ISSN 1679-1347 |
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Artigo - Número 02 - Abril de 2004
Entre passos e Letras - o escritor andarilho
Stefania Chiarelli (Doutoranda do PPGEL/PUC-Rio)
A
arte de moldar frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos.
Michel de Certeau Na virada do século XIX para o século XX, com o crescente processo de modernização e urbanização do país, a literatura brasileira conheceu momentos de mudança, uma vez que a cidade grande passou a ocupar importante espaço na criação literária, ensejando novas percepções dessa vida urbana que se inaugurava. A título de imaginar uma hipótese de como representar a experiência urbana na literatura brasileira, elegemos a figura do escritor andarilho como uma possível chave de leitura na tematização da cidade. Nessa proposta de aproximar as formações lingüísticas dos processos caminhatórios - apropriamo-nos aqui da expressão de Michel de Certeau (CERTEAU, 2000) - julgamos ser possível uma abordagem que privilegie a enunciação pedestre, de um narrador andante que, ao percorrer caminhos, cria relatos e promove a legibilidade do espaço urbano. Ao criar performativamente seu itinerário, esse escritor andarilho pressupõe um leitor-companheiro nesse percurso em que é levado a ler a cidade. O ato de flanar, nessa concepção, propicia uma atitude literária que pode ser localizada em alguns textos ficcionais aos quais faremos alusão. Eles surgem como lugares teóricos a partir dos quais pode ser estabelecida uma dialética entre a configuração do narrador e a constituição de uma representação estética da cidade. São eles: Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de Lima Barreto, A alma encantadora das ruas (1910), de João do Rio, A arte de andar na ruas do Rio de Janeiro (1992), de Rubem Fonseca e Uma janela em Copacabana (2001), de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Apesar de pertencerem a épocas distintas - os dois primeiros autores escrevem nas primeiras décadas do século passado, enquanto os últimos são escritores contemporâneos - acreditamos que suas obras vêm ilustrar esse mote de modo bastante preciso. Some-se a isso o fato de que todos os textos que ilustram tal atitude literária tomam a cidade do Rio de Janeiro como ponto de partida, o que fornece um recorte bastante específico para nossa breve reflexão: historicamente o Rio de Janeiro afigura-se como cidade privilegiada, espécie de "moldura mítica" no debate de determinadas questões, como afirma o crítico Nicolau Sevcenko: "esse papel de métropole-modelo recai sem dúvida sobre o Rio de Janeiro, sede do governo, centro cultural, maior porto, maior cidade e cartão de visita do país, atraindo tanto estrangeiros quanto nacionais." ( SEVCENKO, 1998: 523 ) No entanto, faz-se necessário estabelecer as diferenças surgidas na representação desse espaço urbano: trata-se de uma cidade centralizada, como observaremos de início em Lima Barreto e João do Rio, que vai se transformando em direção à cidade policêntrica e fragmentada, como pode ser depreendido de Rubem Fonseca e posteriormente Garcia-Roza. Pode-se perceber uma distinção bastante nítida entre essas representações, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro não pode ser entendida como uma só. Esse personagem viajante articula sua escrita movendo-se em meio a uma cidade que se transformou brutalmente do início do século até hoje, o que motiva uma diferença de olhar e de registro também. Em um primeiro momento, é possível associar a idéia do escritor andarilho a figuras como Augusto Machado, o narrador de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, romance de Lima Barreto. Desvendando as contradições do Rio de Janeiro no início do século XX, esse "sutil anotador da vida", ao mesmo tempo em que se mistura à população da metrópole, é capaz de ler as gradações do processo de modernização excludente que está em andamento e de criticar aquilo que há de falso, de "cenografia", naquele cosmopolitismo: para viabilizá-lo, a população pobre que habitava o Centro da cidade foi sendo expulsa em direção aos morros e localizações periféricas. À primeira vista, tais medidas resultavam na erradicação da pobreza naqueles lugares centrais, mas na verdade nada mais eram do que um disfarce precário para a grave situação social existente já naquele período. Imitar o modelo das metrópoles européias só era possível excluindo as populações que maculavam a imagem de progresso que se queria ostentar naquele momento na capital do país. Propondo-se a ser o biógrafo e interlocutor de Gonzaga de Sá, Augusto Machado está imbuído da tarefa de escrever sobre a vida do amigo e também da cidade, entrecruzando as duas tarefas na narrativa. O passeador Gonzaga de Sá tem no discípulo Augusto Machado, "que aprendeu a ler a cidade com seu mestre" (GOMES, 1994: 156), um companheiro para uma leitura impregnada de nostalgia, e lança um olhar melancólico para a cidade que está deixando de existir para dar lugar a uma outra, marcada por inúmeras contradições. A denúncia de uma modernidade excludente, onde vão coexistir realidades sociais diversas e antagônicas, também é a tônica em diversas crônicas de João do Rio. No capítulo intitulado "O Passeador", Gonzaga de Sá, já tendo feito a apologia do conhecimento da cidade pelos