente.

 

Por isso, o que se debate e se dissemina hoje em dia é que o professor de inglês, de forma deliberada ou não, tende a imobilizar o pensamento cultural crítico do aluno, e ao simplesmente seguir o livro didático cegamente ou se deixar levar pelo sentimento de idolatria da(s) cultura(s) alvo, ignorando o jogo ideológico do qual ao mesmo tempo participa como jogador e árbitro, abstém-se do salutar exercício de patrocinar o confronto sadio entre culturas, deixando seu aprendiz totalmente inerte, igualmente alienado e à mercê dessa eterna e renitente condição de inferioridade impregnada na alma dos povos oriundos de ex-colônias, como o Brasil. Isto é, atribui-se ao professor a atitude de reforçar o discurso de que existem culturas superiores, mais nobres, assim como a responsabilidade de não proporcionar ao seu aluno a oportunidade de este enxergar que culturas não são melhores ou piores que outras, mas diferentes. Se geral ou localizada, pouco importa; é preciso lutar para mudar tal atitude.

 

Se ensinar uma língua que representa apenas uma cultura é algo extremamente complexo, imaginemos o contexto de uma língua globalizada, tendo por trás não uma, mas inúmeras culturas nativas. É uma tarefa hercúlea, que exige preparo. Como assinala Leffa (2003), qualquer língua ao se globalizar perde sua uniformidade e tem, necessariamente, que incorporar a diversidade, não só lingüística como cultural. Com o inglês não está sendo diferente e a grandeza da sua condição atual está exatamente em poder fazer com que a diversidade lingüística reflita a diversidade cultural, e ele passe naturalmente a transmitir não uma cultura única, mas as mais diversas culturas, nativas ou não, consideradas de prestígio ou não. É aí que é preciso haver a ruptura. Acabar com essa noção de cultura de prestígio. E o professor de inglês, especialmente o não-nativo, não pode se eximir desse papel. Muito menos se tornar um sub-produto de aculturação às avessas, já que tudo isso reflete-se na sala de aula e na cabeça do seu aluno. Sem incorrer no erro de celebração romântica da cultura materna, devemos sim, estar conscientes de que por ensinarmos uma língua estrangeira, não precisamos ser mais ou menos brasileiros. Precisamos ser apenas brasileiros, com uma visão mais ampla e crítica do mundo.

 

Atualmente, os antropólogos evitam usar a palavra “aculturação” porque o termo denota certo preconceito, já que os atores envolvidos no processo experimentam mudanças culturais muito fortes, podendo atingir o ponto de perderem sua identidade. Entretanto, diante do contexto aqui descrito e da avassaladora influência de culturas hegemônicas como a americana em todo o mundo, talvez seja mesmo esta a palavra a ser empregada, apesar da carga negativa que ela carrega consigo.

 

Um sujeito aculturado de forma acrítica é algo muito problemático. E uma vez que culturas são pessoas, ele passa a ser um agente direto do que poder-se-ia chamar de um culturícido particular, fazendo-se uma alusão ao termo lingüicídio, cunhado por PHILLIPSON e SKUTNABB-KANGAS (1995). Se esse sujeito forma pessoas, a problemática toma proporções inimagináveis.    

 

4.    Linguicídio e cultiricídio

 

Phillipson e Skutnabb-Kangas (1995) definem linguicídio como a exterminação de línguas, associando o termo ao conceito de ‘genocídio’. Comparando este fenômeno com o processo de desaparecimento de uma língua (algo semelhante a uma morte natural), os autores afirmam que, no caso do linguicídio, há sempre a presença de um agente. Já no tocante ao desaparecimento, isso não implica necessariamente em um agente causal, mas é visto como algo que foge ao nosso controle.

 

O fenômeno de linguicídio pode ser catalisado por dois tipos de agentes: o ativo, aquele que tenta eliminar uma língua; e o passivo, aquele que deixa uma língua morrer. Transpondo-se este conceito para o âmbito da cultura, um suposto culturicídio quando praticado em aulas de língua estrangeira, onde a cultura-alvo é a única a se dar enfoque, revela facilmente o agente maior desse processo: o professor. É ele (ou ela) quem, ao agir de forma absolutamente acrítica frente aos valores, crenças e aspectos da outra cultura, assume um papel ativo no tocante à consolidação dessa visão apequenada, perniciosa, subordinada e paradoxalmente passiva em relação à proteção e ao resgate da sua cultura e de seus alunos. Em outras palavras, o professor pode se tornar o grande agente deste culturicídio particular no seu ambiente de aprendizagem, no seu contexto social, em seu próprio país. Por conta dessa atitude, como já enfatizado, muitos críticos colocam o professor não-nativo numa posição de neo-colonizado, paladino do imperialismo, o que não deixa de gerar muitas controvérsias. Afinal de contas, goste-se ou não, esse sentimento ainda persiste e não pode ser ignorado. Como lembra Edward SAID (1993), o fenômeno de descolonização não eliminou totalmente o imperialismo nem o tornou em coisa do passado: uma herança de fortes relações ainda une países subalternos aos grandes impérios. Um professor de LE, em especial uma língua como o inglês que assume um status de língua franca, não pode estar alheio a esta realidade, principalmente se ele é oriundo de uma cultura que herdou e se amalgamou a partir (e apesar) das marcas da colonização.

