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A poesia crítica de Augusto de Campos
Cristina Monteiro de Castro Pereira Doutorado em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em
Resumo Augusto de Campos é crítico e poeta: ele escreve ensaios críticos e poesia. Mas também a sua poesia é crítica, apesar de não o ser de forma usual. Podemos dizer que seus poemas são objetos que – ao invés de trazer uma mensagem crítica – agem, por sua forma, de maneira crítica no mundo. Pensando sobre sua arte, ele transforma seus pensamentos em forma, mostra-os na materialidade do poema. Fazendo uma leitura de dois de seus novos poemas, tentamos mostrar os caminhos de sua interferência crítica no mundo através da sua arte. Palavras-chave: Augusto de Campos, Poesia, Crítica
Abstract Augusto de Campos is a critic and a poet: he writes critical essays and poetry. But also his poetry is critical, although not in a usual way. We can say that his poems are objects that – instead of bringing a critical message – act, by their form, in a critical way in the world. Thinking about his art he makes form of his thoughts, he shows it in poem’s materiality. Talking about two of his new poems, we try to show the ways of his critical interference in the world by making art. Key-words: Augusto de Campos, Poetry, Criticism
Augusto de Campos pertence ao grupo de poetas que não apenas produzem poemas, mas também teorizam sobre a poesia. Um dos fundadores do movimento da poesia concreta no Brasil, Augusto vem, desde o começo de sua carreira, mantendo um trabalho paralelo como crítico e teórico de literatura. No auge do movimento concreto, a reflexão sobre o modo de fazer poesia mantinha um diálogo aceso com sua produção poética. Uma nova maneira de ver e de agir no mundo se deixava entrever não apenas em seus textos teóricos, mas também em sua poesia. O movimento concreto, embora até hoje reverbere em nossa literatura, ficou datado no tempo e no espaço. Os poetas do grupo Noigandres seguiram caminhos solos. Augusto de Campos, de cujo trabalho trataremos aqui, continua a teorizar e a poetizar o mundo – sempre em sintonia com suas mudanças. Augusto de Campos é um poeta-arquiteto, que demonstra uma preocupação em construir uma obra que não seja apenas um veículo para crenças, ideais ou expressões sentimentais. O poeta que pensa sobre o modo de apresentação de sua poesia considera seus poemas – mais do que um meio – um fim em si mesmo. Um fim em si mesmo – afirmação perigosa que, embora não temamos seu risco, não nos furtaremos de esclarecer. Não queremos com isso dizer que o poema se torna uma espécie de torre de marfim, distante e isolada do mundo. O que ocorre é que o poeta potencializa, na forma – e não apenas no conteúdo – seu modo de interferir no mundo. O poema-arquitetura não diz, mostra. Não tenta convencer através do conteúdo, mas entra em conexão com o leitor via forma. O poema não é um meio para a intervenção da fala do poeta no mundo: ele é a própria intervenção. Embora a arquitetura potente da forma não seja uma característica exclusiva da contemporaneidade, o poema que se teoriza, o metapoema, é um caminho valorizado nos nossos tempos. Poetas como Augusto de Campos não apenas conjugam sua obra com um trabalho especificamente crítico e teórico sobre ela, mas concebem uma grande parte de seus poemas de modo a girarem vertiginosamente sobre si mesmos. Um movimento circular em que o poema pensa a si mesmo e expõe, despudoradamente, seu modo de produção. Apresentaremos aqui dois poemas do mais recente livro de Augusto de Campos, Não. Ressaltamos que o livro vem acompanhado de um CD-ROM, no qual encontramos alguns dos poemas digitalizados e transformados em “clip-poemas”. Augusto de Campos, em conexão com as novas tecnologias, incorpora – ao mesmo tempo em que reflete sobre – uma época “multimidiática”. Primeiro nos concentraremos em um poema homônimo ao livro e, em seguida, partiremos para uma leitura de “sem saída”, exposto na contra-capa do livro e incluso no CD-R. Aproximemos a câmera do poema “não”, que se desenvolve em onze páginas. Para quem conhece o autor e sua trajetória minimalista, a informação pode parecer um pouco estranha. Não se trata de um desvio verborrágico do poeta, mas de um poema dividido em quadros, como um storyboard de um filme. O poema "não" (1990) é apresentado dentro de um quadrado branco em um fundo preto. Vemos na primeira página a palavra "não", em destaque, no meio do espaço branco – como um título que prenuncia um filme. A partir daí, o poema se desenvolve, página a página, dentro desta mesma configuração. O poeta, recorrendo à negação, teoriza sobre o que é poesia. Cinco “versos” são dispostos um embaixo do outro, formando um novo quadrado dentro do quadrado branco. Lemos na segunda página: "meuamordor / nãoépoesia / amarviverm / orrerainda / nãoépoesia". É o movimento da mão do leitor que dá andamento a esse poema tão peculiar: virando a página, chegamos ao próximo "quadro": "escreverp / oucooumui / tocalarfa / laraindan / ãoépoesia". Outra página, outro fragmento: "humanoau / tênticos / inceroma / saindanã / oépoesia". Continuando: "transpi / ratodoo / diamasa / indanão / époesia"; "aliond / ehápoe / siaain / danãoé / poesia"; "desaf / iamas / ainda / nãoép / oesia"; "rima / sain / danã / oépo / esia". Podemos perceber no poema o trabalho da negatividade: através do que "ainda não é poesia", Augusto de Campos vai nos envolvendo em um ambiente proporcionador do poético. As escolhas das palavras e das expressões (“rima”, “desafio”, “onde há poesia”) rondam a poesia – mas "ainda não é". Ficamos como quem procura: está quase... Mas ainda não. Simultaneamente (e em contraste) a seu discurso, Augusto de Campos trata de construir o poema, de fazer e mostrar poesia. A configuração gráfica, os traços concretos, percorrem as onze páginas não apenas como meio para o discurso do poeta mas, também e principalmente, como parte importante da construção do próprio poema. Enquanto afirma que tal e tal coisa “ainda não é poesia”, a quantidade de letras e de palavras vai diminuindo, quadro a quadro. A surpresa, a grande reviravolta do poema é, justamente, apresentar ao leitor, através de uma experiência concreta, o que é poesia. É interessante notar o aproveitamento do tempo linear (nem sempre valorizado por Augusto de Campos), que vai preparando o leitor aos poucos e através de um processo de "enxugamento" para o final do poema. O poeta fala sobre coisas que se aproximam de (ou que podem ser matéria de) poesia. Mas que (ainda) não são poesia. Ficamos dando voltas, em órbita, sem que o poeta nos diga o que é ou como penetrar na poesia. A cada página virada, a sensação de que estamos nos aproximando de uma resposta. O poeta continua com seu jogo de negativas. Como se descascando o poema, descarta-se do que não é a sua questão: "équ / ase / poe / sia / mas"; "ai / nd / na / ão / ép". O espaço escrito vai se restringindo, e temos menos uma letra por página. Lemos e vemos o poema sendo enxugado, desfolhado até sobrar uma única coluna de sustentação: "oesia". "oesia" condensa, transforma em um traço, todo o poema: é quase poesia, mas ainda não é... Podemos notar que o poema começa com dez letras em linhas horizontais. A cada página, uma letra por linha é subtraída. Na vertical, sempre cinco “versos”. O último quadro contém apenas uma letra para cada linha, o que nos obriga a mudar nosso ângulo de visão. A leitura tem que se realizar na vertical para que se configurem cinco “versos” (cada um com uma letra apenas): "oesia". Esse movimento brusco, esse "estranhamento" provocado no leitor por um movimento concreto – primeiro de "enxugamento" e depois de alteração na direção da leitura – suspende o esperado e provoca o efeito estético. A apresentação de seu poema é poesia. Ao mesmo tempo em que o poeta, através da negativa, versa sobre o que (ainda) não é poesia, ele mostra, ele faz poesia com a própria forma de seu discurso: fala sobre o que não é, enquanto nos apresenta o que é (ou o que pode ser). Mas ainda podemos levantar uma outra questão. Será que o poema está realmente