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Níveis lingüísticos na leitura inicial: uma aquisição gradativa?

 

Claudia Martins Moreira

UFBA / PPGLL - UESC

claudia@uesc.br

 

Resumo:

Tomando como base a concepção de que a aquisição da leitura sofre a interferência do sistema de escrita à qual a criança está exposta, pretendo neste trabalho examinar o papel da canonicidade lingüística nos diferentes estágios de aquisição da leitura. O foco incide sobre a leitura de palavras e frases.

Palavras-chave: leitura inicial – canonicidade lingüística – estágios de aquisição.

 

Abstract:

Based on the conception that reading acquisition is influenced by the writing system whose child is exposed, in this work I intend to examine the role of canonic linguistic structure in several stages of reading acquisition. It’s focused on the reading of words and sentences.

Key-words: emergent reading – canonic linguistic structure – reading acquisition stages.

 

 

Introdução

 

O problema da leitura no Brasil há muito deixou de constituir-se uma preocupação escolar para tornar-se uma das principais prioridades das campanhas do Governo e outras organizações. Ao que parece, a ausência de leitura e/ou a deficiência em leitura não apenas ficou evidenciada – alguns índices foram obtidos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) – como também a busca para melhorar essa realidade tornou-se uma bandeira nacional.

 

Motivados por essa preocupação, muitos dos estudiosos, especialmente da área da Educação, vêm desenvolvendo uma verdadeira campanha de motivação para a leitura desde as fases iniciais de escolarização. Acredito, entretanto, que a motivação não é o único nem o principal problema da leitura, antes há que se compreender quais os fatores intervenientes – sociais, lingüísticos, individuais – que geram essa dificuldade. Para tanto, é necessário que se possa ter uma compreensão mais exata do que é a leitura. Apenas a partir daí é que se pode sugerir aos professores algumas soluções para os problemas de leitura que esses profissionais vêm enfrentando nas suas aulas.

 

Visando a contribuir para essa discussão, especialmente no que tange aos aspectos lingüísticos envolvidos na aquisição da leitura, proponho-me avaliar a influência do princípio de canonicidade lingüística no domínio da palavra e da frase, ao longo dos diferentes estágios no desenvolvimento da leitura e observar as estratégias de leitura utilizadas pelas crianças nesses diversos estágios para se chegar a uma compreensão do processo de evolução da aprendizagem da leitura.

 

Os dados foram obtidos durante o projeto de pesquisa “Os estágios de desenvolvimento da leitura em LP” (MOREIRA, 2004), sob minha coordenação, desenvolvido no interior da Universidade Estadual de Santa Cruz e concluído no ano de 2004.

 

Quero salientar que, embora concorde que a leitura envolve muito mais do que a decifração, optei por focalizar a atenção apenas no processamento fonográfico e compreensão literal do que em problemas mais amplos, ou seja, que envolvam aspectos semântico-discursivos.[1]

 

 A partir do objetivo exposto acima, a hipótese geral desta pesquisa assim se apresenta: no que tange à leitura lexical (de palavras), prevê-se que, num primeiro estágio de desenvolvimento da leitura, as crianças não são capazes de processar e compreender palavras inteiras; num segundo estágio, são processadas as palavras com estrutura canônica, através da decifração fonológica; num terceiro estágio, as palavras canônicas são lidas instantaneamente e as não-canônicas, através da decifração fonológica; num quarto estágio, tanto as palavras canônicas como as não canônicas mais familiares são lidas instantaneamente, embora em alguns casos ainda possa existir decifração fonológica.

 

Quanto à leitura de frases, a hipótese formulada foi a seguinte: no primeiro estágio de desenvolvimento da leitura, as crianças não são capazes de ler e compreender frases inteiras; no segundo estágio, as crianças poderão compreender as palavras que compõem frases ou trechos de frases mais canônicas e simples, entretanto, em qualquer caso, a leitura passará pela decifração fonológica; num terceiro estágio, já será possível uma leitura fluente de frases com estruturas canônicas, com presença de compreensão; apenas no quarto estágio, as frases mais complexas com estruturas menos canônicas serão processadas, com a presença de compreensão.

