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Mudanças morfossintáticas e ensino de língua portuguesa:na boca e no papel
Rute Paranhos Silva Mendes PPGLL - UFBA
ruteparanhos@ig.com.br
Resumo: Muitos alunos têm escrito seus textos sob a influência da fala, daí serem alvos de freqüentes críticas daqueles que lidam com tais produções. Neste artigo, não se tem a pretensão de justificar a escrita atual dos estudantes; mas, à luz dos estudos desenvolvidos na disciplina Mudanças Morfossintáticas e Sintáticas na História da Língua portuguesa, abordar possíveis influências da fala na escrita. Palavras-chave: fala, escrita, ensino, estudantes, influências
Abstract: Em général, les élèves écrivent leurs textes sous l’influence de la langue orale. Cela suscite des critiques de la part des professeurs. Dans cet article, on ne prétend pas justifier l’écrite actuelle des étudiants; mais à partir des études de la discipline Changements morphosyntaxiques et syntaxiques dans l’histoire de la langue portugaise, aborder les possibles influences de la langue orale sur l’écrite. Les mots clés: parole, écrite, enseignement, étudiants, influences.
A boca no papel
O garoto da vizinha me pediu que eu o ajudasse a fazer (a fazer, não, a completar) um trabalho escolar sobre a boca. Estava preocupado porque só conseguira escrever isto: “Pra que serve a boca? A boca serve pra falar, gritar e cantar. Serve também pra comer, beber, beijar e morder. Eu acho que a boca é um barato”. Queria que eu acrescentasse alguma coisa.
- Que coisa?
- Qualquer coisa, ué. Escrevi só quatro linhas, a professora vai bronquear.
- Mas em quatro linhas você disse o essencial. Para mim, só faltou dizer que a boca serve também para calar. Em boca fechada não entra mosquito.
- Isso não dá nem uma linha – e os olhos do garoto ficaram tristes. – Por favor, me ajude...
Então resolvi fazer a minha redação, como aluno ausente do Colégio Esperança, e passá-la ao coleguinha, a título de assessor de emergência.
A boca! Tanta coisa podemos falar sobre a boca, mas é sempre por ela que falamos dela. Até a caneta e o lápis são uma espécie de boca para falar sobre a boca. Eles vão riscando e saem as palavras como se saíssem por via oral. (Risquei a expressão “por via oral”. É muito sofisticada, ninguém vai acreditar que fui eu que escrevi. Mas foi sim).
A boca é linda quando é de mulher que tem boca linda. Fora disso, nem sempre. A boca é muito rica de expressões, mas não se deve confundi-la com a chamada boca rica (mordomia, negociatas, pregão de ações da Vale do Rio Doce aos milhões etc.). A boca de que estou falando, aliás, escrevendo, pode ser alegre, amarga, ameaçadora, sensual, deprimida, fria, sei lá o quê. Uma das bocas mais gozadas que eu já vi foi a boca-de-chupar-ovo, uma boquinha de nada, da minha tia Zuleica. Se fosse um pouquinho mais apertada, eu queria ver ela se alimentando – por onde? Mas esta boca está fora de moda, só aparece no jornal, nos retratos das melindrosas de 1928, que faziam a boca ainda menor desenhando o contorno com batom. Os lábios ficavam de fora, longe.
Estou lendo escondido as poesias de Gregório de Matos. Dizem que ele tinha o apelido de Boca do Inferno por causa dos negócios que escrevia e que eram infernais. Infernais no tempo dele, pois na rua e em toda parte já escutei coisas mais cabeludas, xii!...
Toquinho canta uma letra que fala em boca da noite, acho que ele queria falar no anoitecer. É bonito, mas não consigo imaginar essa boca na cara da noite. Sou mais a boca do dia, que não sei se alguém já teve a idéia de falar dela, mas o amanhecer engolindo a escuridão da noite é mais legal que o anoitecer papando os restos do dia. Boca por boca, não ando atrás da boca livre, que aliás nunca passou perto de mim, e só um grupo consegue, os privilegiados. Se a boca fosse livre pra todos, então a vida seria melhor. É a tal história: quanta gente fazendo boquinha pra conseguir o quê? Nada. E com quatro ou cinco bocas em casa pra sustentar. Diz-se que o uso do cachimbo faz a boca torta, e eu pergunto: por que não botar o cachimbo ora no outro canto da boca, pro torto endireitar? Se o vatapá põe a gente de água na boca, me expliquem por que, depois de comer, o cara pede um copo d’água.