itinerários a pé, aconselha Augusto a fazer o mesmo, para conhecê-la. O abuso da faculdade de locomoção é característica sua, bem como a visão nostálgica da cidade velha. A visão da personagem em relação à cidade é de dentro - ao passear e ir registrando suas impressões - mas é também de cima, do alto do bairro de Santa Teresa, de onde olha a cidade modernizada. "A cidade está em mim e eu estou na cidade", afirma Lima Barreto pela voz do personagem em dado momento. Valendo-se desse refrão emblemático, realiza um percurso afetivo que guarda ares de flanêur, através do olhar fundador da cidade. Ser flanêur não seria apenas um modo de conceber a cidade, mas um modo de representá-la, de vê-la e de relatar o visto, de acordo com Nestor Garcia Canclini (1999). Segundo este teórico, o flanêur espera estabelecer uma experiência de ordem ao passear pela cidade, em texto que indaga se ainda seria possível narrar de novo a cidade, se ela caberia em um relato totalizador, organizado a partir de um centro, como no início do século. E do mesmo modo ocorre no relato de Gonzaga de Sá. Já os textos que compõem as crônicas de A alma encantadora das ruas, de acordo com Raul Antelo (1998), são uma espécie de périplo infernal pela cidade moderna, empreendida pelo autor que viaja como "agente dúplice, travestido de flâneur". Andando em meio ao Hades, esse escritor andarilho lê o espaço urbano carioca marcado pelo embate entre o cosmopolita e o local, ao mesmo tempo em que registra o ritmo vertiginoso das mudanças na metrópole. Essa literatura-reportagem de João do Rio se propõe a registrar, através da crônica, um olhar que surpreenda a cidade em suas oposições e vertigens da modernidade: Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação e da vadiagem (...) É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência (...)Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologizar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas (...) (RIO, 1987: s/p). Chama a atenção o fato de que, até aqui, já é recorrente a associação entre o narrar e o andar, conforme assinala Renato Cordeiro Gomes: O narrador-flâneur, que deambula e reflete, cheio de curiosidade, lê a cidade com um discurso, vendo-a enquanto inscrição do homem no espaço e no tempo (...) E produz um outro discurso, a cena escrita, para a qual é chamado o leitor investido também do papel de flâneur, que, agora, deambula pelo discurso-rua, caminho de letras impressas. O leitor e o narrador unidos pelo amor das ruas. (GOMES, 1994: 112) (grifo meu) O sentimento premente desse narrador, de produzir um discurso a partir da experiência direta da caminhada pela cidade, guarda um fascínio quase infantil: Nélson Brissac Peixoto (BRISSAC, 1992), a esse respeito, lembra ainda que o viajante e a criança, além do flâneur, teriam esse olhar quase inaugural, movido pelo entusiasmo e capaz de desvendar a alma das cidades. Rubem Fonseca, por sua vez, estabelece diálogo com a tradição da narrativa urbana de Lima Barreto e de João do Rio na criação de um texto a partir da cidade. O personagem Augusto, escritor diletante, não busca dinheiro. Seu refrão, solvitur ambulando (MAFESOLI, 2001) (1), refere-se ao caminhar pelo Rio à busca de soluções para os problemas da cidade e também para a construção de seu livro, intitulado A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro "Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas, solvitur ambulando, diz para os seus botões" (FONSECA, 1992: 11) Esse escritor, entretanto, já não se configura mais no flâneur, pois não anda ao acaso, tampouco na errância. Percorrer as ruas do centro do Rio, para ele, significa ter um trajeto previsto: "Augusto tem um destino naquele dia, como, aliás, em todos os dias que sai de casa; ainda que pareça deambular, nunca anda exatamente ao léu" (Idem: 23). Essa obstinação do escritor em perseguir um itinerário preciso, que possibilite uma enunciação discursiva leva ao seguinte comentário: "Augusto, o andarilho-escritor, tem a intenção de resgatar essa memória através do livro que escreve. Anda para escrever e restaurar a cidade pela letra".(GOMES, 1994: 151) Partindo para outro momento pontual da literatura brasileira contemporânea, podemos observar a transformação do flâneur na figura do detetive. Na obra Uma janela em Copacabana, o autor Luiz Alfredo Garcia-Roza busca, entre outras coisas, ressemantizar a tradição da narrativa policial urbana localizando-a desta feita no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro. O romance policial, modelo intimamente ligado à cidade moderna e seus múltiplos mecanismos de controle, aqui reedita a figura do delegado Espinosa (presente em seus outros livros Achados e Perdidos, Vento Sudoeste e O silêncio da chuva), que vai percorrer parte do Rio de Janeiro na busca do culpado do assassinato de diversos policiais, enquanto se vê envolvido com três mulheres distintas. Ainda que não se trate propriamente do escritor andarilho, é possível estabelecer no texto a ligação do personagem com o desejo de criar uma narrativa a partir do texto da cidade que percorre. Ao observar as pessoas que encontra na rua, imagina suas histórias e dramas pessoais, e esse expediente lhe suscita o desejo de se debruçar sobre a trajetória daqueles indivíduos anônimos: "Dependendo da