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Trânsitos e migrações em Fausto Mefisto Romance Da terra natal à terra transcendental: Uma pátria de histórias*

 

Fernanda Mota Pereira

Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística
da Universidade Federal da Bahia

ferananda_mota@yahoo.com.br

 

Resumo:

A partir da leitura da problemática do sujeito diante das constantes fragmentações da identidade na pós-modernidade, ratifica-se o poder da literatura em configurar espaços e narrativas sobre o eu, a partir não só do conhecimento de si, mas, também, do Outro. As questões de identidade, alteridade e transitoriedade encontram em Fausto Mefisto Romance, de Judith Grossmann, um lugar fecundo para serem observadas, em virtude das interseções entre mundo empírico e ficcional, já sinalizadas pelo nome do protagonista, “Fausto” e “Mefisto”, e pelas constantes migrações e trânsitos discursivos presentes neste romance, repleto de vozes distribuídas em cinco capítulos. A pluralidade neste romance, no entanto, refere-se não só às vozes que o constituem, mas, ainda, à própria formação do protagonista. Ressalta-se que a formação de Fausto Mefisto reporta-se à fáustica experiência da própria Judith Grossmann, que realizou tanto viagens territoriais quanto imaginárias e tem, portanto, um caráter múltiplo e diaspórico, do qual se vale para compor sua “pátria de histórias”.   

Palavras-chave: identidade, migrações, (des)territorializações, representação.

 

Abstract:

By reading intricate questions about the subject in face of the constant fragmentations of identity in post-modernity, it is pertinent to ratify the power of literature to configure spaces and narratives about the subject through self knowledge and by knowing the Other. The questions of identity, alterity and transitoriness have in Fausto Mefisto Romance, by Judith Grossmann, a fecund place to be observed, due to intersections between empiric and fictional worlds, pointed by the name of the protagonist, “Fausto” and “Mefisto”, and by the constant migrations and discursive transits in this novel, which is plenty of voices distributed in five chapters. However, the plurality in this novel refers not only to the voices that constitute it, but also to the formation of the protagonist himself. It is important to emphasize that Fausto Mefisto’s configuration reports to Judith Grossmann’s own Faustic experience, a writer who took territorial and imaginary trips, and, therefore, has a multiple and diasporic character, which she uses to compose her “homeland of histories”.          

Keywords: identity, migrations, (de)territorializations, representation.

 

Desde o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, romance que, conforme Michel Foucault, em As palavras e as coisas, inaugura a modernidade, a literatura ocidental, não raro, tem abordado o tema do desenraizamento do sujeito. A perda do sentimento de pertença diante do mundo é o relato da transição da Antiguidade à modernidade, ou, ainda, de um mundo composto por analogias para um em que a linguagem (a partir da qual o sujeito concebe o mundo e a si mesmo) não mais mantém relação direta entre as “palavras” e as “coisas”.

Com a perda da familiaridade, o sujeito empreende uma busca não mais coletiva, como nas epopéias gregas, mas, sim, individual, pela configuração de espaços no mundo onde vive ou na literatura. O redimensionamento de um plano coletivo para um individual é para a literatura, segundo Mikhail Bakhtin (2002), a transição do gênero épico ao romance. Deste modo, com a desintegração do mundo fechado das epopéias surge o romance, tendo como elementos a abertura para outros campos discursivos (o “plurilingüismo extraliterário”), a “ironia”, o “humor”, a “autoparodização”. Este percurso também marca, de acordo com Bakhtin, a reconfiguração da representação literária, pois na literatura encontram-se sempre ressonâncias do (con)texto histórico no qual ela é produzida. Ressalta-se, no entanto, que, assim como em um jogo de espelhos, a literatura representa uma realidade, mas esta também reflete aquela.

Da literatura à realidade e da realidade à literatura, personagens como Emma Bovary[1] , Dom Quixote[2] , Julien Sorel[3] , Leda Maria[4] têm suas vidas perpassadas pela confluência entre a vida e o livro, nas quais verifica-se a possibilidade de ler a vida como um livro e o livro, como uma vida.