 

1 O processamento em leitura

 

Embora a leitura[2] seja uma atividade altamente complexa, que envolve a interação de fatores diversos, pesquisadores do assunto tendem a explicá-la dividindo-a em níveis de processamento, quais sejam: nível lexical (leitura de palavras) ou sub-lexical (leitura de unidades menores, como a sílaba), nível frasal (leitura de frases), nível textual (leitura de texto).

 

Há entretanto uma diferença de concepção, donde se extraem duas posições básicas: a concepção modular e a concepção interativa. A primeira defende que o processamento lingüístico-cognitivo na leitura é feito em níveis seriais, que partem de uma análise das unidades gráficas (letras, sílabas, etc.); essa decifração, por sua vez, levará ao reconhecimento da palavra, que levará à compreensão da frase e posteriormente, do texto. Não há interação entre os níveis, a influência é apenas linear, de baixo para cima (VEGA,  M. et. al., 1990: 20). A concepção interativa, por sua vez, defende que a leitura não se dá de baixo para cima apenas, mas há uma intercomunicação entre os níveis, havendo tanto uma influência dos níveis menores sobre os maiores, como o contrário. Essa visão surgiu a partir de diversos estudos de leitura que evidenciavam a influência do conhecimento prévio sobre o desempenho do leitor.

 

Sobre o rótulo de concepção interativa situam-se os mais diversos pontos de vista, os quais se diferenciam quanto à ênfase maior ou menor que é dada ao papel da informação visual ou da informação não-visual durante a leitura. Assim, consideram-se interativas tanto a visão de Goodman (1976), que destaca o papel do conhecimento prévio, ou seja, centra-se sobre o processamento descendente, ou top-down, como a visão de Kintsch (1994), que dá relevância ao papel da estrutura textual, ou seja, estuda o aspecto ascendente da leitura, ou bottom-up. Observa-se que ambos são interacionistas, o que os diferencia é a predominância de um ou outro aspecto da leitura. Muitas pesquisas têm-se desenvolvido em favor do modelo interativo e tem-se observado constantemente a influência de níveis maiores sobre os menores. Entretanto, pelo estado atual das pesquisas, não se pode prever que a questão esteja encerrada; pois, como apontam alguns estudiosos, como Coscarelli (1999), a serialidade (ou modularidade) e a interatividade, durante o processamento em leitura, depende de algumas características do material lingüístico, do leitor e do contexto de leitura.

 

Esse modelo proposto se adapta melhor a esta pesquisa porque, ao mesmo tempo em que reconhece que a leitura é dinâmica, podendo sofrer influência de processamento de níveis mais altos sobre os mais baixos (concepção própria do modelo interativo), reconhece que, em determinadas situações, o processamento ocorre de forma modular e seriada, muitas vezes iniciando de níveis mais baixos até atingir os mais altos (concepção própria do modelo seriado). Essa visão é importante para a leitura inicial, porque há muitas razões para acreditar que crianças em fase inicial de leitura comecem processando qualquer material lingüístico de forma seriada e, só depois de adquirido o conhecimento alfabético, processem o texto mais acessível de forma interativa; havendo aí uma maior ou menor interatividade a depender da complexidade do texto. O trabalho de Moreira (1999), realizado com crianças brasileiras, dá indícios do que se disse.

 

Ocorre que as pesquisas em geral costumam tomar como sujeitos de pesquisa apenas leitores proficientes, ou seja, aqueles que já conhecem o sistema de escrita no qual o texto está escrito (os alfabetizados); estuda-se portanto apenas o processamento ocorrido durante a leitura. Com esta pesquisa, pretendo estudar não a leitura fluente, e sim, a leitura emergente; e não apenas o processamento leitor, mas as fases de desenvolvimento da habilidade leitora. Acredito, com isso, poder fornecer uma melhor compreensão do processo de aprendizagem da leitura e suas interferências lingüísticas e cognitivas, objetivando também entender melhor a fonte de muitas dificuldades na leitura fluente.

