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O objeto direto anafórico no dialeto rural

afro-brasileiro do estado da Bahia

  

Maria Cristina Vieira Figueiredo

UFBA/PPGL

macrisfig@uol.com.br

 

 

Resumo

Neste trabalho, analisou-se a variação e a implementação de novas estratégias de realização do objeto direto anafórico no português brasileiro (PB) levando em consideração não apenas fatores internos à língua, mas, principalmente, os fatores sócio-históricos que as favorecem. Levou-se em consideração o conceito de transmissão lingüística irregular, proposto por Lucchesi (2000), o qual pressupõe que, nos processos de variação e mudança no PB, interferem, em sua gênese, motivações sociais, como o contato massivo entre falantes de línguas distintas por volta da formação do PB: brancos, índios e, principalmente negros. Dessa forma, as estratégias de realização do objeto direto anafórico foram analisadas num corpus rural marcado etnicamente focalizando as duas variantes não-padrão no PB: a categoria vazia e o pronome lexical (ele/ela). O corpus analisado reuniu quatro comunidades localizadas em regiões diversas do Estado da Bahia, em que houve grande concentração de mão-de-obra escrava, a saber, Helvécia, no extremo-sul da Bahia; Rio de Contas, no semi-árido; Cinzento, na zona da mata e Sapé, no Recôncavo Baiano.

Palavras-chave: Sociolingüística, comunidades rurais afro-brasileiras, objeto direto anafórico

 

 

1. Introdução

 

No português falado no Brasil, percebem-se duas estratégias não-padrão de realização do objeto direto anafórico: o uso da categoria vazia e o do pronome lexical ele. Trabalhos realizados sobre o tema em corpora urbano e diacrônico atestam que essas variantes são condicionadas, principalmente, por fatores semânticos e que a sua implementação deu-se a partir do século XVII, quando houve o incremento da categoria vazia com antecedente sentencial, devido à perda do clítico neutro de terceira pessoa, estendendo-se mais tarde a outros contextos[1]. Neste trabalho, buscar-se-á apresentar evidências de que a implementação dessas variantes deve-se, principalmente a fatores extralingüísticos.

        As explicações dadas, não só para essa mudança ocorrida no português falado no Brasil, distanciando-o do falado na Europa, mas também para as demais mudanças como, por exemplo, a ausência de concordância de número tanto nominal quanto verbal, o preenchimento do sujeito pronominal, a implementação de novas estratégias das relativas, entre outras, têm ao longo dos estudos lingüísticos seguido duas posturas teóricas distintas. Uns buscam explicá-las considerando a história interna da língua e postulando que essas são mudanças estruturais que já estavam prefiguradas na deriva secular da língua. Outros estudam esses fenômenos considerando-os como resultado do contato entre línguas ocorrido no processo de colonização do Brasil. Para estes últimos, a aquisição do português por índios e africanos desencadeou um processo de transmissão lingüística irregular que teria conferido o perfil da língua portuguesa no Brasil.

 

2. Metodologia

 

        Nesta análise, que se propõe a estudar o objeto direto anafórico (ODA) de 3a pessoa na fala de comunidades rurais afro-brasileiras do interior do Estado da Bahia, assume-se a postura de que o contexto de multilingüismo existente, principalmente, durante os três primeiros séculos de colonização do Brasil foi o fator que desencadeou o distanciamento entre o português do Brasil (PB) e o português europeu (PE).

        Tendo em vista essa posição teórica, constituiu-se um corpus[2] que refletisse as características desse aprendizado. Foram selecionadas quatro comunidades rurais afro-brasileiras isoladas: Helvécia, localizada no extremo sul da Bahia; Rio de Contas, na Chapada Diamantina; Cinzento, no semi-árido; e Sapé, no Recôncavo Baiano. Foram selecionadas comunidades que compartilhassem algumas características, como: ser composta, essencialmente, por afro-descendentes; manter-se em relativo isolamento, preservando antigos hábitos lingüísticos; ter origem em antigos quilombos ou ter se formado logo após a libertação dos escravos.  O corpus analisado consta de seis entrevistas de cada comunidade, perfazendo um total de 24 entrevistas, com mais ou menos uma hora de duração cada uma,