 

O estudo de uma língua (ou de uma literatura) estrangeira abre portas maravilhosas tanto para quem a ensina como para quem a aprende. Embora a relação de dominação entre povos seja algo que se possa pontuar ao longo da história em todas as partes do mundo, a sala de aula jamais poderá se tornar um locus em que se perpetue prática tão abominável, muito menos produzir agentes que a fomentem. Ao contrário, esse espaço privilegiado precisa ser dotado de sujeitos transformadores que possam, através do ensino de uma língua ou de uma literatura estrangeira, oferecer aos seus aprendizes um mundo novo e igualmente imperfeito, em contraste com a realidade em que estes vivem, levando-os a ser tolerantes para com as diferenças entre culturas, a entenderem melhor a cultura do outro. Acima de tudo, a resgatarem e valorizarem a sua própria cultura para, numa instância mais global, poderem se tornar cidadãos mais críticos, ou como assinala GIMENEZ (2001), “cidadãos planetários” que, através do domínio de uma língua de alcance planetário como o inglês, possam não somente ter acesso a bens materiais, mas também vivenciar experiências de trocas que estimulem o respeito mútuo por este mosaico infinito de povos e culturas do qual fazemos parte.

 

Logicamente, pode-se, até certo ponto, perceber um exagero ao aplicar-se o termo culturícídio à realidade de um país como o Brasil, detentor de uma herança cultural robusta e multifacetada, e que, a priori, não corre o menor risco de se apagar tão facilmente frente a outras, mesmo de alcance e poderio incontestáveis como a americana. Entretanto, se no ambiente de uma sala de LE, nós, os professores, notadamente acusados de alienados, elitistas e reacionários, agimos sem uma certa consciência crítica, estaremos fatalmente contribuindo para exacerbar esse sentimento crônico de inferioridade que muitas vezes externamos quando estamos diante de tudo aquilo que é estrangeiro. Isso precisa acabar.

 

Mesmo sendo improvável chegarmos a uma situação de completo culturicídio, ao nos aventurarmos a estudar e ensinar uma LE, é necessário estarmos sempre atentos à nossa responsabilidade como agentes transformadores para que, no exercício da nossa prática pedagógica, não nos encontremos diária e deliberadamente instilando no aprendiz pequenas doses de conhecimento superficial e etnocêntrico, cultuando valores, crenças e sentimentos que contribuam decisivamente para este processo de culturicídio, ainda que parcial (se desejamos ser otimistas), na nossa própria "casa", no nosso próprio contexto educacional e social.  

 

Mais que nenhum outro profissional, o professor de inglês, em especial o não-nativo, não pode fechar os olhos para essa realidade, já que o poder de alcance e a influência cultural que a língua que ele/ela ensina carrega hoje em dia é imensurável. Desta forma, num ambiente de formação, esse poder tem e deve ser calibrado e questionado o tempo inteiro. Por isso, faz-se imprescindível tomarmos conhecimento do que vem a ser uma língua internacional e as implicações para o processo pedagógico que tal condição exige, principalmente no tocante ao componente cultural, tão negligenciado e quase ausente das nossas salas de aula. Em suma, estamos conscientes do que significa ser professor de uma língua global?

 
5.    O inglês como língua internacional e o ensino de cultura

 

Ninguém refuta o fato de que o inglês se tornou o latim dos tempos modernos. Mas este não é um fenômeno que passa sem deixar marcas e sem exigir profundas modificações. Conforme escreve WIDDOWSON (1994, p.382), uma língua ao atingir tal status “serve uma quantidade significativa de comunidades diferentes e seus objetivos institucionais, e estes transcendem limites tanto comunitários quanto culturais”. Ao tornar-se uma língua franca, desmembrando-se em uma miríade de ‘ingleses’, o inglês não mais pertence a um grupo específico de falantes nativos, e nação alguma pode se arvorar em requerer custódia sobre a mesma (SMITH, 1976), até mesmo os Estados Unidos, a cultura dominante que o inglês atualmente representa com mais vigor e à qual as pessoas naturalmente o associam.

David CRYSTAL (1997), por sua vez, postula que uma língua se torna internacional por uma razão principal: o poder político de seus falantes – especialmente poder militar. A história está aí e jamais negou tais acontecimentos. À medida que o império se expande pela força militar, vários fenômenos de invasão e apropriação se materializam, sendo a adoção e/ou imposição da língua do invasor uma das faces mais visíveis e, em muitos casos, avassaladoras.  