 

Um outro desvio recorrente nas pesquisas consiste em interpretar a leitura como apenas um dos lados do processo de aquisição, podendo ser comparada ao processo de escrita e transferindo os níveis da escrita para a leitura, o que tem conseqüências negativas para a pedagogia da leitura, como aponta Alvarenga (1985, p. 30):

 

A escola brasileira, ao trabalhar com os dois processos, na mesma ordem e velocidade, incorrerá em dois grandes equívocos. De um lado, estará ‘segurando’ a leitura: esta poderia desenvolver-se muito mais rapidamente libertando-se do atrelamento à escrita. Por outro lado, (...) estará ‘correndo’ com a escrita (certamente saltando etapas e, com isso, promovendo um fracasso maior): ela deveria desenvolver-se muito mais lentamente, através de um caminho que começaria nas grafias controladas por regras e se estenderia lenta e sistematicamente, pelos casos (um a um) de arbitrariedade.

 

2 Procedimentos da pesquisa

 

Os sujeitos dessa pesquisa foram crianças entre 4 a 9 anos de idade, do sexo feminino e masculino, de diferentes classes sociais. Para a seleção dos informantes, parti de uma amostra primária de 180 indivíduos, os quais foram selecionados inicialmente através das entrevistas. A amostra final foi distribuída em quatro grupos, divididos quanto ao tipo de contato com a escrita: o primeiro grupo foi composto de 08 (oito) crianças que ainda não haviam sido introduzidas no processo escolar de alfabetização – Educação Infantil. No segundo grupo, foram reunidas 08 (oito) crianças que se encontravam na série anterior à da alfabetização sistemática, iniciando o contato com o código escrito - no caso da escola pública, tal fase corresponde à pré-escola, para a escola particular, compreende o 2.º período. O terceiro grupo, por sua vez, compôs-se de 08 (oito) crianças que se encontravam na fase de alfabetização escolar sistemática (correspondendo, na escola particular, à classe de alfabetização, com diversas denominações e, na pública, ao 1.º ano do Ciclo Básico ou 1.º ano do Ensino Fundamental). Finalmente, o quarto grupo constituiu-se de 08 (oito) crianças que concluíram há um ano a aprendizagem sistemática da escrita (compreendendo a 1.ª série da escola particular, 2.º ano do Ciclo Básico da escola pública ou 2.º ano do Ensino Fundamental). Obteve-se, desta forma, um total de 32 informantes.

 

Para a realização das leituras individuais, o instrumento de leitura utilizado foi o protocolo verbal adaptado às crianças. Para este trabalho em especial, tomei como base os escores gerais das leituras de palavras e frases, concentrando-me apenas no aspecto lingüístico/canônico, sem considerar as demais variáveis (inerentes ao projeto de onde foram recolhidos os dados), como presença ou ausência de ilustração, leitura oral ou silenciosa entre outras. Para maiores informações sobre os resultados gerais ver Moreira (2004).

 

3 Avaliação das hipóteses

 

Para avaliação do aspecto lingüístico, foi necessário tomar como base empírica os conhecidos níveis lingüísticos: lexical e frasal. Para a análise de cada um desses, foram utilizados os dados obtidos nos testes de palavras e frases, nas duas modalidades (teste com ilustração e sem ilustração) e nas duas diferentes condições (leitura oral e silenciosa). Quanto à analise do tipo de estratégia ocorrida, foram utilizados apenas os testes na condição de leitura oral, visto não se obter aparato instrumental para avaliar o comportamento mental durante a leitura silenciosa.

 

A primeira hipótese específica lingüística refere-se ao nível lexical, cujos dados foram obtidos nos testes de leitura de palavras. Para a análise desta e das demais hipóteses lingüísticas, tomei como base o comportamento estratégico de cada criança, a partir da categorização de Moreira (1999)[3] e o desempenho das mesmas nos testes de compreensão. O mesmo foi feito para a leitura de frases. O que se observa pelo que pode demonstrar o gráfico a seguir é um comportamento diferenciado e bem definido de um grupo para o outro.

Figura 1 - Estratégias utilizadas na leitura de palavras. Fonte: Moreira, C. M. (2004).

Legenda: ADV: estratégia de adivinhação; SEG: estratégia de segmentação; LEIT-CONT: estratégia de leitura contínua. Os estágios correspondem aos grupos estudados.