pronto? O último quadro, em que lemos “oesia”, também parece incompleto, “ainda não é poesia”. Augusto de Campos "não" nos apresenta um fascinante universo poético: deixa implícito, como "oesia". O poeta termina o poema reiterando sua negatividade. Termina sem completá-lo. Fecha com uma abertura. Provoca o efeito estético, cria um vazio, joga o leitor numa espécie de vácuo semântico. Deste modo, o poeta proporciona a seu leitor a possibilidade de participar da obra, de, com ele, construir a p+oesia. O último quadro do poema de Augusto de Campos é bastante sugestivo. O poeta vinha falando sobre tudo o que pode parecer poesia, mas que, segundo ele, “ainda não é”. Uma palavra incompleta, “oesia”, vem desacompanhada da negação. Provoca o leitor a pensar que aí se encontra a poesia. Mas percebemos, numa segunda leitura, que a negação está ainda aí, pois a palavra não se completa, a “poesia” ainda não é poesia, é “oesia”. Seria a poesia, justamente, algo incompleto, que não traz respostas prontas, que não visa a impor pensamentos, mas sim a propô-los ao leitor? Não apenas o poeta intervém no mundo, mas convida o leitor a também fazê-lo, a começar por uma intervenção em seu próprio poema. O poeta dá voz ao leitor e mostra que o poema só se completa com sua participação. Augusto de Campos instaura em seu poema o pensamento crítico e concorda, através de sua poesia, com o teórico Luiz Costa Lima: a comunicação que a poesia e as artes engendram é bastante sui generis: não transmitem uma mensagem determinada, não permitem, portanto, uma representação unívoca. A linguagem deixa de ser um meio para se justificar por sua vitalidade. Sua vitalidade está na resposta que provoca, não na mensagem que transmite. (LIMA, 2002: 52) Podemos pensar aqui numa interessante analogia com a teoria do efeito estético de Wolfgang Iser. Segundo o teórico alemão, o leitor é parte integrante na construção da obra literária – ou seja, comporta-se ativamente no processo de leitura, preenchendo vazios e formando sentidos. O texto não é, segundo Iser, um objeto pronto e acabado, fechado em si mesmo – ele se concretiza na leitura. A obra literária contém vazios, que serão preenchidos no ato de leitura. Augusto de Campos, em seu poema “não”, leva o próprio leitor a, através de uma experiência estética, chegar, posteriormente, a tais conclusões teóricas. Seguindo a trilha indicada por Augusto, continuamos a perseguir o “não”. Deixamos – conscientes – para trás tudo o que um "sim" poderia nos proporcionar: a segurança taxativa e autoritária das afirmações. O "não" é o caminho do jogo, a palavra que, negando, se abre em possibilidades, em “afirmações em potência”. E o jogo é o caminho da literatura. O “não”, a princípio, se desdobra em outras duas vias: o que é negado, o sem saída; e tudo aquilo que não foi negado, mas que, a partir da negação – por relacionar-se com ela – se afirma em potência. Com a ajuda do “não”, a obra nos chama (a nós, leitores) para colaborar em sua própria construção, nos convida a jogar. Ficam, então, a cargo do leitor, a escolha e a articulação das possibilidades que o “não” do poeta nos apresenta, para que, desse jogo de interação entre o texto e o receptor, o poema se concretize no processo da recepção. Exploremos a primeira via do "não", aquela que não tem saída. O caminho não é reto: portas fechadas produzem desvios, idas e voltas, movimentos recorrentes. O poema "sem saída"[1] nos coloca nessa situação. Lemos, embaralhadas (identificáveis pela cor), as seguintes sentenças: "a estrada é muito comprida", "o caminho é sem saída", "curvas enganam o olhar", "não posso ir mais adiante", "não posso voltar atrás", "levei toda a minha vida", "nunca saí do lugar". O "conteúdo" do poema, formado por frases-empecílhos e ligado a uma idéia de impedimento, se desdobra em seu modo de apresentação: frases coloridas, espalhadas em curvas, entremeadas umas nas outras, constroem um verdadeiro labirinto. O leitor, Teseu do terceiro milênio, se vê no meio de corredores de cores, todos se afirmando como becos sem