ISSN 1679-1347 |
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Edições |
Artigo - Número 02 - Abril de 2004
Etnicidade sem visibilidade: um olhar acusador em torno de Haiti no disco |
Noites do Norte - ao vivo de Caetano Veloso |
Felix Ayoh'Omidire (Doutorando do PPGLL/UFBA)
Naquele tempo, disse Jesus aos
seus discípulos: "Eu vim lançar fogo sobre a terra...Vos pensais que vim trazer a
paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão. Pois, daqui em
diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra
três, ficarão dividido; o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a
filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra.- Palavra da
Salvação Evangelho de Lucas, 12, 49-53 |
Introdução Aò níi perí ajá kámá perí ìkòkò ti a fi sèé (1) Segundo parece, o jogo da oposição binária foi inventado só para afirmar as alteridades: preto versus branco, bom versus mal, tradição oral versus escrita, cultura versus natura etc. Da mesma forma, na análise do provérbio iorubano acima citado, o ajá (cachorro), naturalmente, está em oposição binária com o ìkòkò (panela), e vice-versa. E mais, será possível que não exista nenhuma lógica que faria o ajá e o ìkòkò trocarem de lugares ou passarem a se fusionar em um e mesmo sujeito atuante? Ou seja, em vez de ser uma operação exclusiva de ou uma ou a outra, que se fale de uma e da outra? Essa é, de fato, uma das linhas de intervenção do discurso pós-moderno e das críticas culturais contemporâneas. Bhabha (1997) e Hall (1992, 1997, 2000) entre outros teóricos da crítica cultural da contemporaneidade não se cansam de chamar a nossa atenção para o abalo das estruturas binárias de exclusão e dominação, saudando com todo entusiasmo os novos "sujeitos culturais híbridos" surgidos das cinzas da dominação imperialista colonial para ocuparem o entre-lugar crítico (reconhecidamente desconfortável e agonístico, mas que não deixa de ser muito produtivo) de onde poderão contestar as forças homogeneizadoras do Ocidente, levando ao palco global as différences locais. De acordo com essa nova lógica cultural, não se pode mais falar em "the West and the Rest" no sentido tradicional estreito desde que a mesma lógica que sustenta a existência de um também incentiva o outro a marcar sua presença, ou seja, que evocar o sujeito dominador da política hegemônica é o mesmo que dizer o sujeito a ela subordinado; enfim, que doravante, o "eu" se espelha no "Outro" da mesma forma que o(s) " centro(s) " se desdobra(m) nas " periferias ". Só a partir dessa nova lógica é que o politicamente incorreto poderia hoje ser visto de um outro ângulo. Isso parece ser o caso da obra, já não muito recente de Caetano Veloso que o cantor/compositor dedicou à questão do negro na sociedade brasileira. Um disco no qual as vozes se cruzam e se alternam. Trata-se do CD Noites do Norte e de seus derivados, o show Noites do Noite - ao vivo, assim como o disco duplo e DVD que nasceram do show (VELOSO, 2000 e 2001). Trazendo à tona o seu caráter do intelectual híbrido, o cantor/compositor se entrega ao processo doloroso e agonístico de botar a boca no trombone e (re)focalizar as lentes da câmara à uma questão cheia de contradições e indecidibilidades (HALL, 2000) no Brasil contemporâneo. Quando Caetano traz ao palco alguns dos discursos registrados na longa história das relações raciais no Brasil, conjugando e confundindo as vozes de Zumbi com a de Nabuco para (re)ler a sorte dos afrodescendentes neste Brasil que já teve orgulho da sua "democracia racial", não pode deixar de suscitar comentários por todos que conhecem o que um artista de seu quilate representa na sociedade brasileira. A pesquisadora Liv Sovik (2003) já elucidou bastante os possíveis porquês das escolhas que fizeram Caetano voltar a tocar no assunto da raça e etnicidade no Brasil justamente naquele momento em que os olhos do mundo inteiro pareciam estar voltados às sociedades diaspóricas das Américas, sociedades híbridas por excelência onde o casamento das raças parece ter tido um resultado mais feliz (2) do que em sociedades segregacionistas como a África do Sul (palco da III Conferência da ONU contra o Racismo) (3). Como diz o provérbio da nossa epígrafe, se a mera evocação do ajá (lemos aqui "negro") nunca deixa de nos lembrar da sua sorte infeliz no passado nas mãos do ìkòkò (4), é sinal de que ainda