As
estratégias
discursivas na
construção
do
sujeito
histórico,
através
da
literatura
engajada de José Saramago, Uanhenga Xitu e
Severo
D’Acelino
Rosemere Ferreira da Silva
Mestranda do
Programa de Pós-Graduação
em Letras e
Lingüística da UFBA
roserosefr@zipmail.com.br
Resumo
O
artigo
pretende
discutir
as
estratégias
discursivas usadas
para
a
construção
do
sujeito
histórico
em
O
conto
da
ilha
desconhecida,
de Saramago,
Mestre
Tamoda,
de Uanhenga Xitu e
Negra
Conceição: a
guerreira
de
Mulungu,
de
Severo
D’Acelino.
Busca
ainda
destacar
o engajamento
literário
dos
intelectuais
citados
como
forma
de auto-reflexividade e de desconstrução de
verdades
absolutas na
literatura
contemporânea.
Palavras-chave:
Literatura Engajada, Intelectual, Identidade.
Abstract
The
article intends to discuss the discursive strategies used to build the
historical subject in: O
conto
da
ilha
desconhecida,
written by Saramago,
Mestre
Tamoda,
written by Uanhenga Xitu and
Negra
Conceição: the warrior of João
Mulungu,
written by
Severo
D’Acelino. Besides, the text aims to put in relevance the literary
engagement related to the intellectuals in evidence as a way of
auto-reflexivity and deconstruction of absolute truths in the
contemporary literature.
Key-words:
Engaged Literature, Intellectual, Identity
A
viagem
proporcionada
por
José Saramago no
texto
intitulado: O
Conto
da
Ilha
Desconhecida
remete-nos a uma
interpretação
metafórica de uma
ilha
que,
embora
desconhecida,
é conclamada
pelo
personagem
principal
a
ser
conhecida
por
todos.
O
desejo
de
buscar
a
ilha
desconhecida
parte
de uma
vontade
e
insistência
próprias de
um
homem,
que
se traduz
pela
imperatividade de
um
sujeito
que
busca,
na
sua
impetuosidade
e
resistência
diante
de uma
ordem
social
pronta
para
dizer
não,
movimentar
uma
coletividade
na
evolução
para
a
concepção
de
um
sujeito
histórico.
O
poder de
convencimento
do
homem
em
relação
aos tramites da
autoridade
real
é
tão
contundente
quanto
sua
certeza
da
existência da
ilha.
Desafiar
o
rei na
conquista
por uma
embarcação
acaba sendo o
desafiar a
si
mesmo;
suas
convicções,
seus
anseios,
suas
projeções
relativas a
um
futuro
indefinido,
mas
que traz o
questionamento
da subalternidade do
sujeito
sempre
justificada
por uma
ordem
social
como
necessária
ao
domínio de
ações
que
cerceiam a
unidade
do
sujeito
histórico.
O
texto sugere a
formação
de uma
identidade
aberta
que se percebe
como
possibilidade de
criação
de
novas
identidades,
produzindo
sujeitos
capazes de
articular
sua
própria
elaboração
discursiva direcionada
não a uma
narrativa
particular,
mas a uma
narrativa
que se
pretende
coletiva,
que reclama
por transformações sócio-culturais
através
da desconstrução do
discurso
paradigmático.
Acredita-se naquilo
que, de
fato,
se tem
registro no
mapa,
mas
como
registrar o
desconhecido,
as
dúvidas, as
incertezas,
a
fragilidade, a
recusa, os questionamentos do
homem
enquanto
sujeito
histórico?
Nesta
perspectiva,
o
homem continua
a
ser
uma das
fontes
mais
intrigantes
de
investigação.
Saramago lança uma busca de negação
sistemática dos valores em relação à cultura hegemônica através de uma
tradução categoricamente pessoal, delineada para uma investidura do
sujeito de possíveis descobertas, de um exercício de consciência voltado
para o projeto de “buscar a si mesmo” como uma tomada de posição
política que intervenha na mobilização de uma coletividade, que aos
poucos se voluntaria a fazer parte das discussões voltadas para a
revisão de uma política cultural.