saída. Seu minotauro é fruto do desencantamento do mundo. O mundo contemporâneo não comporta a confiança cega do herói clássico. A falta de confiança em si e nos deuses – seu ceticismo – é o grande monstro que o leitor tem de enfrentar. A versão animada e interativa do poema é encontrada no CD-R. Uma primeira letra surge e é o usuário quem, através de movimentos com o mouse, vai materializando as frases, que vão surgindo uma a uma. É também através de um clique no mouse que passamos de uma sentença para a outra. Enquanto percorre o caminho, o receptor – agora, também um tipo de co-produtor explícito e concreto – lê-escreve-desenha (participa da formação de) uma teia, um emaranhado de caminhos que se cruzam e não chegam a lugar nenhum. O leitor é também responsável pela construção do próprio labirinto em que se perde. O receptor vivencia o poema e age concretamente sobre ele: frui do que ajuda a materializar. Se não desistimos – e já escapamos, só por isso, de sermos devorados pelo minotauro – em meio a sentenças definitivas como essas que transcrevemos acima, poderemos voltar nossa atenção para a frase "curvas enganam o olhar". Essa frase destoa das outras e, quem sabe, é a saída que procuramos. Claro que as curvas, enganando o nosso olhar, têm o poder de embaralhar nosso senso de direção e nos afundar ainda mais no labirinto. Mas o que dificulta é, ao mesmo tempo, o que não se revela por completo. As dobras permitem articulações. As curvas que enganam o olhar, ao mesmo tempo que atordoam, apontam para aquele outro caminho do "não": o das múltiplas possibilidades de saída. Aquelas que não foram negadas: afirmações em potência. É interessante também ressaltar: as frases confirmam umas às outras que, apesar de suas diferenças, apontam para o mesmo beco sem saída[2]. Uma única frase que destoa coloca todo o poema em risco, instaurando a dúvida. Poesia é risco: o poema se realiza ao colocar-se em risco, ao chamar atenção para o engano de suas próprias curvas. É a abertura necessária para que possamos penetrar no emaranhando que nos recusa uma saída. O caminho "sem saída" é todo feito de curvas e "curvas enganam o olhar" – logo, há chances de saída. Pode-se pensar, mais pragmaticamente, no fato do poema ter sido apresentado na quarta capa, como diz o poeta, quase fora do livro, saindo dele. As curvas são sempre possibilidades de saída para o leitor que delas consiga tirar proveito, não deixando seu olhar ser (totalmente) enganado. Mais uma vez ressaltamos que as frases do poema são todas construídas a partir de curvas e saliências. A forma do poema fala aquilo que seu conteúdo tenta camuflar. Nesse jogo do paradoxo poético, através de informações que se contradizem, o leitor tem que permanecer atento e ativo para que a comunicação seja possível. A última frase a ser construída com a ajuda do usuário é "nunca saí do lugar". Nessa hora, produz-se uma diferença: a palavra "lugar" se destaca do resto da sentença e se transforma no cursor, deslocando-se a partir do movimento do mouse. Podemos tomar vias contraditórias para tentar articular esse novo "lugar" dentro do poema. A primeira delas é a mais clara: destacar o lexema "lugar" da frase "nunca saí do lugar" e torná-lo móvel imediatamente provoca, no receptor, uma impressão de estar "saindo do lugar". Neste caso, a sensação é de alívio. Um outro caminho, mais tortuoso, seria dar-se conta de que, preso via mouse ao "lugar-cursor", por mais que o usuário o movimente, nunca sairá do "lugar" (pois o cursor – agora a palavra "lugar" – tem seus movimentos atrelados aos do mouse). Essa vereda confirma o poema – com um toque de ironia. E a ironia é ainda um outro caminho – bidirecional – que abarca os outros dois apontados acima, sem que, com isso, os opostos se anulem ou se desmanchem em uma síntese. Não. O poema ainda não acabou. Ainda estamos girando o mouse, perdidos no mesmo "lugar". A saída: outro clique. Voltamos novamente para o mesmo lugar: uma enorme armadilha e as frases caem como uma rede, capturando novamente o usuário e jogando-o no conhecido