 

Observa-se, no estágio 1, a utilização exclusiva da estratégia de adivinhação, o que pressupõe um desconhecimento do caráter fono-ortográfico da escrita. As crianças do estágio 2 continuam utilizando a estratégia de adivinhação em 50% (sendo esta a estratégia modal), mas não exclusivamente, tendo surgido já a estratégia de segmentação – que reflete uma consciência da natureza fonográfica da escrita – e de leitura contínua (visual) nas palavras familiares, caracterizando-se essas últimas como estratégias sub-modais. No estágio 3, há um aumento significativo, em relação ao estágio anterior, no uso de estratégias contínuas (caracterizando-se como a estratégia modal) e uma diminuição, também significativa, no uso de estratégias de adivinhação (caracterizando-se essa como sub-modal), mas o que é curioso é a inexistência da estratégia de recodificação, já que é esta uma estratégia que acompanha naturalmente o processo inicial de aquisição da leitura. Acredito que isso tenha ocorrido por um problema de computação: embora tenha havido um uso da segmentação neste estágio, o fato de a mesma não ter levado a uma leitura com acerto, força a criança tentar inferir a palavra pelo contexto, o que obriga o pesquisador a computar essa como uma estratégia de adivinhação. Quanto ao quarto estágio, observa-se nitidamente um declínio no uso de estratégias menos proficientes (caracterizando-se como sub-modais) e aumento das estratégias contínuas, mais proficientes, que se caracterizam como modais.

 

Quanto ao desempenho dos grupos no teste de compreensão, observe o gráfico que segue:

Figura 2 – Comparação do desempenho entre os grupos no teste de compreensão / nível lexical. Fonte: Id. Ibid.

Legenda: Q1: questão de compreensão referente a primeira palavra do teste: “batata”; Q2: questão referente à segunda palavra: “máscara”; Q3: questão referente à terceira palavra: “xarope”; Q4: questão referente à quarta palavra: “brinquedo”.

 

Há um nível gradativo de dificuldade lingüística da palavra (da Q1 à Q4) que, embora não tenha refletido uma diferenciação no uso das estratégias de leitura – e por esta razão mesma não expus a diferenciação no gráfico anterior –, reflete um desempenho diferenciado no teste de compreensão. No primeiro estágio (G1), como não houve leitura propriamente dita, considerei as respostas como meras tentativas de adivinhação da palavra, embora pareça curioso que justamente a última palavra tenha sido aquela para a qual não houve tentativa de compreensão, e a segunda, mais complexa, com índice muito pequeno de tentativa de compreensão ou grande de erro. No segundo estágio (G2), há um aumento no nível de acertos especialmente diante das palavras com estruturas mais canônicas (Q1 e Q3) e um pouco menor nas palavras com estrutura menos canônicas (Q2 e Q4). No terceiro (G3) e quarto (G4) estágios, há um aumento altamente significativo de desempenho no teste de compreensão em todas as palavras, havendo uma diferença pequena para mais no quarto estágio, o que está de acordo com o previsto.

 


Pelo o que apresentam os dados, encontro-me em posição de considerar que a primeira hipótese do aspecto lingüístico foi corroborada. A segunda hipótese específica do aspecto lingüístico diz respeito à leitura de frases. Foram analisados os resultados dos testes de frases, considerando-se os mesmos aspectos metodológicos para análise do nível lexical. Observe o gráfico seguinte:

Figura 3 – Estratégias utilizadas na leitura de frase. Fonte: Id. Ibid.

Legenda: ADV: estratégia de adivinhação; SEG: estratégia de segmentação; LEIT-CONT: estratégia de leitura contínua. Os estágios correspondem aos grupos estudados.

 

É visível a semelhança dos resultados entre o teste de palavras e frases: há um decréscimo gradativo das estratégias de adivinhação (de 100% no primeiro estágio, passando a 50% no segundo estágio, 45% no terceiro e 25% no quarto estágio). Em contrapartida, há um aumento gradativo nas estratégias mais proficientes, ou seja, leitura contínua (de 0% no primeiro estágio, passando a 25% no segundo, 55% no terceiro e 50% no quarto estágio, sendo essa última diferença de 5% pouco significativa, e demonstrando um desempenho bastante semelhante entre os dois últimos estágios). Fazendo uma análise pormenorizada do que gerou esse percentual discrepante (dando uma margem maior de acertos para o grupo 3), observei que o mesmo resultou do desempenho atípico de duas crianças desse grupo, oriundas da mesma turma. Esse fato me fez refletir sobre a importância do uso, em situações como essas, de um método abdutivo para inferir sobre a interferência da escola no processo de leitura. Inferir sobre o desenvolvimento do processo de leitura excluindo a interferência da escola é uma tarefa extremamente difícil. Apenas um método abdutivo ou uma pesquisa longitudinal daria conta deste aspecto – o que implicaria um acompanhamento do desenvolvimento da criança desde seu processo inicial de aquisição do letramento (já no primeiro ano de vida) até sua aquisição completa do código (por volta dos sete anos de idade).