        Inserida no âmbito da pesquisa sociolingüística, como proposta por Labov (1972 e 1994), esta análise objetivou, inicialmente, investigar as formas variantes de realização do ODA de terceira pessoa que o PB tem à sua disposição, da variante padrão a mais estigmatizada:

 

-  o clítico acusativo  : (01) O namoro com [o pai de Fabinho]i levô, mais ô meno, um... E

(CA)                  já  oi conhecia desde pequeno, crescido junto

       

-  a repetição do SN:   (02)  DOC: E ele faz... ele tir...ele faz o quê com a mandioca lá?

(SN)  INF: A gente mesmo faz farinhai aí, e vende já farinhai pronta.

 

- a categoria vazia:    (03)   INF:Aí me deu vontade de comê uma fava, eu fui catá esse pé de

(CV)                  fava, catei a favai, levei ___i pra casa, fui comê___i no ôto dia.

 

-  o pronome lexical : (04)   INF:O namoro com [o pai de Fabinho]i levô, mais ô meno, um...

(PL)                  DOC:  E como foi que se conheceram?

INF:  Eu já conhecia elei aqui desde pequeno, crescido junto.

 

Durante a realização do inventário das ocorrências, verificou-se que a variante clítico acusativo não fazia parte da gramática desses falantes, uma vez que essa é uma estratégia utilizada por falantes escolarizados[3], e o corpus desta pesquisa é constituído por analfabetos e semi-analfabetos. Quantificaram-se, então, as três variantes: SN, CV, PL. Como se desejava verificar, além dos condicionamentos da variação lingüística, o papel do contato entre línguas no distanciamento entre o PE e o PB, foram focalizadas apenas as duas variantes que caracterizam o PB: a categoria vazia e o pronome lexical, desconsiderando o chamado SN anafórico, visto que é uma estratégia disponível em todas as línguas para retomar uma referência já feita no discurso; não sendo, portanto, um elemento identificador do PB.

Foram computados, para posterior análise quantitativa utilizando o pacote de programas VARBRUL, apenas dados que permitiram a aplicação do teste de covariação estrita, que consiste em verificar se as variantes podem ocorrer na mesma posição  sem acarretar prejuízo semântico, conforme aplicação em (05) e (06) a seguir:

 

(05)  DOC 1: Ela (a filha da informante) tinha o quê?

INF 1: Elai deu pobrema de… comé que fala? É… desidratação… mas já    tá   boa, levei ___i (ela/ minha filha) no médico…(HV-01)

 

Após os dados terem sido codificados de acordo com os fatores estabelecidos na chave de codificação, foram submetidos ao pacote de programas de análise quantitativa VARBRUL, que apresenta como resultado uma seleção estatística dos grupos variáveis mais relevantes, além de estabelecer a probabilidade dos fatores de cada nível indicando um peso relativo.

 

3. A análise dos dados

 

O pacote de programas VARBRUL apontou que a variante CV é a mais realizada no dialeto observado, 72% das ocorrências. Em trabalho anterior Duarte (1986) encontra resultado semelhante ao analisar um dialeto urbano (62,6%). Essa semelhança entre os dois resultados pode não refletir identidade no comportamento lingüístico entre as duas comunidades. È necessário que se investigue os fatores relevantes que condicionam o uso dessa variante, além de verificar a sua trajetória nas duas comunidades. 

 

Tabela 1 – Distribuição das variantes  encontradas no português rural afro-brasileiro

Variáveis

SN

PL

CV

Total

No de ocorr.