Gente que não admite discussão nem leva desaforo pra casa manda logo calar a boca. Mas já vi gente dando palmadinha na própria boca e dizendo: “Cala-te boca”. E ela obedece. Às vezes já é tarde, a boca disse uma besteira inconveniente, e o jeito é o cara se lastimar, com cara de missa de sétimo dia: “Ai, boca, que tal disseste!”. E assim, de boca em boca, vai correndo o dito maldito. Me disseram que um cara bom de discurso, palavreado fácil, como certos deputados e prefeitos por aí, merece o título de boca de ouro. Fala tão bonito que a gente vê barrinhas de ouro saltarem da língua dele. Mas é só de mentirinha. Esse ouro não melhora a sina do povo nem a nossa dívida externa, que é uma boca larga imensa, engolindo todas as reservas da gente. E contra essa história de inflação, custo de vida e tal e coisa, nem adianta mesmo botar a boca no trombone. Os lá de cima fazem boca-de-siri – ou, senão, boca de defunto, porque, como advertia o saudoso Ponte Preta, siri, mesmo sem boca, já está falando.
E eu faço igual, além do mais porque já não estou em idade de fazer redação em colégio.
Carlos Drummond de Andrade
Introdução
Segundo Tarallo (1991, p. 56), o neogramático Hermann Paul foi aparentemente o primeiro a isolar a língua falada como objeto mais legítimo para estudos lingüísticos. No que tange ao ensino da disciplina Língua Portuguesa, mormente na produção de textos escritos, é possível identificar a boca no papel.
Reconhecidamente, os alunos têm escrito seus textos sob a influência da fala, daí serem alvos de ferrenhas e freqüentes críticas daqueles que lidam com tais produções. São professores, diretores, pais e leitores que rotulam os jovens redatores do ensino médio e superior de “incompetentes”, por não saberem escrever. Esse julgamento se deve ao fato de os textos desses alunos apresentarem neologismos, troca de onde por aonde ou vice-versa, confusão quanto ao uso dos dêiticos e anafóricos, sem contar o uso de particípios regulares ou irregulares. Isso, além de aspectos ortográficos, concordância, regência e pontuação que não serão aqui enfocados.
Ao buscar no ontem a raiz do hoje, ao se tentar estabelecer caminhos que foram percorridos até se chegar à situação atual, percebe-se que a imensa gama de variedades de fala está condicionada por fatores como sexo, idade, nível de escolaridade do falante.
Aqui não se tem a pretensão de justificar a escrita atual dos estudantes, universitários ou não; mas, à luz dos estudos desenvolvidos na disciplina Mudanças Morfossintáticas e Sintáticas na História da Língua Portuguesa, abordar possíveis influências da fala na escrita.
Aprende-se o que se ensina?
Julga-se, às vezes, o livro pela capa; daí a falibilidade de tal julgamento. Em aulas de Língua Portuguesa, é comum a recomendação de que os alunos leiam, leiam e leiam para que possam escrever melhor. Os “grandes escritores” são tomados como referência do bem escrever, ao longo dos anos. Também alguns deles, naturalmente, quiseram colocar a boca no papel, como se pode verificar no oitavo parágrafo, contando-se a partir da linha imediata ao título do texto de Drummond: “A boca de que estou falando, aliás, escrevendo...”. Do ponto de vista gramatical, as duas linguagens, escrita e falada, apresentam características específicas, cientificamente comprovadas, conforme Andrade e Henriques (1999, p. 34-35).
Os autores acima mencionados ainda apresentam como exemplo de oralidade na escrita o texto a seguir, onde se constata repetição de palavras (poesia, você, aquele, poeta), tópico/ comentário (A poesia, ela traz consigo esse caráter...), presença do verbo dizer (...como é que eu vou dizer?[...] em condições, digamos, socialmente adversas...), mudança de pessoa gramatical durante o discurso (Você se dedicar [...] A poesia não te dá...).
