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Movimento & poesia: percursos sobre Salto, de Silviano Santiago

 

Marcelo dos Santos

Doutorado em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras 
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

m.santos1977@gmail.com

 

Resumo:

Neste trabalho, fazemos a leitura do livro de poemas Salto, de Silviano Santiago. Investiga-se como a poesia prepara sua própria cena de leitura. Podemos observar, dentro de Salto, o movimento desta leitura, e a leitura como movimento, desde a exploração do significado até a abertura do significante que o poeta elabora. Ao fazer “saltar” o significante, a experiência de Silviano pode ser acompanhada como poética quando ela traça a constituição de uma performance. No nosso estudo, procuramos traçar os caminhos dessa performance e esboçar alguns de seus motivos.

Palavras-chave: Poesia, Leitura, Performance

 

Resume:

Dans ce travail, on fait la lecture du livre de poèmes Salto, de Silviano Santiago. On enquête comment la poésie prépare sa propre scène de lecture. On peut regarder, dans Salto, le mouvement de cette lecture, et la lecture comme mouvement, depuis l’exploraton du signifié jusqu’à l’overture du signifiant que le poète élabore. En faisant  “sauter” le signifiant, l’éxperience accompagnée comme poétique quand elle esquisse la constituition d’une performance. Dans cet étude, on cherche à esquisser les chemins de cette performance et à ébaucher quelques de ses motifs.

Mots-clef: Poésie, Lecture, Performance

 

1- A estratégia do movimento

“...e que você quer reproduzir agora é o
galope da escrita. O trote é a invenção amestrada
que vem depois do galope”.

(Silviano Santiago, Stella Manhattan)

Salto, livro de poemas de Silviano Santiago, foi lançado em 1970. E a sua leitura, hoje, a despeito das circunstâncias que cercaram a geração da obra, não deixa de ser uma leitura provocada. Uma leitura provocada é, de antemão, resposta a um texto provocador.  Nas páginas de Salto,o leitor é provocado a empreender um esforço que transcende a simples compreensão do significado. A interferência no significante, que respira, ou melhor, palpita (para ficarmos no vocabulário do orgânico) no texto de Santiago, é uma provocante estratégia de movimento. Um movimento da leitura, do olhar e, mais além, um trabalho da intelecção.

Dividido em três partes maiores: “Saldo”, “Solda”e “Salto”, o livro de Silviano Santiago parece esboçar, para este leitor de 2006, uma estratégia do olhar calcada nas possibilidades que o visual pode despertar de movimento. O saltar. E, acompanhando esta ação-metáfora, podemos seguir o curso de um esquema montado para concretizar a interferência que o poema estipula. Aos leitores de hoje e de sempre, cabe esta leitura também saltada no tempo. O salto quântico.

A tripartição no ambiente de Salto desenha uma trajetória que conduz a sua própria leitura, ou sua desleitura, já que sua meta é também desarticular as direções do olhar que cristaliza sentidos. Por isso, o implodir dos significantes perverte o significado e os verte na sua multiplicidade, na maioria das vezes sugerida, o que antecipa o caráter provocativo do movimento. No desenrolar da palavra, naquele desembaraçamento do fio tênue que a une às referencialidades, está exposto o centro da meada; suas nervuras apontam para o oco da palavra-coisa — “Vivo a hora do oco” é um verso de Salto. E este esvaziamento torna-a passível de uma desarrumação constante.

Seguir o percurso de Salto pode ser rentável para compreender os programas desta anti-pedagogia da visão que instaura no leitor, este de 2006, a leitura “saltada”, aquela que se firma no absoluto movimento das palavras. Estas sempre deslizadas na constante esfera do vir-a-ser. Acoplada ao trânsito do salto está a liberdade da alternância. E o texto de Salto dá muitas realizações deste livre jogo criado. Tudo é movimento: saltado, contrário, reversível.