275

213

1267

1755

%

16

12

72

100

 

 

 

 

 

 

Apesar de se desejar unir comunidades que compartilhem fatos sócio-históricos, ampliando a representação desse dialeto em diversas regiões do estado da Bahia, buscou-se verificar o comportamento das variantes em cada comunidade isoladamente, a fim de observar a existência de alguma particularidade entre elas. Os resultados das variantes em cada comunidade são apresentados na tabela a seguir:

 

                      

Tabela 2 – Distribuição das variantes segundo as comunidades

Comunidade

HV

RC

CZ

SP

Total

No de ocor. / %

No ocor. / %

No ocor. / %

No ocor. / %

No ocor. / %

SN

49 / 11

70 /16

99 / 20

57 / 15

275 / 16

PL

74 / 17

65 / 15

40 / 8

34 / 9

213 / 12

CV

307 / 71

306 / 69

359 / 72

295 / 76

1267 / 72

Total

430 / 25

441/25

498/28

386/22

1755/100

 

 

 

 

 

 

 

 

A análise da tabela 2 mostra-nos que, quando vistas isoladamente, as comunidades apresentam tendências diferenciadas no que se refere à realização do ODA, quando levados em consideração seus percentuais de freqüência.

Observa-se que, nas comunidades Cinzento e Sapé, que são mais isoladas, a variante CV é favorecida, enquanto o uso do PL tem sua freqüência reduzida. Esse resultado parece indicar que a variante PL nas nessas comunidades é mais recente que nas demais, que mantém algum contato com outros dialetos[4].

Quantificados os dados, utilizando um dos programas do pacote VARBRUL, o MAKE 3000, passou-se a analisar, em termos probabilísticos, as variantes segundo fatores  lingüísticos e extralingüísticos. Para tal, o arquivo  .cel gerado pelo programa foi submetido ao VARB 2000, o qual selecionou nove variáveis com nível de significância .038 e input .08 para o pronome lexical (PL) e .93 para a categoria vazia (CV). Os resultados apresentados a seguir obedecem à ordem de seleção do programa VARBRUL por relevância estatística, no que se refere ao condicionamento das variantes.

 

3.1. Condicionamento semântico do objeto

 

Estudos anteriores (Duarte, 1986; Omena, 1978, apud Duarte 1986 ) referendam que esse é o fator de maior relevância na escolha entre as variantes: CV e PL, sendo o PL favorecido quando o OD anafórico exibe o traço [+animado]. Conforme se pode observar na análise dos pesos relativos registrados, na tabela 3, a seguir, esse resultado se confirma no corpus aqui analisado.

 

Tabela 3 – Distribuição das variantes segundo o traço  semântico do antecedente do ODA

 

Condicionamento

Pronome Lexical

Categoria Vazia

semântico do objeto

Ocorrências

%

Peso Relativo

Ocorrências

%

Peso Relativo

[+animado]

180/521

35

.80

341/521

65

.20

[-animado]

33/953

3

.32

920/953

97

.68

Total

213/1474

14

--

1261/1474

86

--

 

Como se pode observar, enquanto o traço [+ animado] favorece a realização da variante PL, apresentando peso relativo .80; o traço [-animado] desfavorece-o, tendo como peso relativo, .32. Da análise desse fator, percebe-se também que a categoria vazia é a estratégia preferida dos falantes, nesse dialeto.

 

3.2. Paralelismo discursivo

 

        Com a decisão de submeter os dados à variável “antecedente mais próximo”, buscou-se investigar se a forma do antecedente, em qualquer posição sintática, no mesmo turno ou em turno diferente seja do informante, seja do documentador, influenciaria na escolha de uma das formas variantes na posição de ODA.

 

Tabela 4 – A estrutura formal do antecedente mais próximo

 

Forma do antecedente

SN

PL

CV

Total

 

mais próximo

ocor. / %

ocor. / %

ocor. / %

SN

102 / 27

27 / 7%

252 / 66

381

PL

5 / 3

90 / 53

76 / 44

171

CV

63 / 9

68 / 10

537 / 80

668

TOTAL

170 / 14

185 / 15

865 / 71

1220

 

 

Os resultados da tabela 4 apontam que a escolha de uma das variantes favorece a sua repetição. Este resultado revela um paralelismo, nos moldes definidos por Naro e Scherre (1993):“marcas levam a marcas e zeros levam a zeros”. Segundo os autores, tanto no nível da sentença (paralelismo formal) quanto no nível do discurso (paralelismo discursivo), há correlação entre as marcas explícitas, de modo que “formas gramaticais particulares tendem a ocorrer juntas”. Pode-se perceber da análise da tabela (4) que ocorre na realização do objeto anafórico um paralelismo discursivo, visto que a forma do antecedente leva a sua repetição, formando uma série. Na análise dessa variável, consideraram-se os antecedentes em qualquer posição na sentença e também em outro turno, uma vez que o que se está analisando é a forma do objeto direto e que fatores as condiciona.