A poesia, ela traz consigo esse caráter assim meio de, como é que eu vou dizer? Uma coisa meio masoquista. Você se dedica dez anos a vender banana, montar uma banca para vender banana ou repolho, você vai ganhar muito mais do que fazendo poesia. A poesia não te dá nada em troca. Chego, às vezes, a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na programação genética. Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é direito. Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de marginalidade, essa tradição moderna, romântica, do século XIX pra cá, do poeta como marginal, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido, enfim, em condições, digamos, socialmente adversas, negativas. (Leminski, 1987, p. 284-285.) (grifo nosso).
Em nome da liberdade de expressão, a literatura abriga inúmeros exemplos daquilo que se critica freqüentemente nos textos dos alunos. No texto A boca, no papel, Drummond escreveu em lugar do aluno, porém usou da liberdade que lhe era devida e abusou do conhecimento que tinha a respeito do tema. A estrutura textual, o excesso de informação não minimizam a coesão nele presente. Pode tratar-se de uma tentativa planejada de produzir um texto semelhante às redações escolares. Há um desfilar de várias bocas tenuemente relacionadas, segundo Ulisses Infante (1998, p. 105). Logo, é um texto que serve de exemplo do que não se deve fazer, segundo orientações de manuais de produção textual.
Neologismos, apresentados como característica da linguagem oral, saltam à escrita com base na oralidade e sua formação normalmente atende ao que se ensina nas aulas de Língua Portuguesa. Com base nos processos de formação de palavras no cotidiano, aparecem, inicialmente em textos orais, expressões do tipo:
- “Já descarguei.” (Equivale a “Já dei descarga” depois de usar o vaso sanitário.) - “Um dia escurece, outro clarece.” (clareia) - “Mãe, deixe eu videogeimizar.” (brincar com o vídeo game) - “Se eu ficar em casa me dá desimpaciência.”
O que se ensina surge de forma nova na fala e também na escrita; contudo, talvez por não crer no trabalho que se faz, é comum dizer que os alunos não aprendem.
Celso Cunha (1970, p. 29) declara que a história de uma língua é justamente a história de suas inovações; mas ao aluno não se dá a possibilidade de demonstrar o aprendizado mediante exemplos próprios, neologismos. A chamada licença poética abre um leque de alternativas aos grandes escritores, enquanto a tradição gramatical inibe a inventividade popular.
Cunha (op. cit., p. 48) diz, ainda, que a história da estrutura funcional de uma língua não pode separar-se da história dos falantes que a modificaram, recriaram-na, ao longo do tempo. Então, sendo o aluno sujeito dessa história lingüística, por que a escola desmerece, deprecia o saber discente, quando, em nome do purismo lingüístico, não permite variação e possibilidade de mudança?
Mattos e Silva (1996, p. 32) diz que se torna cada vez mais difícil a implantação de um “dialeto da escola”, pautado pela norma prescritiva tradicional. À medida que a fala popular é estigmatizada, eleva-se a dificuldade pedagógica de incutir o padrão nos alunos. Eles falam o brasileiro e a escola exige deles o português padrão, “europeizado”.
Sobretudo no português escrito, a língua não lhes parece materna, mas estrangeira.
Segundo Faraco (1991, p. 14), o conservadorismo da escrita se deve ao fato de ela ser realizada por meio de uma substância mais duradoura que o som, ter dimensão de permanência, o que falta à língua falada. Isso favorece o exercício do controle social mais intenso sobre ela e o bloqueio à entrada de formas inovadoras que brotam da fala.
Contrastando a boca e o papel
Mudanças emergem da heterogeneidade e esta é ordenada. Faraco (op. cit., p. 114) assinala que a falta de unidade e uniformidade total é característica das diferentes variedades de qualquer língua.
Qualquer mudança parte do uso, podendo ocorrer também por analogia. A nova forma pode levar ao desprezo da anterior, pois o mecanismo analógico parece ter um papel otimizador. Fatores sociais decidem em que medida se cumprem as tendências de um dialeto. Assim, é o contraste língua escrita e língua falada uma possível fonte de detecção de eventuais mudanças em progresso.