Se a movência é uma finalidade em Salto, lembremos que ela é uma metáfora de leitura. E a metáfora se constrói na dupla face de seu campo: no texto, na língua literária, e fora do texto, na língua. A dinamite no significado pode ser uma causa desta duplicidade, pelos seus restos desarranjados e dispostos. O deslocamento da literariedade conhecida ultrapassa a mera transgressão: ela formula a transformação. Fazer mover a palavra é mover a leitura, é fazer saltar o entendimento, a percepção, em última instância, é fazer o sentido estranhar sua própria permeabilidade. O leitor transmuta-se em autor no limiar de Salto.

Anotamos até aqui como a “leitura saltada” faz vislumbrar uma reviravolta na percepção, quando aquela trabalha com a alternância e a transformação, mudando o curso das apreensões do leitor. Resta a aproximação um pouco maior do nosso olhar para este trabalho, a fim de compreendermos como a metáfora do salto se realiza no trajeto estrategicamente construído, o que parece ser a condição de sua concepção.

 

2 - Plataforma: do chão ao alto.

“Oh, mama, can this really be the end,
To be stuck inside of mobile
With the Memphis blues again”

(Bob Dylan, Stuck inside of mobile with the Memphis blues again)

Saldo” é a primeira etapa do trajeto preparado pela leitura do livro de Silviano Santiago. Seu primeiro poema — “Balada com sonoridade” — guarda uma imagem bastante elucidativa, se arriscarmos seguir a metáfora motora que escolhemos: “guinada e derrapagem/ se perde o volante/ da poesia/ se fixa a vista/ na comum (c) idade”.

A guinada repara o curso retilíneo e constante de um caminho ou sentido, para ficarmos em campos semânticos mais ambivalentes. E é chegado o dia — anuncia o poema — da brusca interrupção para que outro caminho seja tomado. Mas, para o novo caminho ganhar estatuto, deve-se perceber as velhas estradas pelo retrovisor: “Chega um dia/ — chega/ em que você descobre/ — por que não?/ porque também segue/ sigo o arquétipo”.

A percepção do que se seguia ajuda, assim, para que a trajetória a que os pés e os olhos foram acostumados mude de percurso. E faz com que eles sejam obrigados a uma outra esfera de movência, a do salto. O que o poema mostra, a partir de então, é o caminho trilhado, que serve como mapa a ser evitado, e o seu final de abismo: “Da vidumana/ Seus poetas preferidos/ — pátriamada/ viveram pobres e miseráveis”.

Ainda aqui se concentra a idéia de saldo, uma alternância fonética de “salto”, mas que também indica uma movimentação de amplas leituras: no campo da memória e no campo da economia. No saldo não estão somente os aspectos positivos, mas a equação entre os sinais de mais e os sinais de menos. No saldo da poética está o seu duplo: o negado e o aceito, o renegado e o assumido. Mas estes não se rendem à lógica dos lucros bancários: na dupla chave da leitura, o negado é o aceito, porque figura no poema, é lido nele. A poesia tem seus mártires amados e seus martírios odiados: “Miseravelmente Pessoa/ (...) Miseravelmente Pessanha/ (...) Santo Baudelaire/ Que estais no céu/ (...) santificado seja/ meu nosso nome/ (...) prostituído”. É esta relação entre “vidumana” e miséria que deve ser subvertida, e a subversão é sugerida em Salto pela experimentação estética.

Mas o projeto de Salto é criar também um espaço da experimentação, uma plataforma para o salto. Em “Balada”, a concessão, ou melhor, a estratégia-concessão, é realizada pela adoção da sonoridade. Esta acontece pela presença do sonoro conhecido da massa, a expressão popular: “Nenhuma vivalma/ Se interessou em vida/ — pátriamada/ salve salve! [grifo nosso]/ (...)/ Santo Baudelaire/ Que estais no céu/ — beleléu” [grifo nosso].

Ao se reconhecer como estratagema, a leitura, a partir de “Balada”, vai arregimentando condições para seu salto. Em “Carta”, segundo poema de “Solda”, é o próprio fio da discursividade que está se desenrolando e descentralizando sua relação de sinapse com o real: “Sei mais não/ Onde deixei deixaste/ O fio Ariadne/ Da nossa conversa”.