 

(01) DOC: E a cobrai pode mordê?

INF:  Uai, eles  fala que num pode matá ___i, né? Que a gente só passa no  qu'é deles... Se incontrá   __i, cum'é que vai matá ____i?

 

3.3. Estrutura sintática da frase

 

        A estrutura da frase é um fator relevante na seleção da variante. Foram consideradas apenas as estruturas em que a ocorrência apresentasse como antecedente um sintagma nominal (SN), uma vez que o antecedente sentencial aponta para o uso categórico da categoria vazia.  Os resultados dessa variável são apresentados na tabela a seguir.

 

Tabela 5 – A forma do ODA segundo a variável estrutura da frase

 

Estrutura argumental

do verbo

Pronome Lexical

Categoria Vazia

Ocorrências

%

Peso Relativo

Ocorrências

%

Peso Relativo

OD(SN)+ SP(OI/LOC)[5]

28/292

10

.38

264/292

80

.62

OD(SN)

152/1120

14

.52

968/1120

86

.48

OD(SN) + PRED

11/32

34

.66

21/32

66

.34

OD(SN) + S

22/36

61

.74

14/36

39

.26

Total

213/1480

14

--

1267/1480

86

--

 

A categoria vazia é favorecida, principalmente, em estruturas cujo verbo possui em sua grade temática, dois argumentos, um ligado a ele diretamente recebendo o caso acusativo e outro ligado por preposição de quem recebe o caso. Esse resultado parece apontar para preferência de se construir sentenças contendo apenas três constituintes realizados foneticamente, reproduzindo a estrutura básica do português SVO.

Nas sentenças em que a posição de objeto direto é ocupada por um elemento cuja interpretação semântica estrutural é ambígua, ou seja, quando um elemento recebe do verbo antecedente o caso acusativo, mas o verbo subseqüente lhe atribui papel temático de agente, caracterizando-o como sujeito, prefere-se preenchê-la com o pronome lexical. Essas construções, geralmente, ocorrem quando nessa posição encontra-se uma oração com verbo no infinitivo ou uma mini-oração[6], conforme demonstram os exemplos (03) e (04) respectivamente:

 

(03)  DOC: E do mais velhosi, qu’é que cê sabe dos mais velhos aqui do Cinzento,

os antigos?
INF: Eu num sei quase nada, né?
DOC: Cê nunca teve curiosidade de sabê comé que surgiu o Cinzento não?
INF: Sobe não, né?.. a vez, eu vejo elesi contá, mas num prendei na mente

assim não. (SP-03)

 

(04)                              (sobre o cravo)

INF:  Você colhe ele ININT, ele tem aqueles dentes, aqueles cachoi, você

quebra elesi sem folha [...] (SP-06)

                       

O PL é favorecido, quando satura uma outra estrutura de predicação, quer verbal como em (03), quer nominal como em (04).

Na análise aqui empreendida, relutou-se incluir tais contextos, uma vez que o objetivo era estudar o objeto direto, ou seja, o argumento interno selecionado pelo verbo. Nessas construções, apesar de o pronome ou a categoria vazia que a ocupa receber caso acusativo, não preenche sozinha a grade argumental do verbo, mas toda a oração da qual é sujeito. Em outras palavras, é a oração seguinte o argumento do verbo. No exemplo (03), cuja estrutura é OD(SN) + S, o verbo da segunda oração não pode atribuir caso nominativo a seu sujeito por ser infinitivo, resta ao verbo da oração anterior atribuir-lhe o caso acusativo. É a ambigüidade OD/SU favorece o uso do PL.

 

3.4. Referencialidade do ODA

 

Segundo Cyrino (1997), em estudo diacrônico, o traço referencialidade relacionado ao traço animacidade é bastante relevante no licenciamento da CV. Buscou-se observar, se, em comunidades de fala resultante do contato lingüístico, essa variável apresenta a mesma importância no papel do licenciamento da categoria vazia.