 

Mas assim como oprime e contamina, uma língua internacional não passa totalmente incólume durante o seu processo de expansão. Ela se espalha de tamanha maneira que começa a sofrer influência dos mais diversos sistemas lingüísticos, ao mesmo tempo em que se embrenha por todos aqueles com que entra em contato. Não é à toa que o inglês, no seu momento atual, foi alcunhado de a língua ‘aspirador de pó’ (Crystal, 1999), por sugar novos elementos e variações que atuam no nível do léxico, da fonologia e até da sua sintaxe.

 

Assim como aprender uma língua internacional exige uma nova postura dos aprendizes, o mesmo pode ser dito em relação aos professores, principalmente no tocante ao ensino de cultura. No final dos anos 50 do século passado, POLITZER já argumentava que, como professores de língua, devemos ter o máximo interesse no estudo de cultura não porque queremos necessariamente ensinar a cultura de um outro país, mas porque, em tal contexto, é uma obrigação nossa fazê-lo. Se ensinamos uma língua, dizia o autor, e em paralelo não ensinamos a cultura na qual ela opera, estaremos ensinando símbolos desprovidos de significado ou símbolos aos quais o aluno associa significados distorcidos ou equivocados (Politzer, 1959 apud BROOKS, 1964).

Os professores que elaboram e trabalham com conteúdos culturais nas suas aulas, certamente, enxergam nesses materiais um fator de motivação extra para os seus alunos de LE, em especial aqueles de inglês (McKAY, 2001). Entretanto, à medida que a língua inglesa assume o papel de uma língua internacional, surge a questão sobre qual cultura se deve ensinar e como se deve abordar o tema na sala de aula.

 

Atualmente, o inglês é a língua nativa de mais de meio bilhão de pessoas oriundas tanto do centro quanto da periferia do globo. É a língua mais falada do mundo por não-nativos e, provavelmente, o único idioma que possui mais falantes não-nativos que nativos. São três falantes não-nativos para cada falante nativo. Ao se mundializar, o inglês avançou por muitas fronteiras geográficas, permitindo, até certo ponto, uma perda de identidade (Leffa, 2001), e provocando a desassociação do binômio língua-cultura no tocante aos lugares e aos povos que hoje o idioma representa, assim como da realidade por esses povos construída. Diante disso, pode-se argumentar, então, que é possível estudar inglês sem estar interessado na cultura de nenhum país de língua inglesa, isto é, apenas por uma motivação instrumental. E é o que cada vez mais vem acontecendo.

 

Contrapondo-se a esta premissa, há os que postulam que uma língua não pode ser ensinada sem o conhecimento e o interesse por sua cultura, onde, naturalmente, o processo seria regido por uma motivação integrativa, isto é, a vontade de conhecer, incorporar valores e quiçá pertencer a uma determinada cultura ou culturas. No ensino de inglês como língua internacional, mesmo sendo criticados por supervalorizarem a cultura estrangeira, não se pode afirmar com absoluta certeza que esta tem sido a abordagem preponderante encampada pela maioria dos professores. Todavia, no tocante ao componente cultural, a literatura tem mostrado que na sala de aula de LE ainda predomina um ensino esporádico, limitado ou quase inexistente (DAMEN, 1987; OMAGGIO HADLEY, 1993; Moita Lopes, 1996; etc).

Chamando a atenção para a necessidade de mudança de paradigma na relação língua internacional e o componente cultural, Smith (1976), há algum tempo, já fazia algumas considerações importantes, dentre as quais podemos citar:

a. aprendizes de uma língua internacional não são obrigados a internalizar as normas culturais dos nativos da língua-alvo;

b. a possessão sobre uma língua internacional desnacionaliza-se; 

c. o objetivo educacional ao se aprender uma língua internacional é habilitar os aprendizes a comunicar suas idéias e cultura para outras pessoas. 

 

Levando em consideração tal contexto, ALPTEKIN e ALPTEKIN (1984) argumentam que no processo histórico de ensino de inglês como LE, duas visões pedagógicas conflitantes têm se destacado: a primeira, encampada por professores nativos da língua-alvo, advoga-se a premissa de que o ensino deve tomar como referência as normas e os valores sócio-culturais de uma cultura de língua inglesa, com o objetivo de formar indivíduos bilíngües e biculturais. A oposta, defendida nos países onde o idioma é ensinado como LE, o ensino deveria ser independente do(s) contexto(s) cultural(is) nativo(s), com o objetivo de formar indivíduos bilíngües, mas não necessariamente biculturais. 

 

Desta forma, como ficam os professores de inglês diante do eminente conflito, principalmente aqueles professores de países periféricos? Ensinam a língua tomando como referência apenas a(s) cultura(s) nativa(s) ou optam por não ensinar cultura alguma? Por se tratarem de extremos, ambas as estratégias são incompletas e não recomendáveis.