restam fantasmas a serem afastados. Portanto, como ler essa obra de Caetano que parece estar chamando atenção para o contrário? Que urgência tem de evocar a subordinação do afrodescendenteno Brasil se é verdade que a herança africana na formação da sociedade brasileira nunca foi tão reconhecida como nos últimos anos, com toda a atenção voltada para a cultura africana: o "saber" coletivo dos afrodescendentes e alguns "fazeres" (há quem disse isolados) que estão levando a uma maior visibilidade para os afrodescendentes e incentivando os governantes a começarem a investir na cultivação de uma maior valorização da cultura afro-brasileira, como se vê no projeto dos últimos dois carnavais da Bahia "Carnaváfrica" (5) (2002) e "Baiana do Acarajé" (2003), o que tende a convencer qualquer incrédulo que Stuart Hall tem razão ao afirmar, numa das poucas vezes que se mostra otimista nas suas análises culturais, que "A África passa bem, obrigado, na diáspora"? Com o CD duplo Noites do Norte - ao vivo, é evidente que Caetano Veloso procura chamar atenção para a situação paradoxal das relações raciais no Brasil contemporâneo. De acordo com o quadro retratrado pelo próprio Caetano na entrevista que concedeu a Liv Sovik (6), existe pelo menos dois ângulos de onde se poderia, ou melhor, (para seguir o argumento do próprio Caetano) deveria ver essa relação entre negros e brancos na sociedade brasileira. Como afirma o Príncipe do Tropicalismo, no Brasil: Há uma hierarquização brutal. (...) Ou seja, essa valorização com o branco no topo e o negro na base é estrutural mesmo na história do Brasil...Agora, o que eu quero dizer é que, apesar disso, essa outra coisa que eu descrevi existe e é vivenciada por todos os brasileiros, de uma forma ou de outra. (SOVIC, 2003) O meu propósito neste trabalho é tentar ver o que é "essa outra coisa" que Caetano descreveu no CD Noites do Norte - ao vivo, detendo o olhar sobre o mapeamento dos momentos da caminhada do negro através de uma leitura que culminará num close-up sobre o trecho "Haiti" que decidi salientar porque acho que é a faixa que melhor retrata as contradições do discurso racial nesta obra, além de ser a única faixa que interpela, diretamente, o sujeito/interlocutor do artista. De imediato, pode-se afirmar que esse trabalho intelectual feito pelo famoso príncipe do movimento Tropicalista representa uma cobrança eloqüente da parte dos afrodescendentes por uma justiça social mais eqüitativa. O que chamou primeiro a minha atenção no CD ao vivo é o arranjo das faixas. Parece que Caetano gosta mesmo é de brincar com os momentos de otimismo e pessimismo que caracterizam as relações raciais no Brasil. No mínimo se pode dizer que existem vários discursos interligados na obra. Porém, de todos esses discursos, o mais eloqüente, pelo menos a meu ver, é esse do Haiti que marca o ponto mais agudo de todo o CD. Colocando a faixa "Haiti" para fechar aquilo que prefiro ler como uma trindade de hinos do negro que se inicia pelo hino à abolição (13 de maio), seguido pela faixa "Zumbi" e terminando com "Haiti", o discurso de Caetano não poderia ser mais eloqüente. Na minha leitura, essa trindade representa três momentos diferenciados de apreciar e dialogar com a epígrafe que Caetano fez, artisticamente, com o texto musicalizado de Joaquim Nabuco e que deu o título ao CD Noites do Norte sendo que a epígrafe pode ser considerada como uma apologia do negro, feito por um pensador que, sem dúvida, foi um ilustre representante das correntes críticas do seu tempo e na qual ficou evidente o papel civilizador que teve o negro na construção da sociedade brasileira. Embora repleto dos estereótipos que as sucessivas levas de elites sempre guardam do negro - e que Nabuco concretizou nas sucessões adjetivais transpostas nas frases "sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem dia seguinte..." (NABUCO, 1999: 163) (7) - apesar desse detalhe, o texto ainda possui o valor de tirar o negro da antecâmara dos discursos e práticas raciais no Brasil. Pretendo, pois fazer uma leitura de "Haiti" à luz da já referida trindade de músicas do negro nesse CD Noites do Norte. A trindade começa com uma recordação da comemoração do "fim da escravidão" em Santo Amaro no dia 13 de maio. A ironia de cantor/compositor neste trecho flagra-se no parênteses: "Os pretos celebravam, (talvez hoje inda