 

Prosseguindo na avaliação, passo agora a analisar os resultados do teste de compreensão de frases. Para isso veja o gráfico em seguida:

 

Figura 4 – Comparação do desempenho entre os grupos no teste de compreensão / nível frasal. Fonte: Id. Ibid.

Legenda: Q1: questão de compreensão referente a primeira frase do teste: “A menina come uva”; Q2: questão referente à segunda frase: “A avó pede para o neto beber suco”; Q3: questão referente à terceira frase: “A criança brinca no parque”; Q4: questão referente à quarta frase: “A mãe gosta de jogar com o filho”.

 

O gráfico do teste de compreensão demonstra erros e acertos não sistemáticos no primeiro estágio (G1), gerado pelo fato de as crianças deste grupo terem apenas tentado adivinhar a resposta certa. Nos demais grupos, observa-se um resultado interessante: previa-se um nível maior de acertos para a primeira frase, nesses estágios, visto ser esta uma frase canônica do ponto de vista lingüístico; entretanto, o que se observa é um nível de erros maior do que o esperado. Revendo os registros audiovisuais, o comportamento das crianças me leva a concluir por um problema metodológico: uma vez que este teste de compreensão é diferente e mais complexo do que o anterior (de palavras), parece-me que esse resultado foi gerado pelo fato de as crianças não terem compreendido bem a tarefa no primeiro momento (primeira frase), o que gerou essa quantidade não prevista de respostas erradas. Esse fato sinaliza a importância de um trabalho de coleta rigorosamente cuidadoso quando se trata de criança, além de reforçar a importância do uso daquilo que chamamos “teste de aquecimento”[4]. Por outro lado, o desempenho nas demais frases é muito representativo da hipótese elaborada. Analisando o comportamento das crianças no segundo estágio (G2), observa-se um nível decrescente de acertos da segunda até a quarta frase, o que está rigorosamente de acordo com o previsto. No terceiro estágio (G3), a tendência segue a mesma linha havendo percentual maior de acertos neste estágio em relação ao anterior. O único fato que destoa do esperado é o alto nível de acertos na terceira frase, o que se justifica novamente pelo comportamento atípico das duas crianças mencionadas alhures. O comportamento das crianças no quarto estágio (G4) é aquele que reflete mais sistematicamente o que se previu na hipótese inicial.

 

Dessa forma, a despeito das considerações acima feitas e enfatizando a necessidade de um maior controle da situação de experimentação, acredito que os indícios concorram também para uma corroboração da segunda hipótese lingüística.

 

Considerações finais

 

Depois de tudo o que se disse até aqui, caberiam algumas considerações a respeito das implicações desses achados para a teoria sobre leitura inicial e para a pedagogia de leitura no ensino fundamental, especialmente no Ciclo Inicial.

 

Quanto às implicações teóricas do que aqui se apresentou, quero considerar como primeiro aspecto o fato de que esta pesquisa coloca-se de acordo com a concepção de que o processo de aquisição da leitura se dá em estágios gradativos. Não se pode estabelecer a idade ou série escolar em que as crianças adquirem determinadas competências, mas os resultados podem ilustrar a conclusão de que a aquisição se dá em estágios e que, em virtude de a escrita em língua portuguesa ser fonográfica, os estágios seguem um percurso do mais canônico ao menos canônico, e dos níveis mais baixos (palavras) aos mais altos (textos)[5].