 

Tabela 6 – Distribuição das variantes de acordo com a referencialidade do antecedente do ODA

 

Referencialidade

Pronome Lexical

Categoria Vazia

Ocorr.

%

Peso Relativo

Ocorr.

%

Peso Relativo

[+específico/+referencial]

145/568

26

.65

423/568

74

.35

[-específico/+referencial]

54/648

8

.42

594/648

92

.58

[- referencial]

14/262

5

.36

248/262

95

.64

Total

213/1478

14

--

1265/1478

86

--

 

        Como se pode notar, o traço [+ específico] do antecedente favorece o uso da variante PL, assim como o [+animado]. Quando o referente pode ser localizado temporal e espacialmente, a CV é desfavorecida, porém sua freqüência nesse tipo de ocorrência ainda é bastante alta, 74%. Desse comportamento pode-se perceber que a CV tem comportamento mais livre que a variante PL, que tem seu uso condicionado não só pelo caráter semântico, mas também estrutural, como visto na  tabela 6.

Inversamente, a CV é favorecida à medida que o referente perde a referencialidade, como pode ser observado na última coluna da tabela acima.

Duarte (1986, p. 14), na análise de um corpus urbano, não considera os objetos diretos que sejam indefinidos e genéricos. No início desta pesquisa, resolveu-se também excluir tais dados, porém percebeu-se que, mesmo nesses contextos, os falantes da comunidade investigada, realizavam as três variantes nesta posição, onde era esperada a CV.

 

(07)  PL     INF: É, melhorando. Então acredito no  que os  mais velho fala

poque...eu mesmo num conhe...conheci negóço de enegiai aqui...meus filho já conhece elai [...] (CZ-01)

               

(08)   CV   INF: Faço tudo.[...]Eu vem de manhã, coloco o fêjãoi no fogo e

                               deixa ____i aí. CZ-01

 

(09)  SN    INF: Com remédio, comprava purgante, dava eles purgante, fazia  

                               azeite de baga e dava purgante [...] HV-13

 

3.5. Posição da ocorrência em relação ao antecedente

 

Pressupunha-se que, quanto mais distante a ocorrência de seu antecedente, seriam preferidas as variantes realizadas, mas isso não se confirmou ao se analisar a posição do antecedente em turno diferente. Nesse contexto, refletiu-se o resultado total (SN 16%, PL 12%, CV 72%) e o que favorece esse resultado é a presença do tópico discursivo. Resolveu-se então retirar este fator do grupo e analisar apenas a posição da ocorrência num mesmo do turno do falante. Os resultados obtidos podem ser observados na tabela 7, a seguir.

 

Tabela 7 – Distribuição das variantes de acordo com a posição da ocorrência em relação ao antecedente no mesmo turno do falante

Posição da

Ocorrência

Pronome Lexical

Categoria Vazia

Ocorr.

%

Peso Relativo

Ocorr.

%

Peso Relativo

O.Coord. sindética

10/130

8

.35

120/130

92

.65

O .Subord.

c/ anteced na OP

11/96

11

.43

85/96

89

.57

OP c/antecedente

na O .Subord.antep

07/ 51

14

.39

44/51

86

.61

Primeira Oração

Coordenada assindética

43/328

13

.47

285/328

87

.53

Outro  período

73/348

21

.60

275/348

79

.40

Segunda O .Coord.

assindética em diante

08 /32

25

.68

24/32

75

.32

Total

152/985

15

--

833/985

85

--

 

 

Quando o antecedente se encontra em outro período – ou seja, o OD anafórico se encontra mais distante do antecedente, é favorecido o preenchimento da posição de objeto direto. Na tabela, pode-se observar que a probabilidade de ocorrer um PL aumenta bastante nesse contexto. Recorrendo aos resultados do cômputo geral dos dados, verifica-se que também, nestes casos, a variante SN tem seu uso favorecido. Seu percentual de uso no contexto em questão sobe de 16% para 22%. Semelhante comportamento encontramos em contextos em que a variante ocorre a partir da segunda coordenada assindética em diante.