 

Língua e cultura evoluem juntas numa mesma relação de significado. Segundo ROSALDO (1984 apud HINKEL, 1999), cultura é algo mais que um mero catálogo de rituais e crenças, e como defende McKay (2001), dissipando riscos que possam levar à notória alienação do professor de inglês, estudar para se conhecer uma determinada cultura, isto é, adquirir competência cultural, não significa incorporar essa cultura ou se comportar de acordo com suas convenções. A sala de aula precisa se transformar na arena onde tal discussão possa se realizar e a relação língua-cultura possa fluir de maneira dinâmica e significativa. Como enfatiza MENDES (2004), é preciso ensinar língua como cultura, de maneira ampla e crítica. O caminho que se abre nesta direção, sem que se abandone o exercício salutar de confronto entre culturas, converge exatamente para o desenvolvimento da consciência cultural crítica do professor que, ao exercê-la de forma sistemática, naturalmente, levará o seu aluno junto nessa viagem. 

 

6.    O desenvolvimento da consciência cultural crítica: um desafio para o professor

 

O inglês da forma que se expandiu representa mais de uma cultura. Como língua mundial, isto é ‘língua de ninguém’ (RAJAGOPALAN, 2004), muitas são as implicações para o processo ensino-aprendizagem desse corpo lingüístico gigante que se espalha por todos os cantos do planeta. Quem estuda o idioma hoje em dia, estuda que cultura(s) de língua inglesa? Que referenciais de países de cultura de língua inglesa são adotados, debatidos e confrontados por professores e alunos? Que materiais culturais são apropriados para tal contexto? Qual o impacto de tal condição na formação do professor de inglês? Quão preparados estão os professores de inglês como LE (ou LI) de países periféricos para abordar o componente cultural e fomentar o desenvolvimento das chamadas consciência e competência culturais do aluno?

 

Como vimos, é um erro achar que ensinar uma língua é um processo que pode se ancorar em neutralidade ou onde relações de poder e ideologia podem ser facilmente ignoradas. Segundo BYRAM, GRIBKOVA e STARKEY (2002), não há como ficarmos neutros nesse processo, uma vez que respondemos a outras culturas como seres humanos e não apenas como professores de língua. É preciso, pois, enfrentar de forma clara e realista o contexto que se consolida para o professor de inglês em todo o mundo. Estamos vivenciando momentos na nossa profissão em que se faz premente assumirmos a quebra de alguns cânones que ainda têm orientado nossa prática pedagógica. O professor não pode seguir alienando-se a fatores que cada vez mais exigem sua participação, não só como ser intelectual, mas, principalmente, político. Se essa alienação é endêmica, uma forma de combatê-la é exatamente através do desenvolvimento da consciência cultural crítica, que não só pode levá-lo a assumir uma nova postura, como, através de uma pedagogia adequada, alcançar o seu aluno, colocando-o no contexto não como consumidor passivo de conhecimento ‘cosmético’, vítima do que RIFKIN (2000) chamou de ‘capitalismo cultural’, mas um ser pensante ativo disposto a confrontar idéias, valores, padrões de comportamento de forma equânime, sem se deixar levar por complexos de inferioridade. Acima de tudo, ser capaz de comunicar sobre sua cultura materna na língua estrangeira alvo.

 

O desenvolvimento dessa consciência cultural crítica pode certamente levar ao resgate do professor como sujeito de transformação. Como diz SEVERINO (1996 apud Prefácio em VASCONCELOS, 2001), “nova ideologia exige uma nova escola”; um novo contexto do ensino de inglês exigirá um novo professor. A ele, apesar de um histórico de alienação e neutralidade, tal oportunidade não pode ser negada. 

 

No atual cenário, o ato de ensinar inglês não pode ser mais balizado pelo conceito limitado de ensinar uma LE fora de contexto e voltada para a(s) cultura(s) alvo, mas sim por princípios e implicações relacionados à condição de língua internacional que, mesmo para aqueles professores mais arredios e ainda adeptos de práticas aparentemente superadas, choques de mudança começam a soprar e a exigir uma re-orientação na postura do profissional. Nesse pormenor, McKay (2003) salienta que o fato de o inglês ter se tornado uma língua transnacional, estudada por milhões de pessoas como uma língua adicional, com o objetivo de comunicar informações sobre sua própria cultura para participar ativamente dessa comunidade global, irá, necessariamente, demandar que várias práticas consagradas pela pedagogia do ensino de LE sejam desafiadas.

 

É lógico que muitas dessas premissas são fincadas na noção de que o inglês deve obrigatoriamente estar ligado às culturas dos países centrais e que todos os modelos sejam baseados no falante nativo, o que começa a se romper com o novo cenário. McKay (2003) complementa, então, que num contexto de ensino de inglês como língua internacional, a relação língua e cultura, além de ser promovida de forma crítica, precisa ser repensada em toda sua extensão. CORTAZZI e JIN (1999) teorizam que o conteúdo cultural usado para o ensino de uma língua internacional deve ser trabalhado a partir de três fontes diferentes:

a. materiais da cultura nativa do aluno (source culture materials);

b. materiais da cultura alvo (target culture materials); ou seja, materiais que abordam a cultura de um país (ou países) onde o inglês é falado como primeira língua; e

c. materiais de cultura(s) internacional(is)(international target culture materials), isto é, materiais que abordem uma grande variedade de culturas de países que falam inglês ou não, em todo o mundo.    