labirinto. Vemos novamente as frases, os caminhos curvos, coloridos e – aparentemente – sem saída. Ouvimos a voz do poeta, pronunciando as sentenças embaralhadas: uma voz ecoando dentro do mesmo labirinto. Com o mouse, o que resta ao usuário a fazer é iluminar as frases, encostando o cursor em cada uma delas. Assim é possível perceber os fragmentos e distinguir os caminhos. O fim do poema é quando o usuário se cansa de iluminar as frases e de ouvir seus ecos labirínticos. Aí, basta um clique no lugar indicado (por uma seta, ironicamente) e: voilà! A saída para o menu anterior. Nos poemas interativos de Augusto de Campos, a participação do receptor se apresenta também de forma concreta. Podemos visualizar a intervenção do usuário no poema: a cada clique uma nova etapa do poema se forma à sua frente. Continuamos, com Iser, a construir poemas, a interagir com o texto para formar sentidos – só que, no caso dos poemas interativos de Augusto de Campos, além de sentidos, o leitor – transformado em usuário – ajuda a materializar, concretamente, o próprio poema. Com um clique do mouse, o usuário provoca o movimento e o som. Ajuda, com atos concretos, a construir o poema. Retomando a reflexão acerca do poema “não”, voltamos a Iser. O poema interativo de Augusto de Campos desdobra a participação do leitor, já implícita no primeiro poema apresentado aqui. As teorias de Wolfgang Iser, que ecoaram como matéria poética na construção do poema “não”, ganham uma nova dimensão na proposta de uma poesia interativa, para ser consumida e co-produzida através do computador. Resta pensar qual a importância ou a real relevância deste desdobramento. O poema “não” composto como um storyboard não é apresentado no CD-R. Um storyboard é a forma inicial de um filme, sua primeira seqüência desenvolvida, sua pré-movimentação. Confirmando paradoxalmente uma nova proposta de poesia – poemas em videoclipe – que já vinham sendo produzidos no site de Augusto de Campos na internet e que se reitera na inclusão de um CD-ROM em seu mais novo livro, o poema se apresenta como quadros de um filme, mas não é transformado em um “clip-poema” pelo autor. Segundo o poeta, em e-mail[3] endereçado a nós, a concretização deste poema em videoclipe seria uma redundância, não lhe sendo possível acrescentar nenhum dado significativo a partir dessa mudança. Ressaltamos a importância do comentário crítico do autor para a confirmação do que pensamos: Augusto de Campos não apenas aproveita as novas tecnologias para fazer uma poesia “moderna”, mas as utiliza – mais do que como um “meio” – como recurso poético. O poema que se pensa a si mesmo não se dispersa: concentra todos seus recursos em prol de um efeito mais potente. A tecnologia, que permite ao poema ganhar som, movimento e uma interatividade mecânica com o receptor, não é um apêndice na poesia de Augusto de Campos. Vimos a utilização da tecnologia em outro poema de Augusto, “sem saída”, no qual, aí sim, o “meio tecnológico” ganha importância e relevância poética, agindo como parte integrante da composição do poema. Ou seja: a tecnologia é utilizada à medida que contribui ativamente na poiesis, ou seja, enquanto agente detonador de uma experiência estética. O poeta se vale de tradicionais “inimigos” da literatura como matéria-prima poética. A poesia concreta já se utilizava do visual como parte de sua configuração. Com as novas tecnologias, Augusto de Campos – ao invés de se intimidar – amplia as possibilidades de sua poesia, provando ser capaz de, não apenas resistir, mas valer-se de um mundo tecnológico e audiovisual para produzir poemas. Augusto de Campos mantém um site atualizado na internet (www.uol.com.br/augustodecampos), com muitos poemas, clip-poemas, biografia, bibliografia e informações importantes. Por sua vez, tal como é reafirmado pelo poema “não” e pelo recente lançamento de seu livro homônimo, o poeta não abandona o tão sagrado objeto de desejo dos amantes da literatura – o livro. Mas é importante ressaltar a postura de luta inteligente do poeta, capaz de aproveitar ao