Dentre os romances que denotam a confluência entre mundo empírico e ficcional, destaca-se o Fausto Mefisto Romance, da escritora Judith Grossmann (1999), ou, o romance do Fausto Mefisto, na dicção inglesa. Este romance é o relato da vida de um homem, que é Fausto, mas é também Mefisto, ou seja, o século XX. A epopéia[5] deste Homem configura-se como uma missão de curar as feridas da humanidade, das quais sofrem suas pacientes adolescentes na clínica em que trabalha, não deixando de ser, também, como confirma o capítulo “O século”, o relato de uma época marcada por guerras, e, conseqüentemente, trânsitos, migrações e desordem. Por isso, deve-se considerar, a despeito do mito criado por Marlowe, Goethe e Thomas Mann, que este Fausto é, também, Mefisto. Fausto Mefisto ou uma metáfora da literatura, na qual convergem forças: o ser e o contexto, o humano e o mito, o real e o inventado, o tempo e o não tempo, o lugar e o não lugar.

A fusão entre o Fausto judithiano, que é o nome de todos os homens, e, portanto, a humanidade, e o mundo, isto é, o contexto histórico no qual se insere, é circunscrito por uma tensão, como não poderia deixar de ser na (pós)-modernidade. Esta tensão se manifesta tanto pela depressão das pacientes, sintoma das angústias do contexto histórico, quanto através do universo que o protagonista constrói na serra, onde instala a sua clínica que está a serviço de todos os filhos que possa ter, exceto os seus legítimos.

O estabelecimento desta filiação apenas a “estranhos” e o tratamento distanciado que pretende ter com os filhos legítimos, quando estes vão para a sua clínica, podem ser justificados pela necessidade de manter um distanciamento daqueles que serão submetidos a seu tratamento clínico. Entretanto, pelo viés da psicanálise, o estranhamento ao que é familiar poderia ser explicado a partir do conceito de “estranho” (unheimlich) de Sigmund Freud, segundo o qual o que há de mais familiar ao sujeito pode não ser por ele sentido como tal. Considerando o contexto histórico do século XX, este estranhamento revela, ainda, o individualismo, resultante da perda do sentimento de pertença que subjaz às relações humanas em uma era marcada por guerras e diásporas.

Em conseqüência desse painel, a epopéia do herói moderno tornou-se a narrativa de sua individualidade, cuja ênfase no período que se convencionou chamar de modernidade culminou com a Ascensão do Romance[6]. Este gênero, burguês por primazia, tem como marca peculiar, segundo Ian Watt, a apresentação do sujeito em sua solidão.

O individualismo, ou a tensão entre o ser e o universo que define a sua identidade, trouxe como uma outra conseqüência a própria fragmentação do sujeito. Esta fragmentação atingiu o seu ápice na pós-modernidade, como postula Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade. Segundo Hall, na pós-modernidade, as negociações de identidades são constantes, variando a depender das situações culturais nas quais o sujeito atua, constituindo-o como um feixe de discursos. Tal fragmentação abala a unidade atribuída a um indivíduo coeso, como o do Iluminismo, ou mesmo a definição do sujeito sociológico, que possuía uma “essência” que se modificava a partir de suas relações sociais. A problematização destas categorias de sujeito advém da desconstrução de princípios como o de essência e converge para a substituição da noção de uma identidade una para a de “identificações”, que definem as constantes mutações da identidade cultural na pós-modernidade.

Os trânsitos e migrações aos quais o sujeito é submetido, em virtude destas negociações identitárias, encontram ressonâncias em fatos ou mitos históricos. Dentre estes estão as diversas migrações, verificáveis não só no plano da “história oficial”, mas, também, no de narrativas oficiais e não oficiais de imigrantes à procura de terra para plantar, para viver, onde sobreviver e, ainda, para contar.

Da expansão mercantilista, passando pela globalização e a diáspora, são observados vários deslocamentos, que implicam tanto a perda da pátria (a terra natal), quanto promovem a configuração de uma pátria transcendental. Mesclam-se, nesta pátria, tanto as lembranças do lugar de “origem” quanto as experiências dos lugares onde se viveu, a ponto de levar o sujeito a rasurar este lugar supostamente “original”.

Como uma autora de família judia, que traz, em sua genealogia, as marcas do Holocausto, Judith Grossmann tem o seu Fausto Mefisto Romance perpassado por tais deslocamentos e migrações. A figura do Doutor Fausto não deixa de ser a representação da formação fáustica da escritora. Deste modo, do Holocausto às viagens em busca do saber, os trânsitos e as migrações impostos pelos processos históricos registrados no romance denotam não só a desorganização à qual o mundo foi submetido pelas guerras, mas, ainda, as constantes transições territoriais para configurar o conhecimento vasto e plural, além das diversas línguas do Doutor Fausto Mefisto ou da escritora Judith Grossmann.