 

Não quero com isso dizer que as crianças que ainda não chegaram à alfabetização sistemática não saibam ler textos; isso é perfeitamente possível. Entretanto, não é provável que ela saiba ler texto de maneira autônoma antes de tornar-se competente para ler palavras e frases. Isso é particularmente interessante para o ensino, visto que há algumas hipóteses, a meu ver ou ingênuas ou precipitadas, de que é possível ensinar a ler através dos textos. É possível sim utilizar textos na escola desde a Educação Infantil. Não é apenas possível como desejável. Mas, para o ensino sistemático da leitura e escrita, será certamente necessário que esse texto seja segmentado em partes cada vez menores para que, aprendendo a “técnica” da leitura, a criança possa ser capaz de gradativamente ler sozinha parcelas cada vez maiores até adquirir-se a competência para decodificar, compreender, interpretar e produzir escritos socialmente autorizados como textos. A partir do momento que o texto é segmentado em partes – seja lá quais partes forem – ele deixa de ser um texto. Então, como posso afirmar que a criança aprendeu a ler “com” texto? Posso no mínimo admitir que ela aprendeu a ler “a partir” do texto.

 

Um outro aspecto a considerar é que este trabalho evidencia ser a leitura inicial, assim como a proficiente, regida pelo uso de estratégias e, mais ainda, as estratégias do leitor iniciante são diferentes - e, por isso, devem ser vistas sob um outro paradigma - daquelas utilizadas pelo leitor proficiente. Assim, o que é considerado como uma boa característica de leitura proficiente não é necessariamente considerado para a iniciante. Para citar um exemplo, se o leitor proficiente faz inferências constantes e reconhece instantaneamente uma palavra, isso é considerado um bom indício de leitura. Entretanto, se uma criança, que ainda não conhece completamente o código, tentar inferir pelo contexto, isso vai levá-la à adivinhação, não à compreensão. Essa adivinhação pode ser eficiente para aquele momento, mas, se assim ela se comportar o tempo inteiro, nunca ficará apta a agir sobre uma palavra nova, decifrando-lhe para compreendê-la. O que estou querendo afirmar é que acredito ser a passagem pela decodificação necessária para todos os que adquirem uma escrita alfabética. O que se deve fazer, todavia, é evitar que a mesma continue sendo utilizada em excesso, mesmo depois que essa aquisição se completa.

 

Uma outra questão é a evidência de que as estratégias se diferenciam à medida que as crianças vão ampliando sua concepção acerca da escrita. Esse pode ser um indício de que, ao longo das experiências do leitor com textos, ele se aprimora cada vez mais no uso que faz das estratégias para ler, ele ganha um maior controle da sua leitura e, consequentemente, ele se torna cada vez melhor leitor desde que esteja envolvido constantemente e produtivamente com a atividade de leitura. As estratégias seriam, portanto, um excelente preditor das características da leitura.

 

Também é importante dizer que o uso das estratégias aqui levantadas parece sofrer uma grande influência do sistema de escrita da língua portuguesa. Provavelmente, se houvesse uma tentativa de realização desta pesquisa com crianças expostas a sistemas de escrita diferentes, os resultados seriam diferenciados.

 

Embora essa afirmação pareça muito categórica, prefiro encará-la como realista. Se a escrita portuguesa – por sua natureza fonográfica – busca primordialmente “representar” os “sons” da língua, poderia se concluir que a sua leitura pressupõe a “sonorização” como forma de decodificação para uma nova codificação (compreensão). Todavia, o termo “primordialmente” acima perde sua relevância ao objetar-se que a escrita hoje faz muito mais do que recodificar[6] a fala em grafia, havendo representações de várias naturezas imbricadas na escrita – ao lado das representações fonológicas, há as diretamente semânticas, pragmáticas, afetivas entre outras. Por outro lado, não há como objetar que a escrita nem por isso perde sua face fonográfica, e aí o termo “primordialmente” volta a ganhar relevância. E a prova disso é que, a par de tantas interpretações quantos forem os leitores, só há um nível em que a leitura é uniforme para todos os leitores, o fonológico. Seria portanto perfeitamente compreensível entender por que a criança começa sistematicamente por aí, para ir progressivamente adentrando-se nos outros níveis da leitura. Nesse sentido, acredito que a leitura inicial, retomando a conhecida hipótese da ontogênese refletindo a filogênese, reflete a característica da escrita portuguesa ao passo que a atualiza, à medida que as outras marcas vão se constituindo no processo aquisicional da criança. Nesse sentido, os resultados podem levar à conclusão de que o leitor inicial se volta primordialmente - e em alguns momentos, exclusivamente - para a recodificação dos sinais escritos em sons, para recorrer ao seu conhecimento das palavras faladas. Essa recodificação vai se ampliando, e o leitor, sendo auxiliado pela memória e atenção, atinge a leitura compreensiva.