o façam) o fim da escravidão, da escravidão" (8) como se o compositor estivesse duvidando que a escravidão se findara de verdade naquela data. Mais adiante, quando consideraremos o lugar desde o qual fala o eu-enunciador desta canção, será possível analisar, mais profundamente, esse cinismo aparente do cantor/compositor. O faixa do meio nesta trindade que fala do regresso de Zumbi, o chefe quilombola, abriu com um desfile das nações africanas que foram os primeiros a contribuir com a mão-de-obra escrava para a edificação do Brasil ("Angola, Congo, Benguela..."). O trecho recorda a desgraça de todo um reino cuja rainha fora trazida para ser vendida num leilão junto com todos os seus súditos. Essa rainha desamparada foi acorrentada com o seu povo sem a menor consideração pela sua realeza, "todos num carro de boi", dizem as letras da música. A única esperança de salvação para este povo seria a chegada do guerreiro libertador Zumbi "senhor das demandas". Mas, será que esse chegou a tempo? Este trecho não pode deixar de evocar o episódio da rainha-mãe Na Agontimé, mãe do futuro rei Ghezo, poderoso soberano do reino de Danxomé vendida à escravidão durante a regência de um irmão do próprio filho que quis afastá-la e o filho do trono de Abomey para sempre. Sabe-se que, ao subir ao trono, o filho de Na Agontimé mandou vários embaixadores ao Brasil à procura da mãe, uns dizem que a rainha foi encontrada, mas que se recusou a regressar ao reino por causa do opróbrio que sofrera (VERGER, 1992), enquanto que outras fontes afirmam que nunca fora encontrado. Pelo menos, pode-se dizer que, no caso dela, Zumbi não chegou a tempo para o resgate. Levando isso em conta é que acho significante o refrão quase derrisório de Caetano, "eu quero ver...". O próprio trecho de "Haiti" fecha estas considerações sobre o status do negro no país da democracia racial. Gostaria de analisá-la em termos do discurso do eu-enunciador tanto a respeito da maneira como o negro é visto na sociedade brasileira, como da maneira como ele se vê a si mesmo e aos seus semelhantes. Isto é, refiro-me a seu relacionamento com o seu "eu" e com o "Outro". Para começar a apreciar esta faixa, é necessário referir-se ao papel que teve o país homônimo do título da música - a República do Haiti. O drama do homem negro que se passou naquela ilha tropical, muitas vezes, semelhante ao próprio Brasil, deve ter sido de grande inspiração aos músicos e homens de cultura brasileiros de todas as raças. A primeira colônia de escravos a declarar sua independência na revolução sangrenta de 1804, Haiti, antiga colônia francesa, chegou a subverter o lema da revolução francesa de 1789 para proclamar não somente "liberté, égalité, fraternité" para os escravos negros de Saint Domingues, mas a primeira e derradeira nação quilombola a querer desmentir as apostas do mundo ocidental de que o negro não era capaz de assumir o comando (9). Os seus heróisprincipais, os Generais Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines eram muito celebrados nos meios dos escravos de todo o Novo Mundo, e, com certeza, teriam influenciado, duma maneira ou outra, as atividades quilombolas no próprio Brasil do século XIX. Esse foi o Haiti evocado por Caetano Veloso, apostrofando o protagonista da música e interpelando-o de maneira mais urgente: "pense no Haiti, reze pelo Haiti". No tocante a essa referência a Haiti que vale a pena pensar e desejar como modelo para a sociedade brasileira em matéria de relações raciais, fui procurar a chave para a compreensão dessa parte que precede o refrão paradoxal "O Haiti é aqui - o Haiti não é aqui" (10) no discurso da independência proferido pelo General Dessalines, em 1º de janeiro de 1804, no qual convidava os haitianos a abraçarem uma das duas opções extremas: ou a liberdade ou a morte. Acho pertinente citar por completo o primeiro parágrafo da sua alocução histórica ao povo haitiano afim de melhor compreendermos a sua relevância ao assunto do nosso interesse atual: Citoyens, Ce nest pas assez davoir expulsé de votre pays les barbares qui lont ensanglanté depuis deux siècles; ce nest pas assez davoir mis un frein aux factions toujours renaissantes qui se jouaient tour à tour du fantôme de liberté que la France exposait à vos yeux; il faut, par un dernier acte dautorité nationale, assurer à jamais lempire de la liberté dans le pays qui nous a vus naître; il faut ravir au gouvernement inhumain qui tient depuis longtemps nos esprits dans la torpeur la plus humiliante, tout espoir de nos reasservir; il faut enfin vivre indépendant ou mourir. (grifo meu) (11) |