 

Seguindo essa trilha pedagógica, é certo que o professor terá plenas condições de estimular e desenvolver sua competência cultural. Porém, como dito, não basta uma consciência cultural aguçada. Ela precisa, acima de tudo, ser crítica. Byram, Gribkova e Starkey (2002) assinalam que já é fato razoavelmente consolidado que para se aprender uma língua, o aluno não precisa apenas do conhecimento e habilidades lingüísticos, mas principalmente da habilidade para usar a língua de forma apropriada tanto social quanto culturalmente. Igualmente para TOSTA (2004, p.109), ao afirmar que “o ensino de língua estrangeira não pode limitar-se à transmissão de um conteúdo, ao contexto lingüístico”, e que é preciso ir além, o que naturalmente ocorre quando incluímos o componente cultural no currículo. Entretanto, como se sabe, há uma enorme diferença entre apresentar um conteúdo cultural de forma superficial e expositiva, e criar e usar meios e técnicas capazes de promover o desenvolvimento de uma consciência cultural que, segundo HUGHES (1986 apud Tosta, 2004), devem enfocar a percepção e compreensão crítica do aprendiz.      

 

Curiosamente, muito se escreve e se fala sobre o desenvolvimento de uma consciência cultural crítica do aluno como resultado da prática do docente. Inúmeras discussões dizem respeito a como o professor deve agir para se preparar para ensinar o seu aluno a desenvolver tal competência. E o professor, como ele se capacita (ou é capacitado) para esta tarefa? Damen (1987) dá algumas pistas nesse sentido, afirmando que o professor para atingir esse nível de capacitação, precisa se ver como um legítimo antropólogo. Na mesma linha de pensamento, McLEOD (1976) sugere que há algumas premissas básicas que podem ser bastante úteis para o professor de língua. Para a autora, a sala de aula é como um laboratório de aprendizagem cultural no qual tanto professores como alunos tornam-se aprendizes, viajantes culturais no mesmo nível. Só que o viajante que, digamos, está no leme do navio, não pode ser qualquer um, e como aprendiz, precisa também ser formado em bases que privilegiem o pensamento crítico e estejam ancoradas em uma pedagogia libertadora que o transformem tanto em produtor quanto em produto da história. Em outras palavras, há ainda lacunas enormes na formação do professor de línguas. A competência cultural crítica é uma delas. E ela não se constrói de uma hora para outra. 

 

Adentrando pelo universo de formação mais amplo, o professor de língua estrangeira precisa se enxergar não como um ‘dador’ de aula (Vasconcelos, 2001), mas um legítimo educador, um intelectual (GIROUX, 1997) capaz de não só ensinar as nuanças de um sistema lingüístico, mas, acima de tudo, tomar consciência de que é ator fundamental em um empreendimento pedagógico impregnado de valores culturais, onde forças se medem e se confrontam o tempo inteiro, e de que sua prática educativa precisa combater diariamente o conceito de educação bancária (FREIRE, 1970). Língua é e sempre foi sinônimo de poder e, hoje em dia, se o professor não for preparado de maneira competente para encampar uma prática transformadora e crítica, seus alunos estão fadados a repetirem o discurso igualmente conformista, neutro e apolítico dos seus mestres. Desta forma, se o aluno precisa ser amparado, o professor mais ainda. Cobra-se do docente o que raramente lhe é dado: meios de desenvolver sua competência cultural crítica. 

 

Consciência cultural crítica é a habilidade de avaliar criticamente e com base em critérios explícitos, perspectivas, práticas e produtos, tanto da nossa própria cultura e ambiente nativos quanto da cultura e ambiente do outro (Byram, Gribkova e Starkey, 2002). Portanto, o papel do professor é desenvolver não só habilidades, atitudes e consciência de valores como também o conhecimento sobre uma cultura ou país específicos. Parece tarefa simples, mas talvez aí resida um nó difícil de desatar, exatamente devido tanto à deficiência dos nossos currículos de formação básica quanto ao gritante despreparo em termos de conhecimentos gerais que constatamos nos docentes diplomados a cada ano. E diante de todo o bombardeio ideológico-cultural de países como os EUA, na América Latina, em especial no Brasil, o caminho mais ‘natural’ é o da réplica, do conformismo, atitude nada estranha a um sistema social que privilegia e prega a acomodação.