 

Mas onde ficaria a função social da escrita nesse processo inicial? Penso que a aquisição da escrita pressupõe a aprendizagem da escrita enquanto “signo cultural”, estando aí implicada a noção de letramento: aprende-se não apenas a escrita enquanto técnica, como também a usá-la em situações diversas, fazendo dela um conhecimento constituinte do sujeito social. No interior dessa aprendizagem ampla, situa-se a aquisição da escrita enquanto código, ou seja, a compreensão e uso da relação fonema/grafema, que constitui a base alfabética da escrita portuguesa. Essa compreensão vai na direção da idéia de Pino (2003: 138), quando afirma: “é discutível se esses grafemas constituem ou não verdadeiros signos, pois, em realidade, formam um código (grafêmico) com uma simples relação de equivalência com outro código (fonético)”.

 

É importante se fazer uma diferença entre a natureza ampla e restrita da escrita para que possa deixar claro aqui que, quando optei por compreender o processo de aquisição do código – ou seja, da relação fonema/grafema na escrita – não significa que estou negligenciando os outros aspectos e sim, que estou tomando como foco um dentre os diversos aspectos que compõem a aquisição da escrita. Além disso, tomá-lo separadamente não é imaginar que a aquisição se dê em etapas separadas, mas é uma atitude metodológica, visto que não acredito poder-se explicar um objeto tão complexo tomando-o na sua complexidade, sob pena de explicar tudo sem explicar nada.

 

A mesma relação amplo/restrito que se coloca para a escrita, coloca-se, consequentemente, para a leitura. Ler é muito mais do que decodificar e codificar. Ninguém duvida dessa asserção. Penso inclusive que a aprendizagem da leitura enquanto “leitura do signo” (correspondente à aquisição da escrita como signo) não se inicia pela oralização da escrita, mas por manifestações mais amplas e não tão bem explicadas pela lingüística, embora haja muitos trabalhos interessantes como o de Mayrink-Sabinson (1998). Entretanto, sabemos que a leitura implica, também, a decodificação/codificação.

 

Quanto ao papel da instrução nessa fase inicial, quero enfatizar, embora crendo na capacidade que tem a criança de aprender sozinha, pelo seu contato com os objetos que a rodeiam - e isso se mostra muito evidente pela sua capacidade de elaborar estratégias durante a leitura - que a contribuição dos pais e da família é fundamental, no sentido de fornecer situações ideais para que a criança desenvolva boas habilidades de leitura. Já se foi o tempo em que os pais eram proibidos de contribuir na educação escolar do seu filho, sob pena de que fosse dada a orientação errada. Dessa forma, acredito que é chegada a hora de salientarmos a participação dos pais no processo geral de letramento da criança e no processo específico de aprendizagem da escrita. Uma situação de letramento seria contar e ler histórias para criança, visto que esse contato efetivo com textos, não apenas ouvindo histórias lidas, mas também acompanhando histórias contadas sem a presença do texto - levando a criança a comparar as duas prosódias - abre-lhe as portas para a compreensão da função do texto escrito para a sociedade.

 

Ainda mais evidente é o papel que a escola desempenha no processo de aquisição da leitura. Isso, ao que parece, é desconhecido pela Escola, ou pelo menos são desconhecidos os caminhos para levar ao êxito. Há muito, a Escola tem relegado a leitura a um segundo plano durante o processo escolar de alfabetização. Quando alguma atenção é dada, o foco é apenas na questão da motivação, enquanto a cognição é posta de lado. Ora, onde não há conhecimento, não há motivação. É preciso saber como fazer para se sentir motivado a fazer. O que a Escola necessita é dar uma atenção aos aspectos cognitivos da leitura. E muito desse desprezo, é necessário que se diga, deve-se às poucas produções científicas voltadas para este aspecto, ou seja, não ocorre por simples desinteresse do professor.