Os
personagens
do
conto
não
têm
nomes
definidos,
apenas
as
profissões
aparecem
para
marcar
suas
posições
interpretativas na
narrativa.
Talvez
a
iniciativa
de
recorrer
às
funções
dos
personagens,
transpareça no
enredo
como
uma
articulação
estilística
necessária
ao
retratar
a
sociedade
da
época.
Ou
seja, Saramago
marca
a
posição
hierárquica
dos
personagens
enfatizando
suas
funções.
Chama-nos
atenção
para
uma
ordem
social
necessária
a
qualquer
sociedade
que
resulta de uma complexidade de
relações
que
asseguram
um
sistema
marcado pelas desigualdades.
Não
há
tempo
determinado
para
encontrar
o
lugar
desejado,
assim
como
nós
precisamos muitas
vezes,
sem
o
respeito
à
determinação
de
um
tempo
em
específico,
sair
de
nós
mesmos
para
encontrar
o
tão
almejado. O lançar-se no
mar
para
navegar
é o
avançar
para
um
objeto
de
desejo
e
realização,
às
vezes
próximo,
contudo,
não
enxergado,
não
percebido
pela
nossa
própria
incapacidade
pessoal
de
objetividade
e
percepção
do
desconhecido.
O
texto
traduz-se num
paradoxo
estranho.
Nós,
em
alguns
momentos
de nossas
vidas,
queremos
estar
longe
de
nós
mesmos
para,
então,
enxergarmos
melhor
nossa
natureza.
A mulher da limpeza é o único personagem que decide espontaneamente
abandonar a vida enfadonha que levava para seguir o homem do povo. Troca
sua rotina por uma viagem poética em busca de seus sonhos. A obsessão do
homem em descobrir algo fora de si que traga verdades mais profundas
contagia de forma simplista a sensatez da sensibilidade feminina.
Ocupado
como
sempre
estava
com
os
obséquios,
o
rei
demorava a
resposta,
e
já
não
era
pequeno
sinal
de
atenção
ao
bem
estar
e
felicidade
do
seu
povo
quando
resolvia
pedir
um
parecer
fundamentado
por
escrito
ao primeiro-secretário, o
qual,
escusado seria
dizer,
passava a
encomenda
ao segundo-secretário,
este
ao
terceiro,
sucessivamente,
até
chegar
outra
vez
à
mulher
da
limpeza,
que
despachava
sim
ou
não
conforme
estivesse de
maré.
(SARAMAGO, 1998, p.6-7).
Saramago, de
maneira
engenhosa,
mostra
a
figura
do
monarca
como
emblemática.
Os
obséquios
eram
bem
vindos,
enquanto
as
petições
não
eram resolvidas, eram
sim
postergadas e
posteriormente
decididas, a
depender
do
estado
de
espírito
da
mulher
da
limpeza.
A
burocracia
nos
serviços
sublinha
um
governo
distante
de
seu
maior
objetivo,
promover
o
bem
estar
do
povo.
O
repúdio
do
rei
salta
aos
olhos
quando
evita aproximar-se do
homem.
Uma
realidade
próxima
do
absolutismo
monarca.
O
rei
teme ao
homem,
ao
que
possivelmente ouviria
como
crítica,
por
isso,
barra
seu
contato
com
a
voz
do
povo,
como
um
instrumento
que
poderia
proporcionar
transformação
social,
ainda
que
veiculado
primeiro
ao
plano
pessoal
e
posteriormente
com
uma
inclinação
perceptível ao
coletivo.
A narrativa de Saramago está sempre em busca de uma conscientização do
leitor. Como intelectual engajado nos problemas e tensões políticas de
Portugal, ele conduz a problemática de uma historicidade local, em seus
movimentos e contingências, investigando e recriando situações que
questionam as ansiedades e esperanças humanas.
Quero
falar
ao
rei,
Já
sabes
que
o
rei
não
pode
vir,
está na
porta
dos
obséquios,
respondeu a
mulher,
Pois
então
vai
lá
dizer-lhe
que
não
saio daqui
até
que
ele
venha,
pessoalmente,
saber
o
que
quero, rematou o
homem,
e deitou-se ao
comprido
no
limiar,
tampando-se
com
a
manta
por
causa
do
frio.