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"o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui" Segundo parece, para o nosso cantor/compositor, o espírito do Haiti está presente na ânsia dos afro-descendentes brasileiros pela sua libertação total de todas e quaisquer formas de preconceito racial, inclusive dos castigos corporais pelos quais os escravos passavam antigamente no largo do Pelourinho (espaço histórico por excelência que ainda hoje continua sendo palco de dramas raciais, muitas vezes, macabros como aponta Caetano) - "a fila de soldados, quase todos pretos / dando porrada na nuca de malandros pretos...". Nesta altura da canção, é difícil não relacionar esta imagem de soldados quase todos pretos à imagem dos capatazes negros e dos capitães-do-mato que caçavam escravos fugidos. É pertinente notar que, nos dois exemplos, o tratamento reservado aos negros (e quase negros) são praticados em nome da ideologia hegemônica que coloca o negro na base da hierarquiza social. Assim, pode-se afirmar que "O Haiti é aqui!", na sua desigualdade e na sua opressão. Em outras palavras, pode-se dizer que aquele Haiti que reconheceu a presença da desigualdade das raças e a necessidade de tomar uma atitude contra o racismo, é presente também na sociedade brasileira. "o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui" Porém, o cantor/compositor parece estar na dúvida se a outra face do Haiti encontra-se na realidade brasileira. Ou seja, aquela vontade que Dessalines quis acordar no seio do povo haitiano na parte em negrito do parágrafo acima citado: ...é necessário arrancar das mãos do governo desumano, que aprisiona durante tanto tempo os nossos espíritos na mais humilhante torpor, toda esperança de voltar a nos manter cativos; enfim, é necessário viver independente ou então, morrer. Num recente artigo intitulado "A dança macabra da pobreza no Haiti: As elites e suas percepções da pobreza e da desigualdade" (12), o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz chamou atenção para dois dos "múltiplos significados da revolução haitiana" ao descrevê-la em um primeiro momento como "a única rebelião de escravos que teve como resultado a expulsão ou a morte da totalidade dos colonizadores...", e depois apontando com o mesmo fôlego a "incapacidade de tal movimento de produzir um processo realmente emancipatório". Essas são enfim duas razões óbvias pelas quais o Brasil nunca subscreveria a uma solução do estilo haitiano para resolver a sua situação racial. Somado a essas na contemporaneidade são os índices cruelíssimos da pobreza e da curta expectativa da vida (13) naquela república que são suficientemente desalentadoras para afastar da mente dos ativistas mais teimosos e negrocêntricos o desejo de ver um quadro semelhante se reproduzir em sua pátria amada. "...O Haiti não é aqui!..." Em outras palavras, podemos afirmar que a mesma filosofia de "Wèrè dùn þwò löjà, kò ÿe é bí lömô!" (14) que tentei denunciar num trabalho anterior como presente na relação geral de muitos afrodescendentes brasileiros e movimentos afro-brasileiros para com a África contemporânea (15) se verifica também nessa refrão "...O Haiti não é aqui!...". A lógica desta filosofia que, de acordo com Reginaldi Prandt, faz com que os afro-brasileiros clamem um certo afrocentrismo que não implique, de jeito algum, uma volta à África, nem "para ser africano nem para ser negro" ( PRANDT, 1998) porque nem um nem o outro rima com o sonho de fazer parte de um mundo moderno. Inconscientemente, o jornalista José Néumanne Pinto, responsável pela rubrica "Direto ao Assunto", no Jornal matinal da rede SBT, mostrou, recentemente, o grau da naturalidade que tem assumido esse tipo de receio nacional no Brasil de se ser confundido com ou comparado a países como Haiti. Analisando, durante o noticiário do dia 1º de outubro de 2003, os índices de crescimento do país desde o início do século fornecidos pelo IBGE, o jornalista afirmou com toda naturalidade que, embora sofra de grande desigualdade social, o Brasil não é um país de pobreza, o país não é "um buraco de miséria...aquele país