Assim pensando, estudei em várias capitais, inclusive no exterior, e de Paris não trouxe apenas suas luzes, e de Berlim não apenas aquela mancha fedorenta que o século XX deixará sanguinário sobre a neve, e que eu, se possível fosse, até com minha língua, lambendo as feridas, procuraria apagar, mas não é possível, e muitas e muitas gerações terão ainda de lutar para apagá-la, e de New York, não apenas a Bolsa, para não falar de Londres, de Tóquio, de Nova Déli, de Madrid. (GROSSMANN, 1999: 20)

Tais percursos sinalizam não só dispersões territoriais, mas, sobretudo, imaginárias, reforçadas pela vivência em diversos lugares (Rio de Janeiro, Bahia, Rússia[7] , Estados Unidos). Todos estes lugares e entre-lugares participam da formação de uma nacionalidade dissolvida no universal e se estendem para as múltiplas faces de Judith Grossmann, que, além de escritora e poeta, é teórica, crítica e professora de literatura.

Os ofícios da escritora, somados à sua experiência com as línguas que compõem a sua identidade lingüística, refletem no plurilingüismo do qual se vale para escrever este romance repleto de vozes dos mais diversos locais da cultura. Assim, a autora tece nas malhas do seu romance as linhas puxadas dos múltiplos campos do saber, desde a psicanálise, passando pela metodologia de aprendizagem de línguas estrangeiras, à teoria da literatura.

A estratégia narrativa da escritora para transpor as diversas vozes que ecoam nas histórias presentes em sua narrativa é utilizar narradores diferentes, cujas perspectivas se desvelam ao longo de cinco capítulos. Ao valer-se da técnica do plurilingüismo, conceito de Mikhail Bakhtin (2002) que se refere à pluralidade de vozes no romance, Judith Grossmann imprime, através de suas personagens, o seu próprio olhar, e traz à cena narrativas que a ajudam a contar não só a sua história enquanto filha de pais judeus, mas, também, a história daqueles que se submeteram à diáspora em virtude da guerra mundial.

As múltiplas vozes que perpassam Fausto Mefisto Romance presentificam não só outras personagens e dramas históricos, como, também, diversas formas de experiência, advindas de cada uma das personagens através de seus relatos. Não é por acaso que o cenário forjado por Judith Grossmann, neste romance, é uma clínica psicanalítica, na qual jovens são a ela mandados para curar o seu mal estar na civilização. Deste modo, é o doutor Fausto, dentre suas várias facetas, também o Doutor Freud.

Se a narrativa, dentre outras formas de arte das quais devem se ocupar os seus pacientes, é a terapia utilizada nas sessões de psicanálise do doutor Fausto para que os seus adolescentes consigam ressignificar e reorganizar o seu mundo, a literatura é, também, a forma utilizada por Judith Grossmann para configurar, via representação, a sua pátria transcendental[8]. Assim como a autora, outras personagens são perpassadas por narrativas, através das quais recuperam cenários e experiências vivenciadas em seus trânsitos e migrações. E o espaço em que estas questões são encenadas é a literatura.

A constituição de uma narrativa que representa o espaço em que as identidades se configuram pode ser relacionada à forma como o indivíduo se insere e se constitui no mundo, ou seja, pela linguagem. Por conseguinte, o mundo empírico e o mundo de papel encontram na linguagem o seu ponto comum, pois, se o instrumento e arte final do escritor para escrever o livro é a linguagem, também é através dela que o mundo é concebido e o ser nele se inscreve.

No romance enfocado, a personagem Laura, uma das pacientes do Doutor Fausto, que, sintomaticamente, pretende ser escritora, corrobora com a premissa de que a escrita pode ser utilizada como instrumento para configurar um mundo. É Judith Grossmann quem afirma, através de seu duplo ficcional: “Escrevo. Já escreveram aquele mundo todo para mim, agora está na minha vez de escrever. Nome é destino, você sempre diz” (GROSSMANN, 1999:. 48).

Ao valer-se da personagem Laura, a autora salienta o poder que a literatura confere ao artista de escrever e ressignificar o seu mundo, interferindo na “realidade” na qual se insere. Portanto, a adolescente, que foi obrigada a se submeter a um aborto, se valerá da literatura para produzir a sua própria história. Será autora do seu próprio destino e escreverá o mundo em que quer viver.