ocasião, chegava a elaborar biografias fantasticamente minuciosas. Sentia-se como um ficcionista cujos personagens eram as pessoas reais que encontrava nos restaurantes, nas lojas e na rua" (p. 30).O personagem se relaciona com o caminhar pela cidade diferentemente da personagem Serena, que "pensava melhor sentada numa poltrona do que andando na rua, onde as fontes de distração eram inúmeras, a começar pelo próprio mar" (p. 75). Para Espinosa, o ato de se deslocar pelos caminhos urbanos permite uma melhor fluidez de suas próprias idéias, além de propiciar o contato com as ruas da cidade, cenário que remete a outras caminhadas de outros personagens tão conhecidos seus. Em outro momento, quando caminha pela Avenida Atlântica, irrompe a lembrança da infância no bairro de Copacabana e da figura paterna. "Caminhou pelo calçadão admirando aquele mesmo mar onde trinta anos antes, em dias de águas bem mais calmas, aprendera a nadar com a ajuda do pai" (p. 183). Entretanto, é bom lembrar que Espinosa move-se em meio a uma realidade urbana em que dificilmente um indivíduo pode se permitir o ato de flanar, uma vez que a violência e a velocidade da vida nas grandes cidades impede tal caminhada despretensiosa. A saudade dessa flânerie pode ser observada em momentos pontuais da narrativa: "Até então, uma caminhada pelas ruas do centro do Rio funcionava como remédio eficaz, mas ele sabia intimamente que era um placebo" (p. 13). Ainda assim, o nostálgico Espinosa rejeita os meios de transporte mais modernos, preferindo andar a pé em vez de utilizar seu próprio veículo. Desta forma, pode ter uma perspectiva distinta da cidade, do mesmo modo que o personagem Augusto de Rubem Fonseca, ao situar-se no mesmo plano daquilo que vê. Copacabana e o Bairro Peixoto se configuram como itinerários que ao mesmo tempo fazem parte do mundo do trabalho mas também de seu mundo afetivo. Comer um quibe no restaurante árabe da galeria Menescal é parte do ritual do delegado, cuja caracterização está intimamente ligada ao espaço dos dois bairros. Dessa forma, Espinosa se configura em um personagem que revela matizes e particularidades de um certo universo carioca e brasileiro, insistindo em manter certos rituais que lhe permitem estar em contato com o passado recente da cidade em que vive. O paralelismo entre a enunciação lingüística e a enunciação pedestre pôde ser observado nos textos, que, de diferente maneiras, desdobram características do escritor andarilho, dando ênfase às figuras do passeador, do narrador-flâneur e do detetive. O passeador Gonzaga de Sá constata, contrafeito, o surgimento de uma nova cidade, diferente daquela que lhe era familiar. João do Rio atesta em suas crônicas uma visão do Rio de Janeiro que se moderniza, mas que traz em seu bojo a exclusão social. O escritor Augusto, personagem de Rubem Fonseca, é aquele que vive em um antigo sobrado do centro e quer recuperar suas raízes - pessoais e as da cidade. Já o detetive Espinosa acalenta o sonho de abrir um sebo de livros e é apreciador de passeios por locais que recuperam a memória do lugar em que vive. Fica no ar uma questão: esse esforço de recuperar uma tradição, que acabaria perdida, resguarda um traço de nostalgia, uma vez que todos os autores sugerem certa melancolia no modo de ver/representar aquilo que se perdeu, que ficou para trás de modo indelével. O escritor andarilho estaria ligado a uma proposta de lidar com a questão da tradição na representação da cidade, visando reavivar uma certa "resistência ao desaparecimento de referenciais que a tornaram possível" (GOMES: 148) Guardadas as devidas proporções históricas, estariam acometidos todos pela nostalgia da aura perdida dessa cidade. Ressignificá-la é tarefa da escrita, via de acesso que permite doar novos sentidos a essa experiência. |
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Nota (1) Michel Maffesoli chama a atenção para o fato de Zaratustra, o célebre personagem nietzscheano, afirmar que "filosofa caminhando". |
Referências ANTELO, Raul (1998). "Introdução". In: RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras. BARRETO, Lima (1997). Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Ática. BRISSAC, Nelson (1992). "É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?", Revista USP, São Paulo, n. 15, p. 15-25. CANCLINI, Nestor Garcia (1999). Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias. 4. ed. Rio de Janeiro: EDUFRJ. CERTEAU, Michel de (2000). "Caminhadas pela cidade". In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano; 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes. p. 169-92. FONSECA, Rubem (1992). Romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras. GARCIA-ROZA, Luís Alfredo (2001). Uma janela em Copacabana. São Paulo, Companhia das Letras. GOMES, Renato Cordeiro (1994). Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco.. MAFFESOLI, Michel (2001). Sobre o nomadismo. Vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record. RIO, João do (1987). A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural. SEVCENKO, Nicolau (1998). "A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio". In: SEVCENKO, Nicolau et al. História da vida privada no Brasil; volume 3. São Paulo: Companhia das Letras. |
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