 

Mas nem tudo está perdido. Segundo Giroux (1997), evocando princípios da pedagogia crítica freiriana, precisamos exercitar a linguagem da possibilidade, a filosofia da experiência, a prática emancipadora. Se tais princípios se aplicam à educação como um todo, por que não ao ensino de uma língua que pode abrir portas e janelas para o mundo, ao mesmo tempo em que possibilita que mostremos ao mundo as nossas histórias? Há sempre tempo para essa reflexão.

 

7. Considerações finais

 

Ao longo do artigo, vimos que alguns estudos demonstram uma atitude alienada e apolítica do professor brasileiro de inglês. Vimos também que mesmo não sendo algo conclusivo, é preciso analisar com cuidado as razões para tal cenário. Julgamos o professor de inglês por sua postura supostamente subalterna, anglo-americana-conformista, sua perda de identidade diante da cultura do outro e sua inabilidade em proporcionar ao seu aluno uma prática orientada para o desenvolvimento da consciência cultural crítica. Denunciamos uma realidade aparentemente única, peculiar. Mas será que é isso mesmo? Será que só somos nós, professores de inglês, que sofremos a influência maléfica do imperialismo cultural dos novos tempos e dele nos tornamos agentes? É certo que não.

 

A questão é bem mais complicada do que aparenta ser. Contudo, alternativas de solução passam pelo mesmo caminho anteriormente citado, que se poderia chamar de o resgate do professor como agente de transformação. Como defende Vasconcelos (2001, p.156), não é preciso mudar apenas a prática, é crucial que busquemos “a prática consciente e voluntária, de caráter transformador”.

 

Para que se enxergue uma luz no fundo do túnel e que se proporcione ao professor de línguas o empoderamento de que ele necessita para exercer seu ofício de forma plena, tais discussões precisam emergir com mais freqüência nos cursos de formação de docentes, não só nas universidades, mas principalmente nos cursos de curta duração que preparam professores para ensinar em cursos livres e em escolas de língua, e que, em geral, enfocam pesadamente no ferramental prático, pragmático, voltado única e exclusivamente para o aspecto tecnicista da profissão. E, por ser esta a faceta que, infelizmente, vem se tornando a mais visível dentro da profissão, é a que prevalece e que marca de forma indelével um suposto distanciamento crônico do caráter político inerente a todo ato de ensinar.

 

Ensinar uma língua estrangeira nunca foi algo simples. Ensinar uma língua internacional que carrega no seu bojo valores imperialistas e poderosos como o inglês dos tempos atuais, nos coloca em uma posição ainda mais incômoda e vulnerável às mais variadas críticas, principalmente de colegas que ensinam línguas que outrora desfrutavam de status semelhante ao que hoje detém o inglês. MOTA (2004) alivia a tensão de toda essa controvérsia propondo uma abordagem multiculturalista e anti-mimetista para o ensino de línguas estrangeiras. Devidamente antenada com os movimentos emergentes em muitas partes do mundo, onde têm aflorado reações à homogeneização e hibridização culturais promovidas pelos tsunamis globalizantes dos EUA, a autora defende uma pedagogia de LE calcada em currículos multi-referenciais que incorporem discursos historicamente silenciados e que valorizem a voz do sujeito/professor e do sujeito/estudante (Mota, 2004). Isto é, uma prática pedagógica voltada para o respeito da cultura e da identidade, para o desenvolvimento da consciência crítica, tanto do aluno quanto do professor, e que os faça refletir sobre suas histórias, seus relatos pessoais, a multiplicidade de identidades e suas possibilidades de transformação social (Giroux, 1997).

 

Como foi dito, a sala de aula de LE é uma arena privilegiada para tal tarefa. O que precisamos fazer é dar condições ao professor, mesmo aquele considerado alienado, americanófilo e vendido, de se sentir estimulado a mudar de postura, de pensar em igualdade, confronto saudável de culturas, em uma pedagogia voltada também para a positividade e para a paz (GOMES de MATOS, 1996; 2004). Mas como alerta Vasconcelos (2001, p.157), “não adianta o professor fazer uma série de atividades diferentes se não mudou a postura”. Será o novo feito com o espírito velho, uma prática desprovida de reflexão, enfim, um processo igualmente alienado (Vasconcelos, 2001). Ao professor tem que ser dada a chance de mudar, mas ele/ela também precisa querer mudar, uma vez que não se constrói um sujeito crítico; ele faz-se crítico por sua própria e vontade única.   

 

A busca pelo outro fascina, abre caminhos, encurta distâncias, aproxima culturas diferentes, irmaniza o mundo. Porém, tal processo só será legítimo e verdadeiramente justo quando esta for uma relação de paridade, sem oprimidos nem opressores. Não há nada mais gratificante do que aprender e ensinar uma língua e cultura estrangeiras. Ao exercermos tal atividade, crescemos como gente, e que privilégio ser neste contexto aquele que abre os portões para essa aventura. Entretanto, se não usarmos esse conhecimento e essa experiência ímpares para melhor conhecermos a nós mesmos e ao outro, para valorizarmos, amarmos e preservarmos cada vez mais a nossa herança cultural e influenciarmos os nossos alunos de maneira crítica, estaremos fadados a uma mera prática mecânica de transmissão de informações frágeis, sem significado e inúteis, carregadas de (pré)conceitos e estereótipos. Fatalmente, cairemos na neutralidade de opinião, no ostracismo, na superficialidade, no enciclopedismo vazio, na aridez intelectual, numa total pobreza de espírito.