O poder da literatura em configurar espaços, reinventar objetos, subverter ordens relaciona-se, ainda, ao papel da memória, quando convertida em histórias, em manter as narrativas que participam da formação do sujeito. Acrescenta-se a este “papel” da memória o de ressignificar a vida daquele que conta as suas histórias, reinventando-as, enquanto as relembra, e trazendo-as ao presente, ao se remontarem ao passado. É válido ressaltar que, mescladas a estas lembranças subjetivas, agregam-se não só interpretações e reinvenções do presente e expectativas quanto ao futuro, mas, também, histórias que compõem a memória cultural.

Segundo Andreas Huyssen, em Memórias do modernismo, a descrença no cientificismo, deixada pelas guerras mundiais, substituiu critérios como o de sangue e cidadania pela memória cultural para definir a identidade. Tal orientação resulta, ainda, de uma profunda incredulidade com relação ao futuro, atrelado ao Apocalipse, metaforicamente representado na história ocidental pelas guerras e o Holocausto. Assim, os imaginários, provenientes das vivências adquiridas ao longo do tempo e em diversos espaços, passam a ser os critérios para definir o que se é, considerando as interseções entre memória subjetiva e memória cultural.

A personagem que de forma mais elucidativa expressa estas migrações e a utilização da memória como espaço para registrar os percursos que compõem a identidade do sujeito, amalgamadas à memória de uma época, é o Barão, um contador de histórias. Esta personagem, forjada a partir do narrador tradicional, delineado por Walter Benjamin (1985), relata experiências que denotam uma vivência espacial e temporal. No entanto, ao mesmo tempo em que apresenta traços comuns ao narrador tradicional, o Barão subverte esta categoria de narrador, por problematizar a premissa de Benjamin segundo a qual a prática de contar histórias chegou ao fim com o advento das Guerras Mundiais e por fundir às suas vivências os acontecimentos de uma época, do Outro.

Assim, a despeito da construção do narrador tradicional por Walter Benjamin, em Fausto Mefisto Romance, o Barão busca, na fonte das experiências vividas na guerra e nos deslocamentos por ela impostos, a substância para contar as suas histórias. Voltado para as questões do seu tempo, o Barão reúne, em sua contação de histórias, todas as narrativas que compõem a sua identidade e a de uma pátria que, em virtude de transições e migrações, configurou-se transcendental, uma nação que mescla o olvido ao ouvido: “Mais histórias se introduziram nos meus ouvidos de criança, pelos que aqui chegavam. A vida deles era contar estas histórias.” (GROSSMANN, 1999: 112). As suas vivências são, portanto, também, as do Outro.

A experiência nas terras e tempos passados e o seu baralhamento com as constantes novas terras é uma das marcas deixadas pela guerra, quando, em virtude das fugas e da luta pela sobrevivência, impõe-se um não tempo e um não lugar. Sobre esta perda de um telos e a invenção dos espaços, diz o narrador, “Novas e estreitas amizades eram feitas neste novo tipo de Éden ou paraíso que a guerra produzira, rompido o ciclo dos dias e das horas.” (GROSSMANN, 1999: 92).

A desordem que a guerra instalou é relatada pelo narrador, que a compara a uma Babel. As significações que este termo evoca convergem para a idéia de uma mistura de línguas oriundas dos mais diversos lugares e a conseqüente constituição de um caos, a partir do qual novas línguas se constituíram.

A Babel, trazida pela guerra, era a da língua, e muitos por este efeito escreviam nela, desaprenderam, de propósito, a sua própria, queriam mudar de língua, escrever em francês, neste francês, então escreveram assim em sua própria língua, como num caderno de um novo aluno, mas foi bom, redimensionaram tudo [...] (GROSSMANN, 1999: 105-6)

O “redimensionamento” mencionado suscita a idéia de uma reconfiguração de identidade para além da identidade lingüística. O contato com a nova terra e a tentativa de adaptar-se e apreender a cultura e a língua da nova região trouxeram, ao invés de uma negação de sua identidade lingüística, a reafirmação da sua identidade cultural, baralhada nestes novos contatos.

A vida do Barão, Nascido no Brasil[9] e filho de pais franceses, denota a confluência constante entre as diversas nacionalidades e imaginários com as migrações promovidas pela guerra. “Minha França! Meu Brasil! Sou um homem entre mil amores, entre dois mil!” (GROSSMANN, 1999: 112). Não obstante o estabelecimento de uma interseção entre as mais diversas pátrias que compõem a identidade nacional, estas migrações levam o Barão a questionar-se sobre sua própria identidade: “[...] o que faço com estas minhas deambulações, já não estou mais em idade de ficar indo e vindo entre França e Brasil, entre Europa e América, nem europeu nem americano, afinal, quem sou eu?” (GROSSMANN, 1999: 124).