(apud,
SARAMAGO,
1996, p.9-10).
Não importa o “status quo” do sujeito, sua procedência, sua identidade.
A postura do homem demasiadamente lúcido de se plantar na porta do rei é
uma forma de dizer “não” à infelicidade determinada e de dizer “sim” à
transcendência do sujeito transformado continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas
culturais que nos rodeiam.
Na sociedade abordada por Saramago, percebemos a construção de um “eu”
que nos leva a crer, como afirma Stuart Hall:
A
identidade
plenamente
unificada,
completa,
segura e
coerente
é uma
fantasia. Ao
invés disso, à
medida
em
que
os
sistemas
de significação e
representação
cultural se multiplicam, somos confrontados
por
uma multiplicidade
desconcertante
e
cambiante
de
identidades
possíveis,
com
cada
uma das
quais poderíamos
nos
identificar
– ao
menos
temporariamente. (HALL,
Stuart.,2001,p.13)
A
literatura
engajada de José Saramago,
através
de
seu
caráter
discursivo, tem sido
um
espaço
em
que
as
localizações
do
sujeito
e as
construções
de
identidade
afloram, permitindo uma
visão
clara
de
um
projeto
literário
“inacabado”,
sem a
pretensão
de propor interpretações fechadas, onde
indivíduos
de
épocas
diferentes
concebiam e construíam
suas
identidades
como
sujeitos
de
um
processo
histórico
crítico
e
revolucionário.
O engajamento literário de Saramago se expressa por uma tensão
dialética: literatura ativa, radicada como instrumento de transformação
social que insiste em desconstruir um discurso paradigmático. Os sem
nome, os sem terra, os sem nada falam para questionar a construção de
uma historicidade que corre pelas margens daquela legitimada como única,
oficial, capaz de reprimir as ações de determinados sujeitos que
apareciam na versão oficial como figuras decorativas de um âmbito social
indiferente à sua existência.
O que o autor tenta fazer é “reparar” esta indiferença através da
valorização de anônimos. Os anônimos têm poder de decisão no corpo de
sua narrativa. São os anônimos que possibilitam que as grandes
transformações ocorram. São eles que navegam para o desconhecido em
busca de conhecimento de si e de sua própria história, de uma
universalização que visa a uma experiência voltada para o nós.
Numa
sociedade
de
estranhos,
o
sujeito
histórico
tem
ânsia
para
conhecer-se e Saramago possibilita
seu
conhecimento
através
de uma
expressão
que
aponta a metaficção historiográfica
como
possibilidade de
introduzir
o
poder
da
palavra
como
reflexão
de
um
passado
histórico,
pronto
para
ser
reescrito, reformulado a
partir
da supressão de
dicotomias,
de
extremos
nunca
antes
sugeridos
como
conjunto.
A
formação
de uma
identidade
voltada
para
a
construção
de
um
sujeito
literário
não
está restrita a Portugal, reflete-se
também
em
sociedades
pós-coloniais
como,
por
exemplo,
a angolana. Nestas
sociedades,
não
há
quadros
de
referência
identitária
que
permita ao
indivíduo
uma
posição
fixa
no
mundo
social.
Por
isso,
a
linguagem
dos
escritores
angolanos torna-se
referência
a
um
universo
instituído
para,
através
de uma
posição
política
dos
intelectuais
engajados,
resgatar
valores
que
foram negados
pelo
colonialismo.
A
identidade
cultural dos
países colonizados mostra-se
por uma
luta
que
não
se
esgota
na
independência
política.
É uma
conquista
contínua de uma
autodeterminação
a efetivar-se
dentro das
condições
de
subdesenvolvimento
e de
necessidade de
modernização...(ABDALA JR, Benjamin, 2003 p.117-118)
Em Angola, a “Geração de 50” é de fundamental relevância dentro de um
processo de consciência coletiva, não só pela expressão de valores,
necessários à construção de uma identidade, mas também outros
responsáveis por uma certa mobilização e formação política militante de
novas gerações, que emergem na contingência de luta por uma autonomia
cultural e política.