O contraste leva a perceber fenômenos inovadores em expansão na fala e que não entram na escrita. Dessa forma, o aluno, tendo de escrever, sente dificuldades específicas com certas estruturas que, embora correntes na boca, continuam inaceitáveis no papel. Ouve-se e também é dito:
- “Xeu ficar de frente pra ele.”
(Deixe eu ficar ou deixe-me ficar frente a ele.)
- “Vambora.” (Vamos embora ou em boa hora.) – a segunda expressão é mais antiga.
- “Cês percebem...” (Vocês percebem...)
- “Estou míuri.” (Estou me urinando)
Em relação ao último exemplo de fala cotidiana, os estudos desenvolvidos por Afrânio Gonçalves Barbosa (2000, p. 248) serão aqui rememorados. Ele menciona a mudança de tendência, no século XVIII, manifesta na escrita, quando textos remanescentes servem de informantes, para que se compreendam as mudanças de longa duração. Ressalta que, quando o brasileiro diz que “estava subindo”, conserva a norma geral de uso do século citado, enquanto o falante português apresenta o resultado de uma inovação, naquele mesmo período, “estava a subir”.
Mas as críticas não cessam, enquanto a língua surpreende. A economia lingüística sugere a eliminação do que não se julga necessário. “Estou míuri”, pragmaticamente, parece uma declaração de caráter emergencial equivalente a “Estou mica”. Fisiologicamente, a necessidade primeira é o vaso sanitário e não a preocupação com o uso do gerúndio.
Cada variedade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e socioculturais do grupo que a usa. “Míuri e Mica” aparecem como inovação gerundial entre telefonistas que não podem abandonar o posto ou serviço intensivo prestado à comunidade, sem que haja um substituto imediato.
Assim se mostram as limitações da escrita, em que não se admite tamanha expressividade, exceto na literatura.
A boca brasileira no papel
Para Napoleão Mendes de Almeida (1965, p.3), “a língua é a mais viva expressão da nacionalidade e saber escrever a própria língua faz parte dos deveres cívicos”. Que língua, então, os alunos brasileiros devem escrever: Português ou Caipirês?
Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um – só um – iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como “Não se ataca as causas” ou “Vende-se carros”.
Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural! O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto ingênuo passa batido. Sabe porquê?
O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito – o outro lado – não pratica a ação.
Há duas formas de construir a voz passiva:
a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
b. com o pronome se (passiva sintética): Estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo, mas firme.
Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos).
Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. (Dad Squarisi).
São também brasileiros os professores de Língua Portuguesa, entretanto, infelizmente, grande parte deles ignora ou menospreza a história da língua e a necessidade de vê-la como expressão de vida. São cidadãos que tiveram o privilégio de acesso à escola, às academias e, por isso, alguns minimizam variedades lingüísticas resultantes de fatores sociais, culturais, geográficos, estilísticos e temporais.
Em sua prática pedagógica, recomendam os gramáticos e escritores brasileiros como modelos a serem imitados, à proporção que repelem as evidências de que somos diferentes do nosso colonizador. O português europeu (PE) e o português brasileiro (PB) merecem igual respeito.
A leitora Elza Marques Marins me escreve uma carta divertida estranhando que “brasileiro” seja o único adjetivo pátrio conhecido terminado em “eiro” que, segundo ela, é um sufixo pouco nobre. Existem suecos, ingleses e brasileiros, como existem médicos, terapeutas e curandeiros. As profissões de lixeiro, coveiro e carcereiro podem ser respeitáveis, mas o “eiro” é sinal de que elas não têm status. É a diferença entre jornalista e jornaleiro ou entre músico ou musicista e roqueiro, timbaleiro ou seresteiro. Há o importador e há muambeiro. “Se você começou como padeiro, açougueiro ou carvoeiro” – escreve Elza – as chances são mínimas de acabar como advogado, empresário, grande investidor ou latifundiário, a não ser que se dê o trabalho de ser político antes”. Aliás, há políticos e politiqueiros. Continua Elza: “Eu nunca vou chegar a colunável ou socialaite se comecei como faxineira ou copeira. Você pode
ser católico, protestante, maometano, budista ou oportunista ou então ser macumbeiro”. Mas a leitora nota que o dono do banco é que é banqueiro enquanto o funcionário é bancário, no que talvez seja um julgamento inconsciente de caráter feito pela língua.