A pretensão da discursividade é destruída por uma infidelidade latente: a incerteza do que é dito aparece no esquecimento. Retomar o curso do fio é tecer o novo. Se Salto encarna uma poética própria, ela pode ser expressa na idéia do fio que tece o novo no que é retomado: “Retomo o fio/ e alimento a máquina/ costura/ abraços e notícias”.

O discurso desmontado pelo desfiar da palavra, quando retomado, propõe uma leitura costurada, realizada pelo enviesamento da máquina poética. Costurar metaforiza a construção do tecido da letra para o corpo que a palavra ganha. O poema é corporificado: “Desfio o abraço/ — teima de paleógrafo —/ e por baixo o corpo/ manequim amigo”.

Deslizando da elaboração de um campo de leitura, Saldo chega aos primeiros poemas de leitura “esforçada”. A série “Fragmento” guarda inversões que desafiam o olhar como lugar de construção de sentido. O que é visível pode, com a leitura enviesada aprendida, escapar às regras da linearidade sintática: “Como do cão/ O cantar é noite/ Como da crista/ O gritar é aurora...”

Na série “Contíguos”, a intervenção se faz mais detidamente nas palavras. Os poemas trabalham as proximidades para realizarem deslizamentos semânticos, além dos sintáticos já experimentados nas séries anteriores: “Loucomove a mão/ Locomove o chapéu/ Loucomove o pé/ Locomove o chapéu”.

O sentido não se apresenta, portanto, anterior à construção do poema, ele se dá no momento da experimentação da linguagem. Esta será uma tônica para os poemas seguintes, pois estes propõem, no lugar da figuração do tema, a experimentação estética do tema. É o que veremos quanto à experiência do exílio, mais adiante. Por enquanto, ficamos ainda atentos ao exercício da lógica que se amplia num poema homônimo:

for              for
hoje           ontem
irei              fui
fuirei
     amanhã

Neste fica demonstrada a logicidade construída no cerne do poema, no movimento saído das palavras e seguido pela leitura empenhada tramada ao longo do livro. Com o poema “pro com”, que afirma a lógica instaurada, a seção “Saldo termina, mas prepara a próxima: ”Solda”. Depois da construção desta plataforma, a leitura se afasta da fixidez, nada é mais “stucked”.

 

3 - No alto

Na abertura de “Solda está a seção “Alguns floreios” em homenagem a Haroldo de Campos. Ela é toda construída pelo tracejado do motivo “palavra-puxa-palavra” coincidente com a idéia do aproveitamento do “mote alheio” que consagra a rota de uma constelação. Seus cometas: Drummond, Bandeira, Cabral. É também uma leitura radical (na sua raiz) a que Silviano faz desses poetas, como o é também a do poeta Haroldo de Campos dos mesmos poetas[1]. Nesta leitura, firma-se a solda de palavra a palavra, cuja afirmação estabelece a marca de um projeto poético, ou “obra em progresso”[2]. Algo que se move para a épica realizada no próximo poema de “Solda: “Man”.


Em “Man”, o poema nasce da radical experiência poética: ele nasce do significante “man”, em inglês, que se desfiará na experiência do exílio, mas aqui deslocada para o que chamamos acima de troca de uma figuração do exílio para uma experiência estética do exílio, que pode ser correlata ao “desplazamiento” apontado por Ricardo Piglia sobre a obra de Rodolfo Walsh:

(...) pero aqui Walsh practica el arte de la elipsis, el arte del iceberg a la Hemingway. Lo más importante de una historia nunca debe ser nombrado, hay un trabajo entonces muy sutil com la alusión y con el sobreentendido (...) Esa elipsis implica, claro, un lector que restituye el contexto cifrado, la historia implícita, lo que se dice en lo no dicho (...) decir lo máximo con la menor cantidad de palabras. (PIGLIA, 2001: 17)

Em “Man” é a associação que borra a teia de referências provocando o esforço de restituir o cifrado do que não é dito. Este peculiar deslocamento, interferindo no estético, serve para dar conta de algo indizível, como a experiência do exílio, afastando-o de sua escrita do simples documental:
 
A “informação semântica” já transcende a “documentária”, por isso vai além do horizonte do observado, acrescentando algo que em si mesmo não é observável, um elemento novo: (...) A “informação estética”, por sua vez, transcende a semântica, no que concerne à “imprevisibilidade”, à surpresa, à improbabilidade da ordenação dos signos (CAMPOS, 1992: 32).
 