É
necessário
que
o
discurso
dessa
consciência
se transforme na
ação
dele
mesmo,
produzindo
efeitos
absolutamente
práticos,
diferentes
dos instaurados
pelo
sistema
colonial,
que
sempre
contribuíram
para
o abafamento de uma
dada
formação
cultural interpretada
pela
diferença.
Uma das preocupações do escritor angolano Uanhenga Xitu é o homem. Por
isso, percebemos algumas complexidades e contradições de pensamento
social nas passagens de seu texto. O universo de sua literatura se exime
da visão folclorística e exótica do negro como personagem estereotipado.
O espaço desta ficção projeta o negro como sujeito de sua história,
dotado de uma identidade cultural pronta para reivindicar um discurso,
onde a práxis social angolana seja historicamente revista.
Através de sua abordagem lingüística, o texto é privilegiado e revestido
de um tratamento literário que preenche os espaços do personagem com um
enunciado atrelado à sua própria expressão cultural, resistente à
invasão, à rejeição de um modelo português limitado à autonomia de um
discurso de reconhecimento de seus próprios valores.
No
conto
Mestre
Tamoda,
o
autor
traz
para
o
cerne
da
discussão
a
problemática
instaurada
pela
versatilidade vocabular do “Mestre
Tamoda”. Analisa, a
partir
do
tecido
verbal,
os
problemas
lingüísticos
e culturais
que
possivelmente foram surgindo
com
o
contato
com
culturas
alheias. Escolhe a
língua
como
forma
de
expressão
viva
para
retratar
o não-lugar de
um
indivíduo
que
sai do
seio
de
sua
cultura,
aprende
novas
formas
de
expressão
e
volta
às raízes tentando inserir-se no
grupo
social
de
modo
a desestabilizá-lo
com
o
contraste
cultural gerado.
Este contraste, para o escritor, passa a ser o principal motivo de
questionamento da imposição cultural sofrida em Angola pela força de um
colonialismo português que abafou durante muito tempo o entendimento da
língua quimbundo como própria ao universo textual local.
Inicialmente,
a
chegada
de “Mestre”
Tamoda
já
refletia o
novo
intelectual,
no
meio
de uma
sanzala
em
que
quase
todos
os
seus
habitantes
falavam quimbundo e
só
em
casos
especiais
usavam o
português.
Nas
reuniões
em
que
estivesse
com
seus
contemporâneos
bundava,
sem
regra,
palavras
caras
e difíceis de serem compreendidas,
mesmo
por
aqueles
que
sabiam
mais
do
que
ele
e
que
eram
portadores
de algumas
habilitações
literárias.(SANTILLI, 1985, p. 88).
As “habilitações
literárias” de “Mestre”
Tamoda o transformavam num “etimologista”,
um
“dicionarista”.
Circulava
pelo
povo,
mas
não
falava a
língua
do
povo.
A
cadência
de
sua
expressão
vocabular fazia a
separação
nítida
entre
os
nativos
quimbundo,
nunca
antes
expostos
a uma
outra
cultura,
a
não
ser
a
local
e o Lungula Tamoda
que
convivera
em
Luanda
com
os
filhos
dos
patrões,
com
os
criados
do
vizinho
do
patrão
e
com
um
doutor
recebendo
influências
de uma
expressão
lingüística
diferente
da
sanzala.
O “lugar” da sanzala dá idéia de uma cultura localizada no tempo e no
espaço. O autor propõe através do perfil identitário de “Mestre” Tamoda
uma reavaliação deste espaço. A nossa vivência no mundo serve para
aprendermos a olhar, ver, reparar as práticas coletivas e individuais
que analisam as relações entre o homem e o seu grupo social e,
principalmente, perceber como se articula a multiplicidade do universo
da oralidade na escrita literária.