africano..." (16). Claro que quem cabe neste tipo de quadro é um país como Haiti, portanto, quem "pensar no Haiti" e "rezar pelo Haiti " como convida o cantor no refrão da música terá que levar em conta esse detalhe: "...Haiti não é aqui!". Acredito que é à luz deste tipo de discurso naturalizado que se deve ler a faixa com a qual Caetano abriu o primeiro CD do show Noites do Norte - ao vivo com o título super evocativo de "Two Naira Fifty Kobo" (17) referência direta à moeda nigeriana. Foi essa faixa que, mais do que qualquer outra, demarca o lugar do negro nessa bela democracia racial ao mesmo tempo em que mostra a aspiração nacional. O Brasil pretende ser um país do futuro conservando sempre, como diz o trecho, seu "coração da mata" que "faz força com o pé na África". Prosseguindo a afirmar que: "O certo é ser gente linda e cantar, cantar, cantar// o certo é fazendo música, a força vem dessa gente que canta...//fala tupi, fala iorubá". Em outras palavras o politicamente correto é não se esquecer do "pé" que o Brasil tem na África, onde o pé de Pelé se confunde com o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que admitiu que ele também tinha "um pé na cozinha" (18). Ponto para a mestiçagem ! e à escola freyriana. Mas, mesmo assim, fica evidente para todos que esse pé continua desigual como afirma os versos da reza na faixa "Zera a reza" que fecha o primeiro CD do show ao vivo. Até aí tudo bem, a afrodescendência é valorizada por todos quando ela se limita a sua atuação ao campo de futebol e à cozinha. Mas, no momento em que se procure levar essa simpática herança africana mais além, mediante uma política de ação afirmativa que pretende fazer mais a favor dos afrodescendentes através de cotas e outras políticas de direitos raciais, o aqui deixa de ser um Haiti (ou vice versa)! Segundo parece, a presença do afrodescendente em territórios fora de seu âmbito "natural", onde ele permanece invisível, arrisca desarranjar qualquer sociedade na sua marcha rumo ao futuro. Por isso, o cantor de "Haiti" pode afirmar que a cidadania não passa de uma ilusão: "Ninguém, ninguém é cidadão!". Só assim se entenderia o embaraço do "deputado em pânico mal dissimulado// diante de qualquer... plano de educação// que pareça fácil e rápido...// e vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau" (e, claro, o mal-estar que o tema de cotas não pára de provocar). Falando em cotas, o aluno de direito Christovan Ziemer da Universidade Federal do Paraná deixou clara essa postura do mal-estar, traindo ainda mais o pânico que provoca, ainda hoje, essa democratização do ensino quando publicou recentemente na Folha Acadêmica, jornal do Centro Acadêmico Hugo Simas, um artigo que indignou muita gente (19). No artigo que se intitula "Os descendentes negros devem é agradecer a escravidão!!!", que foi largamente circulado no correio eletrônico por colegas que não se conformam com tal postura de intolerância racial, o futuro jurista usou e abusou do estereótipo cuidadosamente construído na imprensa ocidental a respeito da África contemporânea, para argumentar que os afrodescendentes brasileiros não merecem nenhuma ação político-jurídica que vise um melhoramento de sua situação sócio-econômica na sociedade brasileira. Isso, de acordo com ele, pela pura razão de que a escravidão que trouxe os seus antepassados até o solo brasileiro foi um favor que deveria ser visto como uma benção dos céus porque, pontifica o futuro jurista, se não fosse pela escravidão, esses que hoje gozam (e ainda ousam queixar-se) do status de cidadãos de segundo grau como afro-brasileiros estariam morrendo aos poucos em solo africano. Repetindo a mesma linha ideológica que sustentou durante muitos séculos a dominação imperialista no continente africano, o nosso jovem iluminado pergunta: Isso, compare: quem está melhor? Os descendentes que vivem aqui na América, no Brasil, ainda que pobre, mas tendo a liberdade de andar por onde quiser, sem perigo de pisar numa mina esquecida da antepenúltima guerra civil, ou os descendentes de quem lá ficou? Estes, infelizmente, têm uma única dúvida na vida: como é que vai terminá-la, doente depois de se contaminar com um vírus, desnutrido, enforcado pelos saqueadores, explodindo numa mina terrestre, esfaqueado pelos revolucionários? Vistoisso, pergunto aos afro-descendentes: a escravidão foi ou não