 

(14)         INF:   [...] Senhô com vinte lito de cacau, de cacau sequim, qu'é por causo chega aqui que vê tudo maduro, quebra ele, fumenta, bota ele dento de um saco plástico, (HV-22)

 

Nos contextos de coordenação, não há um comportamento regular entre as coordenadas assindéticas. Nessas orações, em que o antecedente encontra-se na oração anterior, contrariamente, às realizadas a partir da segunda posição, a categoria é vazia favorecida. Desse comportamento, pode-se inferir que o que interfere na realização da variante é a coesão existente entre as orações, quanto mais próxima a realização do anafórico do antecedente maior a coesão, e a CV pode ser utilizada sem comprometimento do enunciado; quanto maior a distância, menor a coesão e o preenchimento da posição é favorecido.

 

(15)  INF: [...]Já cavalo, não, quase que num cai não. Mas, se ele tivé de saltá uma

cercai, ele salta ___i.

 

Nas estruturas de coordenação sindética, independentemente da posição ocupada, é favorecida a CV, o que demonstra que elemento conector estabelece coesão entre as orações permitindo o esvaziamento da posição de ODA.

       

(16)  INF: pegô as cerca tudoi e desmantelô____idano presento pro home...(CZ-12)

 

Em períodos em que há uma relação de dependência entre as orações, estabelece-se uma relação de coesão bastante intensa, o que favorece o uso da CV, como se pode constatar nos resultados dos fatores que se referem a contextos de subordinação.

 

4. Variáveis sociais

 

        Dos fatores sociais quantificados, o programa selecionou como significativas a variável de gênero e a variável comunidade, já analisada anteriormente. Foram levados em consideração, mesmo sem terem sido selecionados pelo VARBRUL, os resultados referentes à variável faixa etária, cujos índices são relevantes à análise aqui empreendida.

 

4.1 Gênero

 

Geralmente, a análise dessa variável permite apontar qual o papel do homem e da mulher nos fatos lingüísticos, no sentido de apontar se um gênero é mais conservador que outro. Essas generalizações são feitas, baseando-se essencialmente, nos papéis exercidos pelos homens e mulheres na comunidade, que se refletem nos aspectos lingüísticos.

 

Tabela 8 – A distribuição das variantes segundo o gênero

Gênero

Pronome Lexical

Categoria Vazia

Ocorrências

%

Peso Relativo

Ocorrências

%

Peso Relativo

Feminino

105/770

14

.42

665/770

86

.58

Masculino

108/710

15

.58

602/710

85

.42

Total

213/1480

14

--

1267/1480

86

--

       

Da análise da tabela, pode-se perceber que a mulher, no dialeto rural analisado, mantém uma postura conservadora, visto que a freqüência das variantes reflete a freqüência do cômputo geral dos dados, enquanto os homens apresentam uma pequena alteração no valor da freqüência das variantes, que não se reflete significativamente nos pesos relativos.

 

4.2 A variável faixa etária

 

É a análise desta variável que permite ao pesquisador identificar se o fenômeno lingüístico variável focalizado reflete uma mudança em curso ou uma variação estável.

Mesmo não tendo sido esta variável selecionada pelo programa VARBRUL, considerou-se importante analisá-la tendo em vista que a freqüência das variantes comporta-se, de certa forma, contrariamente às expectativas desta pesquisa. Serão retomadas, para análise, todas as estratégias utilizadas na captação dos dados, ou seja, SN, PL, CV.

   

Tabela 9 – Distribuição das variantes  segundo a faixa etária dos informantes

Faixa etária

SN

PL

CV

TOTAL

ocor / %

ocor. / %

ocor. / %

20 a 40 anos

81 / 13

83 / 14

443 / 73

607

41 a 60 anos

107 / 16

92 / 14

459 / 70

658

+ de 60 anos

87 / 18

38 / 8

365 / 74

490

Total

275 / 16

213 / 12

1267 / 72

1755

 

          Os índices apontados na tabela acima apontam que, entre as estratégias de realização do ODA, a variante PL, considerada estigmatizada nos dialetos urbanos, tem sua freqüência reduzida entre os falantes da faixa III. Nessa faixa, são favorecidas tanto a CV, quanto a variante SN. Nas demais faixas, o uso do PL é levemente favorecido, passando de 12% para 14% a sua freqüência, enquanto decresce o uso da variável SN (16%, 13% , na faixa II e faixa I respectivamente). 