Os processos enunciativos de Uanhenga Xitu não estão limitados ao que
alguns críticos chamam de oposição imediata de estruturas monolíticas
como: negros/ brancos, rurais/ urbanos, voz/ letra. A oralidade em sua
escrita literária é fundamental para os enunciados construídos. Outro
aspecto relevante é a polifonia discursiva dos textos. Neste conto, em
específico, o discurso polifônico imprime vozes que se aproximam e se
distanciam pela diferença de representações identitárias que correm no
contrafluxo de uma cultura que se pretende localizada.
Tamoda, na
cadência
das
vozes
e do
sapato
a
chiar,
ia marcando o
ritmo
com
a
cabeça
e os
ombros,
muito
esticado e
sorridente,
e lungulava
como
um
kingungu-a-xitu. (apud, SANTILLI, 1985, p.89).
A
convivência
contraditória
das
línguas
permite-nos
perceber
que
a
língua
quimbundo é
muito
mais
sonora
em
relação
ao
português.
As
expressões
utilizadas na
caracterização
estereotípica do “Mestre”
traduzem-se
como
um
canto
pela
transparência
de uma musicalidade
típica
das
línguas
africanas.
“Mestre”
Tamoda
tinha
fãs,
seus
fãs
aprendiam
com
ele
o
significado
de uma
cultura
exterior
à
local.
E
isto
lhes
permitia uma
aproximação,
ainda
que
fosse
indireta,
com
o
outro,
cujos
anseios,
desejos
e
história
social
causavam-lhes estranhamento.
“Mestre”
Tamoda
volta
ao
seu
terreiro,
ao
seu
espaço
de
origem
com
um
status
social
conferido
pelo
uso
do
português,
apesar
da artificialidade dessa
língua
como
oficial.
Ao
mesmo
tempo
em
que
alguns
personagens
demonstram
curiosidade
na
articulação
do
português,
outros
tradicionalmente se colocam
como
defensores
da
pureza
e
conservação
da
língua
local.
Uanhenga Xitu se vale da força dada pelos amigos de cárcere para inserir
no seu texto a controvérsia entre a língua como instrumento de
pertencimento ou não-pertencimento do indivíduo “assimilado”, não mais o
mesmo, mas com uma identidade abalada pela cultura do outro.
“Mestre” Tamoda, o mestre do português novo. Neste sentido, a
identidade, como construção narrativa, é responsável pela estabilização
e localização do sujeito no grupo social. Todavia, o que gera a crise de
identidade é a ação conjunta de um duplo deslocamento, a
descentralização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e
cultural quanto de si mesmos. “Mestre” Tamoda estava deslocado de seu
meio de origem pela incursão na língua do colonizador.
Uanhenga Xitu coloca em evidência a necessidade de não sublimar a língua
portuguesa e mostra através da rejeição ao uso desta língua um
fortalecimento cada vez maior e contestatório de consciência política e
cultural em relação à cultura hegemônica e ao poder colonial.
A
história
pessoal
de Uanhenga Xitu
como
“registrador”,
serve de
suporte
para
a
construção
de
sua
narrativa.
Sua
ficção
é
criada
a
partir
do
âmbito
de
sua
convivência.
O
texto
se
torna
o
principal
veículo
de
discussão
e
articulação
de
idéias
a
respeito
dos
problemas
estabelecidos
pela
entrada
e
imposição
de outras
culturas.
A
influência
de uma
língua
sobre
outra,
as
conseqüências
de
convívio
com
culturas
díspares
que
podem
ocasionar
mudança
de
paradigma.
Ao mesmo tempo em que Uanhenga Xitu coloca em questão o “novo”,
representado pelo acesso a elementos culturais diversos, ele também tem
a oportunidade de resgatar com a contradição criada, elementos de uma
tradição do quimbundo relativos aos mais ricos cenários: as sanzalas, os
quimbos, as baulas e povoações de Angola.
Acredito
que
para
Uanhenga Xitu a
idéia
de
discurso
conciliatório
entre
condições
históricas impostas, seja o
principal
objetivo
de
sua
construção
discursiva.
Não
há o
que
prevalecer
em
termos
culturais há de se
constatar
o
diferente.