Elza – que, por sinal, se considerava uma harpeira até começar a tocar numa sinfônica e virar harpista – me sugere uma campanha nacional para passarmos a nos chamar de “brasilinos, brasileses, brasilenses, brasilianos, brasilitanos, brasilistas, brasileus, brasilotos ou brasilões”, o que aumentaria muito a nossa auto-estima e nossas chances de chegar ao mundo maravilhoso dos americanos, belgas e monegascos. (Luiz Fernando Veríssimo).
A ingrata e meticulosa regulamentação normativa, apoiada em textos escritos, tem impedido que os alunos se convençam de que aquilo que já sabem é português brasileiro. A escola, então, vai-lhes apresentar outras formas de falar e escrever, ampliando as suas possibilidades lingüísticas.
Ao trocarem este por esse, onde por aonde, ganhado por ganho ou vice-versa, encontram respaldo na história da língua – documentada em textos escritos, pois “o som já se apagou”, conforme Ivo Castro (LXIX, p.97). O mesmo ocorre quanto à antecipação ou não do artigo antes de antropônimos. Isso não deve ser visto como “erro” lingüístico ou destruição da língua oficial do país, mas como um comportamento natural, ao se buscar a forma mais expressiva em dada situação.
O discente precisa aprender a adaptar o uso à ocasião. Já que é dito que “a ocasião faz o ladrão”, respeite-se o potencial brasileiro de improvisação. O seu ufanismo, inclusive, o faz criar termos interessantes como Mineirão, Morenão, Pelezão, e até Ricardão, Faustão e, embalados pela síndrome do ão, os compatriotas aceitam, sem qualquer questão, a idéia de serem vítimas de um apagão. Vê-se que não falta luz à sua criatividade. Essa luz evidencia a sua gramática internalizada, aquela que toda variedade contempla. Ele não é, por isso, fuleiro; mas denuncia e proclama um português brasileiro.
Considerações finais
Não se pensa a boca como servindo para escrever. Falar, gritar, cantar, beber, beijar, morder são utilidades reconhecidas e aceitas. Embora desautorizada oficialmente, é possível o seu decalque no papel.
Convenço-me de que é o desconhecimento da história da língua portuguesa que permite a freqüente expressão de preconceito, quando se verifica desarmonia entre fala, escrita e norma.
Urge que sejam revistos os critérios de correção dos textos orais e escritos, pois só uma boca fechada ou uma folha de papel em branco escondem a história ímpar do sujeito.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1965). Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 18 ed. São Paulo, Saraiva.
ANDRADE, Maria Margarida e HENRIQUES, Antônio. (1999). Língua Portuguesa: noções básicas para cursos superiores. São Paulo, Atlas.
BARBOSA, Afrânio Gonçalves. (1999). Para uma história do português colonial: aspectos lingüísticos em cartas de comércio. Rio de Janeiro, UFRJ (Tese Doutorado Digitada), p. 223 - 248.
CASTRO, Ivo. (LXIX). A elaboração da língua portuguesa no tempo do Infante D. Pedro. Biblos. p.97 – 100.
CUNHA, Celso. (1970). Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
FARACO, Carlos Alberto. (1991). Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo, Ática.
INFANTE, Ulisses. (1998). Do texto ao texto. Curso prático de leitura e redação. 5 ed. São Paulo, Scipione.
MATTOS e SILVA, Rosa Virgínia. (1996). Variação, Mudança e Norma: movimentos no interior do português brasileiro. In: CARDOSO, Suzana A. M. (org.). Diversidade lingüística e ensino. Salvador, EDUFBA.
TARALLO, Fernando. (1991). Tempos lingüísticos: itinerário da língua portuguesa. São Paulo, Ática.
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COMO CITAR ESSE ARTIGO MENDES, Ruth Paranhos Silva. Mudanças morfossintáticas e ensino de língua portuguesa: na boca e no papel. In: Revista Inventário. 5. ed., mar/2006. Disponível no web world wide em: http://www.inventario.ufba.br/05/05rparanhos.htm.
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