A crise de identidade, diante de todos esses deslocamentos, leva o Barão a reconhecer a impossibilidade de ser constituído por uma única nacionalidade. A personagem acredita que o seu espaço somente será definido quando, ao morrer, for deixado naquele local da queda, para que lá constitua suas raízes. Mas não seria a sua narrativa, que, ao seu fim, é marcada pelo símbolo da morte, uma tentativa de constituir estas raízes?

Contar histórias é sempre uma forma de repensar a identidade cultural, preenchendo suas linhas e entrelinhas com histórias vividas ou inventadas. A literatura é, então, este espaço em que são tecidas as identidades e são contadas as trajetórias que marcam um sujeito desenraizado do mundo, em busca de si, mesmo quando olha o Outro, com os olhos voltados para a vida, mesmo enquanto lê um livro, dissolvendo as margens da página preenchida com o mundo cujas páginas deverá ajudar a preencher.

Neste sentido, diante da narrativa de Judith Grossmann e de suas personagens neste Fausto Mefisto Romance, a desterritorialização perde o seu prefixo negativo “des-” em nome de uma pluralização: territorializações. A perda deste traço negativo e do caráter singular da palavra leva-a, então, a ser reconfigurada para um termo plural, que contempla as nações que constituem uma nacionalidade fronteiriça, pertencente a um e a outro lugar.

Nascido no Brasil, renascido em outro local do planeta, o escritor sabe que, diante da terra deixada, sempre poderá recompô-la e ressignificá-la através de suas narrativas. De Dom Quixote a Fausto Mefisto Romance, a identidade cultural do sujeito é a sua pátria de histórias. Além da terra natal, além do além mar... No entre-lugar.

 

Referências

BAKHTIN, Mikhail. (2002). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Fornoni Bernardini et al. 5.ed. São Paulo: UNESP- Hucitec.

BENJAMIN, Walter. (1985). “O narrador”. In: Sérgio Paulo (org.). Obras Escolhidas. v. I. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.

CANETTI, Elias. (1990). A consciência das palavras: ensaios. Tradução Marcio Suzuki; Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund. (1969). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v.XVII. Rio de Janeiro: Imago.

FOUCAULT, Michel. (1999). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes. (Coleção Tópicos).

GROSSMANN, Judith. (1999). Fausto Mefisto Romance. Rio de Janeiro: Record.

GROSSMANN, Judith. (1998). Nascida no Brasil Romance. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; Fundação Casa de Jorge Amado.

GROSSMANN, Judith. (2000). Pátria de Histórias: contos escolhidos de Judith Grossmann. Seleção e organização de Lígia Telles. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: FCEB. (Bahia: Prosa e poesia, Coordenação Editorial de Ildásio Tavares).

HALL, Stuart. (2003). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. 7.ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora.

HUYSSEN, Andreas. (1997). Memórias do modernismo. Tradução Patrícia Farias. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

LUKÁCS, Georg. (2000). “Culturas Fechadas”. In: LUKÁCS. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades. p. 25-36.

TODOROV, Tzvetan. (1999). O homem desenraizado. Tradução Christina Cabo. Rio de Janeiro: Record.

WATT, Ian. (1990). A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras.

 



* Título da coletânea de contos de Judith Grossmann, organizada por Lígia Guimarães Telles.
[1] Personagem de Gustave Flaubert no livro Madame Bovary.
[2] Personagem de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.
[3] Personagem de O Vermelho e o Negro, de Stendhal.
[4] Personagem de Fausto Mefisto Romance, de Judith Grossmann.
[5] A utilização do termo “epopéia” é aqui feito considerando que o protagonista do romance encerra traços que o situam entre o sujeito moderno e os heróis épicos, por representar dramas individuais e, ao mesmo tempo, empenhar-se em uma causa que pertence não só a ele, como a toda uma coletividade. É em virtude deste caráter dúbio, portanto, que esta personagem é Fausto e Mefisto, ou seja, o mito e o contexto histórico em que se situa.
[6] Referência ao texto de Ian Watt, A ascensão do romance, no qual o escritor destaca, como um dos traços peculiares da literatura moderna, a individualidade.
[7] Viagem ficcional.
[8] Suas histórias não deixam de constituir uma pátria, premissa que encontra ressonância na escolha do título para a seleção feita por Lígia Guimarães Telles, em Pátria de histórias.
[9] Referência ao livro de Judith Grossmann, Nascida no Brasil, no qual a protagonista tem a sua identidade perpassada por migrações.

 




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