E
fazer
desta
diferença
um
motivo
para
que
o
contraste
coloque, no
mesmo
patamar
de
igualdade,
culturas
tão
diferenciadas
em
sua
composição.
A
diferença
enriquece a
identidade
de
um
“eu”
que
procura
se
defender
e se
preservar.
Os escritores das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa têm
trabalhado arduamente em favor de uma práxis que promova uma
reorganização da sociedade pela ação autônoma de indivíduos. Por isso, o
projeto literário em Angola prima por um discurso de reconhecimento dos
próprios valores africanos, as línguas, a geografia, as condições
existenciais, enfim, percebemos que historicamente vem se delineando uma
forma de existência e uma idéia de autonomia política, social e cultural
que emergem com a efetivação de uma literatura engajada decorrente da
experiência de militância e de guerrilha de muitos autores.
É através desta experiência com a militância que Severo D’Acelino,
escritor e intelectual engajado no projeto literário que luta para
configurar uma formação identitária afro-brasileira em Sergipe, se
destaca desde a década de 60 enfrentando o período da ditadura militar,
de repressão a toda e qualquer expressão política e cultural que viesse
a contradizer o movimento político da época.
Severo
estréia
sua
publicação de
contos
na
seção
Contos
Afro-Sergipanos
do
jornal:
Gazeta
de Sergipe,
no
dia
10 de
março
de 2004. É neste
espaço
que
o
conto:
Negra
Conceição: a
guerreira
de
Mulungu
ganha
sua
primeira
divulgação.
Além
de
contribuir
para
ativar
uma
seção
cultural
inédita
no
jornal
da
cidade,
Severo
aproveita
para
resgatar
valores
culturais
relativos
à
cultura
popular
negra,
até
então
ignorados
pela
cultura
local.
Neste conto Severo define a personagem como:
“Conceição,
a negra guerreira de Mulungu, nunca deixou de ser mulher, nunca deixou
de ser negra e por diversas vezes, rejeitou a vida mansa que lhes
ofereciam, foi vendida diversas vezes e nunca teve senhor, o seu maior
cabedal foi sua rebeldia e sua dignidade de ser negra, mesmo de pele
clara, conheceu sua mãe, mas nunca soube quem foi seu pai e se rebelava
sempre, rejeitando as chamadas alforrias para manter a sua expectativa
de sub-vida, pois tinha consciência que não se ajustaria, não nasceu
para ser escrava o que nunca foi, nasceu guerreira e isso seria até a
morte, uma morte animada na luta, a Negra, Guerreira de Mulungu”.(GAZETA DE SERGIPE, 2004, p.4).
Severo faz uma historiografia no conto da situação sócio-política e
cultural da Capitania de Sergipe. O tempo mencionado evidentemente é o
da escravidão. Embora João Mulungu seja citado no conto, o
direcionamento da narrativa está centralizado em Conceição, o personagem
feminino de tamanha importância para as fugas do grande herói negro
sergipano, João Mulungu.
A
narrativa
de D’Acelino coloca
em
primeiro
plano
um
sujeito
histórico
capaz
de,
em
prol
de
suas
próprias
convicções,
em
um
ato
de
rebeldia
e
coragem,
vencer
a perseguição, a
caça
planejada e direcionada aos
negros
pela
força
policial,
com
o
objetivo
de
endossar
o
tráfico
interprovincial,
para
salvar
a
pele
de
outro
sujeito,
no
qual
a
comunidade
negra
depositava
sua
esperança
de
protesto
e
libertação,
de uma
raça
oprimida
pela
invasão
de
um
colonialismo
fomentado
pelo
disparate
de uma
imposição
cultural
unilateral.
A
descrição
de Conceição no
conto
remete-nos à
heroína
de uma
missão,
somente
permissível
para
aqueles
cuja
determinação
fosse a
razão
de
sua
imperatividade
diante
dos
propósitos
de uma
raça
que
se questiona,
até
hoje,
o
porquê
de
ter
tantas
metáforas
usadas
para
justificar
os
negros/
afrodescendentes
como
racialmente
subalternos.