 

Enfim, vivemos numa nova ordem mundial em que ensinamos uma língua de alcance planetário representada fortemente por uma cultura hegemônica, mas que ao mesmo tempo corporifica a possibilidade singular de abraçar tanto a diversidade lingüística quanto cultural de povos do mundo inteiro. Nós, professores de inglês, temos um papel fundamental nesse processo, e para seguirmos adiante, plenamente conscientes de que estamos contribuindo para o desenvolvimento da humanidade, precisamos, urgentemente, como recomenda Rajagopalan (2001), nos livrar do complexo de culpa de que estamos a serviço de alguma força imperialista. Se ainda temos exemplos de docentes de inglês que encampam uma postura neutra, apolítica, acrítica e alienada na condução de seu ofício, que sejam então convidados a se transformar não a partir da censura aberta e recriminatória, mas através do acolhimento e da reflexão. Como categoria profissional, precisamos nos reciclar não apenas em técnicas de sala de aula, mas, principalmente, no tocante à nossa formação geral que, a cada dia que passa, torna-se mais multi-facetada. Talvez estejam faltando nos nossos seminários, congressos e encontros de professores de línguas maiores oportunidades para que assuntos como este sejam trazidos à baila e discutidos abertamente, enfocando, dentre outros temas, o desenvolvimento da consciência crítica do professor de inglês como língua global. Assim, com certeza, seremos capazes de derrubar os rótulos que porventura ainda nos perseguem e, sem culpa alguma, juntos, numa trajetória de paz e transformação, contribuir para formar os cidadãos críticos que o mundo atual tanto necessita e carece. 

 

Abril de 2005


 

Notas

[1]Todas as citações em inglês foram traduzidas pelo autor.

[2]Agradeço ao (à) meu (minha) parecerista anônimo (a) por essa e outras observações.

 

 

Referências

ALPTEKIN C. E ALPTEKIN, M. The question of culture: EFL teaching in non-English speaking countries. ELT Journal, 38, Vol. 1. 1984. p.3-10.

BYRAM M., GRIBKOVA, B. E STARKEY, H. Developing the intercultural dimension in language teaching: a practical introduction for teachers. Council of Europe, Language Policy Division, Strasbourg, 2002. Disponível em: <http://lrc.cornell.edu/director/intercultural.pdf>. Acesso em: 25 jun 2003.

BROWN, D. H. Learning a second culture. IN: Principles of Language Learning and Teaching. Englewood, NJ: Prentice Hall Regents, 1980.

BROOKS, N. Language and language learning: theory and practice. 2nd edition. United States: International Thomson Publishing, 1964.

CORTAZZI, M. & JIN, L. Cultural mirrors: materials and methods in the EFL classroom. In: HINKEL, E. (Ed.). Culture and second language teaching and learning. United States: Cambridge University Press, 1999. p.196-219.

COX, M. I. P. & ASSIS-PETERSON, A. A. de. O professor de inglês: Entre a alienação e a emancipação. Linguagem e Ensino, Vol. 4, No. 1, 2001. p.11-36.

COX & ASSIS-PETERSON. Critical Pedagogy in ELT: Images of Brazilian Teachers of English. TESOL Quarterly, Vol. 33, No. 3, 1999. p.433-452.

CRUZ, D. T. Alienação e Mimetismo Cultural no Ensino de Línguas Estrangeiras. In Estudos Lingüísticos e Literários, No. 23-24:43-58, jun-dez, 1999.

CRYSTAL, D. The Future of Englishes. English Today 15/2, 1999. p.10-20

CRYSTAL. English as a global language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

DAMEN, L. Culture learning: The fifth dimension in the language classroom. Reading, MA: Addison-Wesley, 1987.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

GIMENEZ, T. ETS and ELT: Teaching a world language. ELT Journal, Volume 55/3, July 2001, Oxford University Press, 2001. p.296-297.

GIROUX, H. Os professores como intelectuais – Rumo a uma pedagogia crítica de aprendizagem. Tradução Daniel Bueno. Porto Alegre: ARTMED, 1997.

GOMES DE MATOS, F. Como usar uma linguagem humanizadora: orientação para professores de língua estrangeira. In MOTA & SCHEYREL (Org.) Recortes Interculturais na sala de aula de língua estrangeira. Salvador: EDUFBA, 2004. p.21-34.

GOMES DE MATOS. Pedagogia da positividade – Comunicação construtiva em português. Recife: Editora da UFPE, 1996.