foi uma graça para vocês? Acredito que muitas pessoas competentes já estão respondendo a essas e outras séries de indagações levantadas por nosso amigo Christovan Ziemer. Porém me vejo na obrigação de, mais uma vez, repetir aquilo que nunca cansei de dizer: que é preciso que haja uma melhor familiarização das populações latino-americanas com a verdade africana contemporânea para a devida e adequada valorização das populações afro-latino-americanas. Tanto o discurso de Christovan Ziemer como o supracitado de José Néumanne Pinto, estão permeados pela idéia da África como um bloco homogêneo de sofrimentos, miséria, guerras sem fim, lugar por excelência de doenças incuráveis, cemitério da humanidade, fora das rotas da modernidade e excluída dos avanços científicos e econômicos dos tempos atuais, etc. Portanto, o primeiro passo para curar tais pessoas de suas idéias fixas é educá-las. Não é só esses que precisam de tal educação, que se faz cada dia mais urgente, como tenho dito em outro ensaio meu, já citado no presente trabalho, mas também muitos dos próprios afro-descendentes cujo discurso sobre a sua herança africana soa falso devido à mesma ignorância sobre o que é a África hoje; quais e como são os países do continente: suas instituições político-sociais, suas economias, suas línguas, culturas e civilizações, seus problemas, suas forças e suas fraquezas, suas cosmovisões e suas incoerências nacionais e regionais, o papel da atuação de outros povos no seu desenvolvimento e nas suas desgraças passadas e atuais... Acredito que até o dia em que se conseguirá valorizar a África na sua integralidade, até o dia em que conseguiremos nos convencer a nós mesmos de que a África faz parte do mundo atual com todas as vantagens e desvantagens que aquilo implica, que cada país africano tem as contribuições singulares que possam trazer (e que trazem) para o mundo globalizado, enfim, que o continente africano não é aquele velho inválido, doente, perigoso a si e aos outros, dependente aos demais sem possuir a força moral, intelectual, econômica nem social para participar da transformação do mundo atual, sempre vai continuar pairando sobre quaisquer reivindicações pela igualdade e justiça social nas sociedades da diáspora africana a sombra da desqualificação original que herdaram pela sua afiliação genética e racial. |
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Felizmente, embora não se tenha concretizado até o momento da redação deste ensaio a tão-esperada visita oficial do presidente Lula à África, parece que as autoridades brasileiras estão mais dispostas hoje mais do que nunca a cumprir as recomendações centrais feitas no final das deliberações do Colóquio do FESTAC'77, o Segundo Festival das Artes e Culturas Negras e Africanas que aconteceu em Lagos, Nigéria há 33 anos. Especificamente, a cláusula que diz respeito à promoção de uma verdadeira democracia racial no Brasil. O segundo ponto na relação das recomendações de FESTAC ao Governo do Brasil resumido por Abdias do Nascimento no seu livro estipula que o governo "promova o ensino compulsório da História e da Cultura da África e dos africanos na diáspora em todos os níveis culturais da educação: elementar, secundária e superior" (NASCIMENTO, 2002: 68). "...O Haiti não é aqui" O acúmulo dessas imagens que condenam os afro-descendentes a uma vida à margem da sociedade brasileira sem que ninguém se importe mostra o posicionamento de Caetano a respeito da questão racial. O combate de Caetano assume importância regional e até global quando evoca oportunamente o bloqueio a Cuba, outro exemplo da rebeldia latino-americana contra a hegemonia racial e imperialista, cujo povo até hoje paga um preço caríssimo pela sua ousadia de procurar uma ruptura com os poderes hegemônicos na escala continental. O mais trágico é que, conforme afirmou a música, essa situação não está prestes a mudar, porque, ao longo da história da luta dos afrodescendentes para reverter essa situação pouco agradável, através de políticas de ação afirmativa e, agora, de cotas para afro-descendentes, a verdadeira ruptura do status quo não se produzirá até que se mude a mentalidade das pessoas e se quebrem os estereótipos raciais que já negam de antemão qualquer acesso dos afrodescendentes à igualdade racial e a iguais oportunidades, preferindo limitar-se a fazer-lhes concessões