Este conto se constitui como uma construção discursiva que contextualiza
a revisitação memorial feita através da história de personagens negros.
João Mulungu e Negra Conceição animam o trabalho do escritor junto à
comunicabilidade de reconhecimento de uma ancestralidade articulada para
não ser menosprezada ou ignorada e sim resignificada.
Uma leitura mais criteriosa do conto pode sinalizar uma possível
intervenção crítica desestabilizadora dos discursos hegemônicos
provocada pela necessidade de uma expressão identitária local, situada a
partir da Capitania de Sergipe e localizada na Vila de Maruim.
O Brasil é marcado por um modelo social hegemônico que nega as formas
de ser brasileiro. A cultura popular negra tem significados muito mais
abrangente do que os que habitualmente conhecemos, longe da formação de
estereótipos, ela é plural. Entender o plural num país como o Brasil é
perceber a singularidade cultural do tripé de raças aqui formado, desde
o seu “achamento” até o trabalho com a cultura como algo próprio de um
grupo e de troca de valores e representações.
A rebeldia de Conceição a define como um personagem disposto a enfrentar
toda e qualquer imposição de um colonialismo essencializado, que subjuga
a diversidade cultural e clama por uma unidade imposta pela força de
quem domina os meios econômicos e políticos.
A resistência de Conceição e Mulungu para não serem capturados evidencia
que esta resistência é especificamente política, no que se refere à
reflexão de uma condição humana modelada na lógica da tradição e também
de modelos culturais de ruptura.
Há de se
deixar
claro
que
o
processo
de
aculturação
do
colonialismo
português
visava a
desculturação
dos
povos
colonizados. Portugal impôs
seus
padrões
ao voltar-se
obsessivamente
para
as
conquistas
ultramar,
mas
também
sofreu transformações
sociais,
políticas
e culturais significativas
como
conseqüência
de
seu
processo
de colonização. Temos
que
considerar
que
num
conjunto
dialético, as
articulações
ideológicas incorporam
imposições
de
padrões
e
não
refletem
somente
transformações
unilaterais.
As tendências literárias engajadas desses intelectuais trabalham numa
visão de conjunto. José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino
apresentam diferenças em seus textos a partir de uma dinâmica literária
moldada por fatores histórico-sociais, os quais levam o sujeito
histórico a promover uma imersão no seu universo cultural tendo como
princípio a sua própria dinâmica comunicativa.
A
resistência
dos
personagens
a uma
ordem
hegemônica
é
também
matéria
do
escritor
consciente.
Os
personagens:
o
homem
do
povo,
“Mestre”
Tamoda e Conceição falam de
um
lugar
de
enunciação
onde,
as
diferenças
que
aparecem no
trabalho
literário
individual,
servem de
revisão
histórica
das
condições
sócio-culturais de uma
minoria
não
veiculada
por
um
sistema
literário
nacional.
Os
textos,
às
vezes,
se aproximam
em
decorrência de uma
consciência
crítica partilhada pelos
escritores,
pelas semelhanças entre os
processos
literários
que
utilizam e, principalmente,
por
uma
configuração
do
imaginário
social
que
antecipa uma
experiência
de
interação
dialética
com
outras
culturas.
Espera-se
que
os
escritores
de
literatura
engajada, os
intelectuais
da
esfera
pública,
não
falem pelas
minorias,
não
substituam a
fala
dos
grupos
minoritários
por
seus
discursos
literários,
mas
que,
sobretudo
criem
estratégias
particulares
e contextualizadas
para
através
da
estrutura
ficcional
dar
voz
ao
outro,
possibilitar
que
este
outro,
tendo
sua
presença
e
criação
justificada
pelo
contexto
ficcional, possa expressar-se a
partir
de
suas
próprias
aspirações
que
emergem de
espaços
periféricos,
de
lugares
de
exclusão.
Anônimos
ou
não,
os
personagens
de Saramago, Uanhenga Xitu e
Severo
D’Acelino se apropriam de
um
discurso
cuja
tensão
transposta
para
o
texto
evidencia uma
manifestação
ideológica
através
de
aspirações
subjetivas,
não
totalmente
particulares,
mas
de
certa
forma
coletiva.