 


 

[1] A opção por este tipo de análise de modo algum deve ser interpretada como uma visão reducionista. A decodificação e a compreensão literal são alguns dentre os diversos níveis de leitura – seriam os níveis mais baixos dentro de uma hierarquia que teria como nível mais alto a interpretação global. Assim, dizer que ler é muito mais do decodificar implica a compreensão de que ler seja, também, decodificar; é, portanto, por essa faceta da leitura que me interesso neste trabalho.

 

[2] A palavra leitura aqui deve ser tomada em seu sentido restrito (lingüístico), ou seja, não estou considerando aqui as diversas acepções mais amplas de leitura, como leitura imagética entre outras.

 

[3] A autora classifica as estratégias de aquisição da leitura em quatro modalidades, sendo consideradas aqui as seguintes estratégias: estratégias de adivinhação (ADV), mecanismo utilizado na situação em que a criança “finge” estar lendo; segmentação (SEG), decifração de letras ou sílabas; e leitura contínua (LEIT-CONT) que consiste na leitura lexical, sem segmentação silábica. Dentre as estratégias de decodificação, a última é a mais eficiente, ou seja, a que melhor leva à compreensão.

 

[4] O “teste de aquecimento” consiste numa espécie de preparação para a tarefa. O mesmo era realizado em todas as seções de leitura, antes do “teste principal”,  visando unicamente deixar a criança alerta para a tarefa, ao mesmo tempo em que o instrutor se certificava de que as orientações foram realmente compreendidas pela criança.

 

[5] A palavra texto está sendo empregada aqui numa designação estrutural: um unidade lingüística composta de blocos de sentido (frases ou orações) estruturalmente menores, que se tecem formando um sentido global. Conquanto os textos possam ser escritos ou orais, empregarei sempre a palavra texto ao longo deste trabalho referindo-me ao texto escrito, para evitar excesso de repetição.

 

[6] Recodificar é usado no sentido de Moreira (1999), transferir de um código para outro código (do oral para o escrito neste caso).

 

 

 

 

Referências Bibliográficas:

 

ALVARENGA, D. Leitura e Escrita: dois processos distintos. Educação Revista, Belo Horizonte, n. 7, p. 27-31, jul. 1985.

 

COSCARELLI, C. V. Leitura em ambiente multimídia e a produção de inferências. 1999. 372f f. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Lingüísticos, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

 

GOODMAN, J. K. Reading: a psycholinguistic guessing game. In: SINGER, H.; RUDELL, R. B. (Ed.) Theorical models and process of reading, Delaware, Internacional Reading Association (IRA), Delaware, n. 19696, 2 ed. p. 4 – 38, 1976.

 

KINTSCH, W. The role of knowledge in discourse comprehension: a construction-integration model. In: RUDELL, R. B.; RUDELL, M. R.; SINGER, H. (Ed.) Theorical models and process of reading, International Reading Association (IRA), Delaware, n. 19714, 4 ed., p. 951-995, 1994.

 

MAYRINK-SABINSON, M. L. Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita. In: ROJO, R. (Org.) Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas: Mercado de Letras, p. 61-86. 1998.

 

MOREIRA, C. M. O uso de estratégias de leitura na fase inicial de aprendizagem da lectoescritura. 1999. 189 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Centro de Pós-Graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

 

______. Relatório Final: os estágios de desenvolvimento da leitura em LP. Ilhéus, 2004. 73 f.

 

PINO, A. Língua e escrita: origem e função. Educação e Linguagem. São Paulo, n. 7, p. 128-148, jan-jun. 2003.

 

VEGA, M. de; CARREIRAS, M.; GUTIÉRREZ-CALVO, M.; ALONSO-QUECUTY, M. L. Lectura y comprensión: una perspectiva cognitiva. Madrid: Alianza Editorial, 1990. 430 p.

 

 

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO

MOREIRA, Claudia. Níveis lingüísticos na leitura inicial: uma aquisição gradativa? In: Revista Inventário. 5. ed., mar/2006. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/05/05cmoreira.htm.

 

 




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