A variante CV apresenta índices bastante equilibrados, sendo desfavorecida apenas na faixa II (70%), em que há o favorecimento das demais variantes.

É importante notar a trajetória da variante SN neste dialeto: ela é favorecida na faixa III, exibe um comportamento neutro na faixa II e é desfavorecida na faixa I. Esse comportamento reflete um comportamento comum em situações emergenciais de contato, uma vez que no processo de aquisição de uma língua alvo, há perda de material gramatical e a manutenção de itens lexicais[7]. Por outro lado, o SN anafórico é igualmente uma estratégia de esquiva ao uso das variantes não padrão.[8]

Seguindo o proposto por Lucchesi (2000, p. 111) podemos inferir que a variante PL tenha sido introduzida, posteriormente, compondo um segundo momento do processo de aquisição de uma segunda língua em situação de contato. Para suprir a perda inicial dos materiais funcionais, Lucchesi propõe que ocorre uma recomposição gramatical do sistema, que pode se dar “por duas vias que envolve processos de gramaticalização”[9]:

 

a.                            ampliação (ou maximização) das funções dos (poucos) itens gramaticais que se conservaram no uso lingüístico da comunidade;

b.                            a utilização de itens lexicais para expressar relações gramaticais, ponto de partida do processo de gramaticalização.”

 

Pode-se inferir que o uso da variante PL, neste dialeto,  pode ser explicado tendo em vista o primeiro item apontado. Com a perda da morfologia verbal, tornou-se necessário o preenchimento do sujeito; o uso pronome ele introduzido nessa posição, posteriormente, estendeu-se à posição de objeto, que estaria vazia por terem sido os clíticos (elementos mais gramaticalizados) apagados, não encontrando obstáculo, uma vez que, nesse dialeto, a ordem da sentença é, essencialmente, SVO, licenciando a variante a receber caso acusativo estrutural.

        Poder-se-ia inferir também que, como essa variante é menos freqüente na faixa III, e também nas comunidades isoladas, seria mais recente nesse dialeto que a CV. Essa hipótese se explicaria pela difusão do dialeto urbano pela televisão, nas comunidades mais isoladas (Sapé e Cinzento) e, nas demais comunidades, através do contato com dialetos urbanos possibilitados não só pela televisão, mas também pela freqüente saída dos homens para trabalhar em outras regiões, visto que essa variante tem sua freqüência aumentada na fala de informantes do sexo masculino. 

        Uma última evidência em favor dessa hipótese, a qual não se pretende assumir antes da ampliação da pesquisa a um corpus urbano e também diacrônico, pode ser encontrada, ao se observar o gráfico 2 apresentado por Duarte (1986, p. 39)[10], em que  a autora apresenta a distribuição das variantes segundo a faixa etária e está reproduzido a seguir:

          

Gráfico 1 – Uso das três variantes segundo a faixa etária no dialeto urbano

 

 


 

 

                                    

 

 

Como se pode observar no gráfico 2, a variante PL, apresenta o mesmo comportamento encontrado na análise do corpus desta pesquisa. É mais freqüente entre os jovens e decresce à medida que aumenta a faixa etária. Comparando os resultados da autora com os alcançados nesta pesquisa e demonstrado no gráfico 3 abaixo, pode-se perceber também que os percentuais referentes a essa variante são mais altos[11] no corpus urbano que no rural, mesmo tendo aquele um número maior de variantes, visto que o clítico ainda é realizado.