Os
intelectuais
da
literatura
engajada
em
Angola
e Brasil,
mais
precisamente
Uanhenga Xitu e
Severo
D’Acelino promovem,
através
do
reconhecimento
de uma
identidade
nacional,
a atualização de
um
momento
histórico
que,
em
debate,
impulsiona o
processo
de desalienação cultural,
quando
traz à
cena
o
caráter
pluralístico da
cultura
do quimbundo,
pela
língua,
e da
cultura
brasileira,
pela
resignificação da ancestralidade, tendo
sempre
em
vista
a democratização da
vida
social.
Já
Saramago,
cuja
produção
ficcional
procura
recontar
a
história
de
seu
país,
toma
para
a
sua
narrativa
o
papel
reduzido dos
anônimos
pelos
grupos
hegemônicos
e amplia, a
partir
da
própria
resistência
do
personagem,
sua
forma
de participação no
discurso,
até
então,
historicamente escamoteada
por
uma
oficialidade
alienadora. O
que
Saramago faz é
reconstruir
essa
história,
que
parece escamoteada,
com
o
exercício
de uma
prática
literária,
em
que
a subalternidade
ganha
a
formulação
de
um
discurso
de “verdade”
e
cheio
de
articulação
de
reflexões
voltadas
para
uma
intervenção
política,
social
e cultural.
A caligrafia de Saramago recupera a história na estória. Esse movimento
de recuperação proporciona uma dinâmica ao texto, onde os supostamente
vencidos estejam no centro. Os personagens de Uanhenga Xitu e Severo’Acelino
por questões históricas também são levados a uma representação de
ascensão revolucionária no texto, ações que se pressupunham estáveis
sustentam linhas discursivas baseadas num estatuto de resistência à
imposição cultural do colonialismo português.
Dessa
forma,
quer
seja
por
uma
recuperação
historiográfica,
por
uma
revisão
lingüística
ou
por
uma valorização às raízes
ancestrais,
a
dialética
discursiva
criada
por
estes
intelectuais
seduz o
leitor
para
as
discussões
em
torno
das
interseções
coletivas. Os
personagens
representam
sujeitos
históricos
capazes
de
problematizar
o entrecruzamento
estória/história,
um
modo
de
refletir
no
tecido
verbal
construído,
a
experiência
de
um
cotidiano
social
fundamental
à subjetividade da
existência
humana,
de
sua
pluralidade
presente.
De
acordo
com
Edward Said:
Em outras
palavras, o
resultado dos
atuais
debates
sobre
o multiculturalismo
não
se afigura propriamente uma “libanização”, e se
esses
debates apontam
um
caminho
para
transformações
políticas e mudanças na
forma
como se enxergam as
mulheres,
as
minorias
e os
imigrantes
recentes,
não
há
por
que
temê-los
nem
tentar
evitá-los.(SAID, Edward, 1995, p.28-29).
A narrativa deste projeto literário movimenta a escrita dos intelectuais
para uma auto-reflexividade multicultural. Neste sentido, a narrativa
não é apenas o registro, mas um instrumento que direciona o paradigma da
ideologização dos discursos da autoconsciência teórica sobre a história
enquanto oficialidade e a ficção como pedagogia para uma releitura do
passado no presente, onde as diferenças sejam interpretadas como parte
da diversidade de configurações identitárias legitimadas por uma escrita
literária pronta ao questionamento de verdades absolutas.
Referências Bibliográficas:
ABDALA JR., Benjamin. De Vôos e Ilhas: Literatura e
Comunitarismos. Cotia/ SP: Ateliê Editorial, 2003.
GAZETA DE SERGIPE. Sergipe, março de 2004. Nº 13.516.
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de
Janeiro: Dp&a Editora, 2001.
SAID. Edward, Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas: história e antologia.
São Paulo: Ática, 1985.
SARAMAGO, José. O Conto da Ilha desconhecida. São Paulo:
companhia das Letras, 1998.