momentâneas, esporádicas e isoladas de oportunidades em formas de negociação. Portanto, ninguém deveria se deixar burlar por tais oportunidades esporádicas que não vão além da superfície, porque, como se fez questão de afirmar na música, nada mudará as linhas intrínsecas desse racismo cordial, pois, ao final das contas, nada do que os afrodescendentes contam como suas vitórias vai conseguir mudar a sua situação de eternos cidadãos de segundo grau na sociedade brasileira. Em outras palavras, nem o "culturalismo" de que foram acusados os Movimentos Negros pelo pesquisador norte-americano Michael Hanchard (1994), nem a denúncia da democracia nos meios de comunicação, nem mesmo o sucesso momentâneo de alguns negros ou blocos afro mudariam o cenário racial brasileiro porque toda valorização da herança negra não passará duma folclorização desavergonhada e nunca levará os afrodescendentes a um derradeiro poder político e econômico como um grupo. Portanto, seria um erro para qualquer afrodescendente se iludir com o seu sucesso individual e momentâneo porque isso nunca mudaria a situação do grupo. Numa alusão quase cruel às principais "vitórias" momentâneas, tal como a participação da Banda Olodum na gravação de um disco do músico norte-americano Paul Simon, uma atuação que levou à visibilidade o estilo musical (samba-reggae) e a originalidade percussivo das bandas afro-brasileiras, a música de Caetano (re)afirma que isso não muda nada, só acrescenta à lista da eterna exploração do negro pelo sistema hegemônico que nunca deixou de tirar partido de seus dons e atributos. O pessimismo de cantor/compositor de "Haiti" parece incurável: Não importa nada: nem o traço do sobrado / Nem a lente do Fantástico, nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é cidadão... Concluindo, podemos dizer que com esse show e os CDs que dele derivaram, o artista Caetano conseguiu trazer, mais uma vez, à tona com o seu discurso sofisticado de sempre o peso moral da questão racial e do lugar do negro na sociedade brasileira. Através do seu discurso ora cínico, ora irônico, o artista conseguiu fazer um mapeamento importante dos discursos intelectuais sobre o tema. Resta saber se a sua verdadeira intenção era apenas provocar um sentimento de culpa ou uma mudança de rumo. Essa, logicamente, é a parte mais difícil. O que é certo é que, mais uma vez, mais um artista/intelectual procurou chamar atenção para a invisibilidade do negro na democracia racial brasileira, onde, de acordo com o jornalista português Antônio de Figueiredo que se encontrou em Lagos (Nigéria) durante a polêmica em torno da recusa de ensaio de Abdias do Nascimento no Festac77, "...a língua portuguesa e a longa tradição de censura sobre questões raciais têm contribuído para manter o Brasil resguardado da atenção das correntes principais do pan-africanismo e negritude" (NASCIMENTO, 2002: 64). Ciente do fato que este não passa de apenas mais uma possibilidade de "ler" a obra de Caetano, existindo sem dúvidas várias outras leituras que também saberão dar conta da questão racial na obra de Caetano Veloso, queria expressar esse aspecto do dano que os próprios negros, sobretudo os negros "privilegiados" (intelectuais etc.) poderiam causar ao diálogo constante que a periferia negra precisa manter com os centros hegemônicos, sobretudo nas relações transculturais que parecem ser as únicas viáveis na era presente da globalização. |
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Notas (1) Tradução livre: "Cada vez que se fala do cão morto, nunca se esquecerá das circunstâncias que levaram à sua morte." (2) Ninguém canta melhor esse casamento feliz do que A banda cubana Los Van Van no seu hino de entrada ao mundo ocidental intitulado "Llegó Los Van Van", no qual afirmam com tudo orgulho e otimismo na faixa eloqüentemente intitulada "Somos cubanos" que os cubanos representam " Somos la mezcla perfecta, la combinación más pura Las mezclas diferentes, con mucho sabor Gracias a Dios: Somos cubanos, español-africanos!