máximo as possibilidades que os novos meios e as novas tecnologias nos apresentam. Augusto de Campos coloca a poesia em seu mais produtivo lugar: o não-lugar da eterna transformação, da metamorfose poética. Voltamos ao primeiro traço, o "não" que nomeia e permeia o livro. Logo abaixo do título NÃO, uma referência: poemas. A negativa na frente da palavra "poemas", enquanto nega sua condição, deixa entrever que ali se encontra algo que justamente se aproxima do que se entende por um poema – mas que disso se difere. A obra de Augusto de Campos, por sua característica forma de expressão de grande apelo visual e sonoro, deixa claro, por si só, que não nada a favor da corrente. Seus poemas sempre trouxeram o traço da diferença. Seu poder de resistência e de transformação é metonimizado no título do livro. Não podemos esquecer de ressaltar uma das expressões mais importantes do "não" – da via negativa – na poesia de Augusto de Campos: o símbolo de "guerrilha cultural". Fazer poesia há mais de meio século, durante um tempo em que praticamente não se consome poesia, já é um movimento de resistência. Caminhar na direção oposta da gigantesca onda da indústria cultural[4], apostar na inteligência, na sensibilidade, no questionamento frente a um mundo hipnótico, é não desistir, não se deixar contaminar, não se vend(a/e)r[5]. Segundo Theodor Adorno, a arte, com suas brechas e contradições, pode ser vista como uma antítese da indústria cultural. Partindo do conceito de dialética negativa de Adorno, uma dialética sem síntese, que mantém a contradição como pólos opostos e co-existentes, mais uma vez voltamos ao "não". Não traz, em seu próprio nome, o estatuto adorniano de obra de arte. É através da "não-afirmação" que somos levados a pensar, a chegar a conclusões, a escolher caminhos de leitura (do poema e do mundo) sem pressões ou imposições externas. “Não poemas”, como a verdadeira arte, nos impelem a construí-los e a nós mesmos. Não fecham caminhos: colocam os leitores em um labirinto de possibilidades, impelindo-os a uma não-inércia, obrigando-os a achar por si próprios as possíveis saídas. Podemos então pensar na riqueza teórica da poesia de Augusto de Campos. Um poeta que é também crítico, teórico e tradutor, consegue, muitas vezes, concentrar em um poema grande parte de suas preocupações. Temos então uma poesia interventiva, que, além de se pensar a si mesma, aponta para questões teóricas, políticas e sociais extremamente importantes.
Referências Bibliográficas CAMPOS, Augusto. (1994). Despoesia. São Paulo: Perspectiva.
[1] Sem saída é o nome do poema apresentado na quarta capa do livro quase fora do livro, saindo dele. (CAMPOS, 2003: NÃOfácil). Encontramos também uma versão do poema, animada em flash, no CD-R. [2] Uma das críticas feitas à Poesia Concreta foi de que ela levava a poesia a um beco sem saída. Décadas depois, Augusto de Campos retoma o tema, ironizando-o: apresenta, sob o título "sem saída", uma das várias "saídas", um dos vários caminhos que a Poesia Concreta iluminou: a poesia interativa, em forma de videoclipe. [3] “NÃO foi meu último datilograma. Quando o fiz (1990) eu não tinha ainda o meu computador pessoal, que adquiri no ano seguinte. Cheguei a fazer, mais recentemente, uma animação simples para ele, mas achei que seria redundante e que a versão em livro preserva um pouco de sua ‘história’”. Augusto de CAMPOS, em e-mail destinado a Cristina Monteiro em 21 de fevereiro de 2004. [4] Expressão empregada pela primeira vez na Dialética do Iluminismo (1947), de Horkheimer e Adorno, em substituição a "cultura de massa". Ao se falar de uma "indústria cultural" no lugar de uma "cultura de massa", a responsabilidade da formação dessa "cultura" deixaria de ser das massas (por um ato espontâneo) e passaria para uma "indústria" aliada à ideologia capitalista (por atos intencionais e favoráveis à ideologia dominante). [5] Fazemos aqui uma alusão ao poema nãomevendo (1988) de Augusto de Campos: "nãomev / endonã / oseven / danãos / evende"
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