Isto pode ser exemplificado por:

Refúgio em greenwitch
Village
Marijuana
Marias                 juanas
Brancas        dói
                           Divã
                                vanas

As palavras vão se abrindo amplamente na estratégia da intervenção direta no signo e se amplificam para suas outras instâncias: léxicas, semânticas.  A palavra em língua portuguesa tange a de língua inglesa num movimento constante de afastamento e proximidade, ritmando no poema o seu tema: a relação paradoxal com o Outro, a “transa”[3]. Mas este indizível, aquilo que esbarra na impossibilidade do compartilhado, ganha forma para chegar ao outro exatamente no experimento com a forma. A próxima seção de “Solda” afirma a mecânica das formas.

“Metaphormoses” é a última parte da seção antes de “Salto”. A epígrafe que abre sua série de poemas é de Norman O. Brown. Como em Brown, a palavra ganha uma força de metaforização, pela sua metamorfose através do mecanismo da alternância, gerado no próprio título da série. Como busca da forma a ser estendida ao outro, a metamorfose encarna a possibilidade de movimentação, deslocamento de uma corporalidade, do poema; de alteração do intelecto. No experimento poético a criação estabelece sua via dupla: é criação de poética e de recepção. E esta é trabalhada pelo ludismo no jogo livre proposto pelas alternâncias, que têm como mirada a alternatividade[4]. O próprio corpo é alvo da metamorfose estética:

 

corpespera  corpilusão  corpisento
corpoarmário  corpacaso  corpapique
corpalcança  corpinvés  corpembalo
corpamiúde  corpalicerce  corpanel

Chegamos à terceira parte do livro de Silviano Santiago, intitulada de “Salto”. Sua abertura, “Números e coisas”, precede a inscrição “Do-it-yourself kit”, gerada pelo estatuto poundiano . Nas seções “Números” e “Coisas” os poemas são a leitura deles. Eles demandam energia para ganharem corpo. E a leitura é sempre feita em saltos, como no poema aqui transcrito:

“udmo
tris
quae
cint
roco
ssei
steo
nito
ovde
    ez”

O mesmo se alastra na seção “Coisas” e ganha seu último estágio em “Triplé”. Neste, a montagem é indissociável da combinação, o que se inscreve no lúdico da invenção poética. É esta invenção, ambientada na leitura, que procuramos mapear, ainda que brevemente, no que ela pode construir de informação estética, a instância para além do sentido. E o que podemos perceber é como a leitura se mantém nesse salto, inaugurada na própria cena da escrita, em constante processamento, tanto em 1970 quanto em 2006. No limiar de um brusco movimento.

 

Referências Bibliográficas:

BROWN, Norman O. (1972). Vida contra morte. Petrópolis: Vozes.

CAMPOS, Haroldo de. (1992). Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva.

PIGLIA, Ricardo. (2001). Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades). Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica.

SANTIAGO, Silviano. (1970). Salto. Belo Horizonte: Imprensa Publicações.

 



[1] Conferir as leituras sobre Bandeira, Cabral, Drummond em Metalinguagem & outras metas.

[2] Como termo usado por Haroldo de Campos para a obra de Drummond em “Drummond, mestre de coisas”, op. cit., p. 51.

[3] Para usarmos a metáfora do disco hibridista de Caetano Veloso: Transa.

[4] Entendemos como alternatividade a ação potencial aberta pela possibilidade da alternância.

[5] Cf.  Metalinguagem & outras metas.

 




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