 

 

 

5. Conclusões

 

Da análise dos resultados, duas hipóteses foram levantadas que necessitam de maiores investigações para serem confirmadas. A primeira leva em consideração a análise em conjunto dos resultados de duas variáveis extralingüísticas: comunidades e faixa etária.  Dessa análise, levanta-se a hipótese de que, relacionada à variável faixa etária, a variante PL poderia não ser tão antiga quanto a CV, nesse dialeto. De acordo com os resultados, a CV é favorecida, principalmente nas comunidades mais isoladas, Sapé, .60, e Cinzento, .53, onde também a freqüência de uso do PL é   menor que nas demais, apresentando pesos relativos .40 e .47, respectivamente. As demais comunidades mantêm contato com dialetos de outras regiões. Em Helvécia, houve grande saída de moradores para trabalhar em outras regiões, o que poderia ter favorecido a introdução de inovações lingüísticas na comunidade. Nos Arraiais de Rio Contas, o fluxo turístico é freqüente, o que permite que os falantes entrem em contato com dialetos diversos, inclusive urbanos. Acredito que seja esse o motivo para que os pesos relativos referentes à variante PL .57, para Rio de Contas e, .56, para Helvécia, sejam mais altos do que em Sapé e Cinzento

A segunda hipótese a ser considerada pode ser levantada a partir da comparação entre os resultados encontrados para o uso do ODA nos dialetos rural afro-brasileiro e  urbano. Dessa comparação pode-se inferir que esses dialetos apresentam tendências convergentes de mudança, no que se refere à realização do ODA de 3a pessoa. Enquanto o dialeto rural afro-brasileiro parte da ausência de um elemento gramatical realizado foneticamente para preencher essa posição com o pronome sujeito, ampliando a sua carga funcional; no dialeto urbano, assiste-se à substituição de um elemento mais gramaticalizado, o clítico acusativo, por um elemento menos gramaticalizado, o pronome de caso reto na posição de objeto direto, eliminando a marcação de caso morfológico dessa forma pronominal.  Apesar de esses comportamentos convergirem para incremento do PL, os dois processos de mudança são simetricamente opostos, uma vez que, no dialeto urbano, o uso do PL implica redução gramaticalidade, com a perda de marcação de caso morfológica; enquanto, no dialeto rural, ocorre um aumento no nível de gramaticalidade, com o uso do PL para ocupar  o lugar  da CV  e da repetição do SN. Esse quadro reflete a visão da formação da realidade lingüística brasileira como um processo bipolarizado, proposto por Lucchesi (1998 e 2001).

 

6. Referências bibliográficas

 

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[1]Tarallo (1993), Cyrino (1997)

[2] Corpus Base do Dialeto Rural afro-Brasileiro, dados que foram cedidos pelo  Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia.

 

[3] Cf. Duarte, 1986.

[4] Na comunidade de Helvécia, ocorre com maior freqüência a saída de seus membros para outras regiões do país, tais como São Paulo e Paraná. Rio de Contas é uma região turística, portanto há maior contato com falantes de outros dialetos.

[5] Na posição de SP foram considerados os termos que exercem a função de objeto indireto e de locativo na posição de argumento do verbo, sendo descartados os termos locativos em posição de adjunção.

[6] Do inglês small clause. Sobre o assunto, ver Haegman (1991)

[7] Lucchesi (2000, p. 111) propõe que em situação de comunicação emergencial, o falante tende a reter os itens lexicais, de significado referencial , e descartar os itens funcionais, de significação gramatical.

[8] Cf. Duarte, 1986, p. 69.   

[9] O conceito de gramaticalização utilizado por Lucchesi refere-se “a mudança de uma categoria léxica para uma funcional , associada à perda de conteúdo lexical”, cf. propõe Roberts (1993). Sobre gramaticalização, ver Castilho (1997).

[10] Deve-se levar em consideração que a distribuição das faixas etárias nos dois trabalhos não possuem total correspondência: Duarte considera quatro faixas etárias, como se pode ver no gráfico, além de a faixa etária composta pelos falantes com idade mais avançada tem seu limite bastante inferior ao proposto nesta pesquisa. Ver os gráficos.

[11] É mais alto, inclusive, o percentual dessa variante com antecedentes com traço[-animado], 7,6% enquanto nesta pesquisa encontrou-se,  nesse contexto, apenas 3%.

 


 

 

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

FIGUEIREDO, Maria Cristina. O objeto direto anafórico no dialeto rural afro-brasileiro do estado da Bahia. In: Revista Inventário. 5. ed., mar/2006. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/05/05cfiqueiredo.htm.

 

 




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