GRADDOL, D. The future of English? A guide to forecasting the popularity of the English language in the 21st century. The British Council. London: The English Company (UK) Ltda, 1997.

HINKEL, E. (Ed.) Culture and second language teaching and learning. United States: Cambridge University Press, 1999.

KACHRU, B. B. World Englishes: Approaches, issues, and resources. In: Brown & Gonzo, Readings on SLA. New Jersey: Prentice Hall, 1995. p.229-259.   

KRAMSCH, C. Language and culture. Oxford, UK: Oxford University Press, 1998.

LEFFA, V. O ensino do inglês no futuro: da dicotomia para a divergência. In:

STEVENS, M. C. T & CUNHA, M. J. C. Caminhos e colheita: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília: Editora UnB, 2003. p.225-250. Disponível: <www.leffa.pro.br/ingles_no_futuro_hp.pdf>. p.1-26. Acesso em: 30 mar 2005.

LEFFA. Aspectos políticos da formação do professor de línguas estrangeiras. In: LEFFA, V. (Org.). O professor de línguas estrangeiras: construindo a profissão. v. 1, Pelotas, 2001. p.333-355. Disponível em: <www.leffa.pro.br/formação.htm>. p.1-15. Acesso em: 28 jul 2003.

LEFFA. O ensino de línguas estrangeiras no contexto nacional. Contexturas, APLIESP, n. 4, 1999. p.13-24. Disponível em: <www.leffa.pro.br/ensinole.pdf>. p.1-15. Acesso em: 05 abr 2005.

McLEOD, B. The relevance of anthropology to language teaching. TESOL Quarterly, Vol. 10, No. 2, 1976. p.211-220.

McKAY, S. L. Toward an appropriate EIL pedagogy: re-examining common ELT assumptions. International Journal of Applied Linguists, Vol. 13, No. 1, 2003. p.1-22.

McKAY. Teaching English as an international language: The implications for cultural materials in the classroom. TESOL Journal, Winter 2001. p.7-11.

MENDES, E. Abordagem Comunicativa Intercultural (ACIN): Uma proposta para ensinar e aprender língua no diálogo de culturas. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2004.

MOITA LOPES, L. P. de “Yes, nós temos bananas” ou “Paraíba não é Chicago, não”: Um estudo sobre a alienação e o ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil. In L. P. de Moita Lopes (Ed.), Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. p.37-62.

MOTA, K. Incluindo as diferenças, resgatando o coletivo – novas perspectivas multiculturais no ensino de línguas estrangeiras. IN: MOTA & SCHEYREL (Org.) Recortes Interculturais na sala de aula de língua estrangeira. Salvador: EDUFBA, 2004. p.35-60.

OMAGGIO HADLEY, A. Teaching language in context. 2nd Edition. Boston: Heinle & Heinle, 1993.

PENNYCOOK, A. The concept of method, interested knowledge, and the politics of language teaching. TESOL Quarterly, Vol. 23, No. 4, 1989. p.589-618.

PHILLIPSON, R. & SKUTNABB-KANGAS, T. Linguicide and Linguicism. IN: Globalization and Learning. The Third Oxford Conference, 21-25 September 1995, New College, Oxford, UK,1995.

RAJAGOPALAN, K. The concept of ‘World English’ and its implications for ELT. ELT Journal, Vol. 58/2, April 2004. Oxford University Press, 2004. p.111-117.

RAJAGOPALAN. Critical pedagogy and linguistic imperialism in the EFL context. ELT. TESOL Journal, Winter 2001. p.5-6.

RIFKIN, J. The age of access: The new culture of hypercapitalism, where all of life is a paid-for experience. New York: Jeremy P. Tarcher, Putnam, 2000.

SAID, E. W. Culture and Imperialism. New York: Vintage Books, 1993.

SMITH, L. English as an international auxiliary language. RELC Journal 7/2, 1976. p.38-43.

STERN, H. H. Issues and Options in Language Teaching. ALLEN, P. & HARLEY, B. (Ed). Hong Kong: Oxford University Press,1999.

TOSTA, A. L. de A. Além de textos e contextos: língua estrangeira, poesia e consciência cultural crítica. IN: MOTA & SCHEYREL (Org.) Recortes Interculturais na sala de aula de língua estrangeira. Salvador: EDUFBA, 2004. p.107-141.

VASCONCELOS, C. dos S. Para onde vai o professor? Resgate do professor como sujeito de transformação. São Paulo: Libertad, 9 ed, 2001.

WIDDOWSON, H. G. The ownership of English. TESOL Quarterly, 28, 1994. p.377-88.

 

 

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

SIQUEIRA, Sávio. O desenvolvimento da consciência cultural crítica como forma de combate à suposta alienação do professor brasileiro de inglês. In: Revista Inventário. 4. ed., jul/2005. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/04/04ssiqueira.htm.




 

 

 

 

 



Os conceitos emitidos em artigos e resenhas assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito do Conselho Executivo e dos autores dos artigos e/ou resenhas.