// //Cuba la más agraciada nación, seguro que sí!...". (3) Da qual alguns participantes saíram apressadamente enquanto a maioria deixou Durban com mais perguntas que respostas, deixando supor que o momento esteja ainda muito cedo para insistir que o Ocidente assumisse por completo o compromisso da abertura para com o Outro como fica subjacente nas pretensões mais otimista da globalização. (4) É interessante como a língua iorubana brinca com os alomorfes ìkòkò e ìkokò, ou seja, dois inimigos temidos do cachorro: a marmita e o lobo. (5) Há quem ache que a valorização poderia convencer melhor se a letra "a" da África nos logotipos oficiais do Carnaval 2002 tivesse sido escrito com "a" maiúscula. Não há como não concordar com ela. (6) Liv Sovik comenta bastante no seu artigo acima citado essa entrevista realizada no dia 6 de abril de 2002. (7) O parágrafo integral do livro de Nabuco que Caetano musicou no referido epígrafe é citado por Liv Sovik (2003). (8) Essa ironia torna-se mais marcante ainda quando se lembra que o próprio Caetano Veloso é santoamarense, uma cidade do Recôncavo da Bahia que ainda comemora anualmente a bela epopéia da abolição nas festas do Bembe do Mercado: Candomblé da Liberdade no mesmo mês de maio. (9) Dizem que quando os negros de Haiti proclamaram o seu estado de homens livres acreditando que os ideais revolucionários da metrópole iam lhe dar razão, o grande Mirabeau pediu à Assembléia Nacional francesa que avisasse aos haitianos que "na hora de planejar o número dos deputados que o império francês ia precisar, nunca tinham pensado nos seus cavalos e nas suas mulas". Apud. Michel-Rolph Trouilot (1995: 79). (10) Que de ora em diante neste ensaio passa a ser o nosso marcador textual. (11) Liberté ou la mort, proclamação do General Dessaline ao povo haitiano. Cf. http://www.albany.edu/~js3980/haitian-revolution.html (12) Apresentado no mini-curso da Fábrica de Idéias (Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA), realizado em Salvador, em março de 2003. (13) De acordo com o mesmo artigo de Omar Ribeiro Thomaz, o PIB per capita de Haiti para o ano 1999/2000 não ultrapassou US$ 410,00, segundo o relatório do Banco Mundial enquanto que a esperança média de vida é de 52 anos e 57 anos respectivamente para os haitianos e haitianas. (14) Tradução literal: é mais interessante divertir-se com as asneiras de um bobo na praça pública do que desejar ter na sua própria família um filho que sofra de debilidade mental. (15) Refiro-me a "África-nostálgica vs África-princípio: os atritos da representação da africanidade no culturalismo afro-brasileiro", ensaio apresentado à disciplina Seminários Avançados IV do Programa de pós-Graduação em Letras e lingüística da UFBA, maio de 2003. (16) A ironia de tal afirmação se sente ainda mais pelo fato daquele dia ser a data comemorativa da Independência da Nigéria, país africano que possui a maior população negra do mundo. (17) Como unidade de valor, two naira fifty kobo pode ser lido como sinédoque simbólica da valorização do que representa a África nestas paragens, visto claro, pelos olhos do artista: O valor de two naira fifty kobo era quase o dobro em moeda americana e representava grande valor aquisitivo na época do II Festival das Artes e Culturas da África Negra (Festac77) momento do contato inicial de Caetano com aquela parte da África. Foi uma época em que a Nigéria era tão rico que deu para bancar sozinha todos os custos do Festac, inclusive a participação e hospedagem de representantes de todas as nações negras do mundo em uma aldeia especificamente construída para o evento. Aquela foi uma época gloriosa para a África, quando o Brasil evitava deixar transparecer qualquer sombra sobre a valorização da África e da herança africana no país, indo até o ponto de fazer tudo para afastar vozes que poderiam opinar o contrário como a de Abdias do Nascimento de participar do evento mediante apresentação de um trabalho intitulado: "Democracia racial" no Brasil: mito ou realidade? (Cf. NASCIMENTO, Abdias). Porém, hoje two naira fifty kobo não vale quase nada. É possível ler na decadência da moeda africana a de idéias e signos da África no mundo ocidental de hoje, uma imagem justamente de "buraco de miséria". (18) Vide a entrevista de Caetano a Liv Sovik (2003). (19) Uma estudante de Ciências Sociais da mesma universidade, Conceição Aparecida dos Santos, ficou tão chocada e magoada com o artigo que se viu obrigada a registrar queixa na polícia e abrir processo contra o autor e contra o Centro Acadêmico que publicou o artigo. Devemos a ela também a circulação por correio eletrônico do mesmo material. |
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