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ISSN 1679-1347

Inventário

Revista dos estudantes do

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA

(PPGLL)

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Artigo - Número 02 - Abril de 2004


Outro retrato em branco e preto (ou o contrário):

Cidadania e violência em "Haiti", de Caetano Veloso (1)

 

Jean Wyllys de Matos (Mestrando do PPGLL/UFBA)

 

O título deste exercício de crítica cultural parece fazer referência ao discurso da caricatura de Caetano Veloso consagrada na mídia: àquele famoso bordão "ou não" acrescentado ao fim de toda afirmação, que serve para mostrar Caetano Veloso como um artista/intelectual confuso e sempre em cima do muro. Sim, o título deste artigo faz referência à caricatura presente na mídia, mas não assume seu ponto de vista. Não tenho o propósito de ridicularizar o hábito de Caetano Veloso de desdizer o que disse antes ou, no mínimo, tornar relativas suas afirmações. Ao contrário, quero ressaltar o quão produtiva pode ser a ambivalência do discurso do artista (chamo de discurso qualquer letra de música, texto publicado ou declaração na mídia), sobretudo quando esse discurso se refere a situações e relações igualmente marcadas pela ambivalência, como é o caso da letra de Haiti.

De todas as canções do disco Tropicália Dois, "Haiti" foi a que causou mais impacto na indústria cultural (2) e na cultura de uma forma geral quando do lançamento do disco, e, portanto, foi a que revelou ter maior fôlego para ser retomada posteriormente por outros artistas da música, críticos da cultura, historiadores, professores de Literatura, escritores e pelo próprio Caetano Veloso (o cantor reinterpretou a canção em outros três discos: Tropicália Duo, Fina estampa - ao vivo, e, mais recentemente, em Noites do Norte - ao vivo). O fôlego de Haiti se deve, sobretudo, à sua letra, que parte da descrição de uma cena de violência urbana - soldados da polícia militar da Bahia espancando malandros, ladrões e outros baianos em pleno Largo do Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador - para tratar da exclusão social, dos conflitos de classes, da escravidão, do racismo, da exploração, do cinismo e de outras formas de violência enquanto opositoras da cidadania. A oposição entre cidadania e violência no Brasil é a chave de leitura deste artigo, que se quer um trabalho de crítica cultural acerca de Haiti.

Mais que outro retrato em branco e preto do Brasil, tirado por Caetano Veloso (chamo Haiti de "retrato em branco e preto" não só pela referência, na letra, às pessoas pretas e brancas, mas também pela ausência de colorido, de alegria, das situações nela descritas), a música é um fotograma de um filme em p&b que não cessa de ser rodado. Sem querer abusar da alegoria, recortar o fotograma é como flagrar um entrecruzamento das linhas que tramam o tecido social e cultural.

É possível enquadrar, já nos primeiros versos de Haiti (3), a primeira das violências que solapam a afirmação constitucional de que todos somos cidadãos: a desigualdade social. Esta se manifesta no acesso ao adro da Fundação Casa de Jorge Amado. Se os malandros pretos, os ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos - todos pobres - estão embaixo apanhando da polícia, quem está no adro vendo tudo do alto? Quem é "você" a quem Caetano Veloso se refere?

Só posso afirmar que a oposição espacial - alto e baixo -, na letra da música, é metonímia da hierarquia social; e esta, ao ser flagrada em pleno "largo onde os escravos eram castigados" (VELOSO, 2001) (4), aparece como herança da escravatura no Brasil.

A escravidão de negros no Brasil durou mais de três séculos e trouxe para o país "3,6 milhões de africanos trazidos compulsoriamente" (SCHWARCZ, 1998: 173-244). Estes, ao se tornarem propriedades de quem os comprava, eram por definição não-cidadãos, considerados inferiores. E, como lembra Lilia Moritz Schwarcz em seus estudos sobre racismo e desigualdade social, após a abolição da escravatura, a liberdade não significou a igualdade.

O Pelourinho, hoje, é um espaço público, onde se reúnem pessoas de diferentes classes e raças, o que o transforma em aparente modelo de relações pacíficas e democráticas, sobretudo nos discursos da propaganda oficial e de grande parte da mídia. Os primeiros versos de Haiti, entretanto, rasuram esse modelo ao expor "a violência inerente às relações sociais de um país escravista, colonizado ou hierárquico" (ZALUAR, 1996: 48). E não deixa de haver uma ironia no fato de Caetano Veloso flagrar a hierarquia no acesso a uma instituição consagrada a um escritor branco e ex-comunista, conhecido também por sua identificação com os pretos e pela defesa de uma justiça social e uma democracia racial. Com a sutil ironia é possível que Caetano Veloso esteja marcando seu desvio em relação à linhagem de intelectuais da qual fazem parte Jorge Amado e ele: Caetano Veloso não quer só celebrar a contribuição cultural dos negros, mas chamar a atenção para o fato de que estes, apesar daquela, não ascenderam à condição de cidadãos.

Como argumenta a antropóloga Alba Zaluar,

aqui a hierarquia é negada [grifo meu] pela comensalidade freqüente, pelo convívio cotidiano nos espaços públicos, pelos casamentos inter-raciais e interclasses, e afirmada [grifo meu] pela diferença de trajes e hábitos, pelos círculos sociais fechados, pelas escolas freqüentadas por privilegiados, pelos diferentes tratamentos obtidos pela polícia e na justiça que negam a cidadania ou os diretos universais (1996: 49).

Eis aí uma situação marcada pela ambivalência. O fato de os holofotes da mídia estarem voltados para o Largo do Pelourinho devido à reforma do Centro Histórico e à repercussão mundial da participação do Olodum (grupo musical com sede no Pelô) em discos dos pop-stars Paul Simon, Michael Jackson e Daniela Mercury não se reverte em melhoria da qualidade de vida da ampla maioria dos negros que freqüenta a Terça da Bênção, como deixa claro a cena retratada em Haiti. Caetano Veloso, explorando a ambivalência da axé music, põe temporariamente em suspensão a capacidade do samba-reggae de resgatar a auto-estima dos afro-descendentes e até de permitir que alguns artistas negros ascendam socialmente, para afirmar que nem mesmo ele, o batuque, amplia a cidadania (ainda que Haiti, a música, seja também um samba-reggae): "Não importa nada: nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico, nem o disco de Paul Simon. Ninguém, ninguém é cidadão" (VELOSO, 2001).

O antropólogo Gilberto Velho, embora tenha escrito um artigo no qual informava que no Brasil havia cidadania de primeira, segunda e terceira classes, afirma em Cidadania e violência que, se alguém tem privilégios em uma sociedade e o outro não tem, não existe cidadania "porque a idéia de cidadania é basicamente a idéia de que o outro tem, pelo menos potencialmente, os mesmos direitos e deveres" (1996: 235).

No Brasil, só uns poucos têm garantidos seus direitos civis, econômicos e políticos, ou seja, apenas alguns (a minoria) podem se considerar plenamente cidadãos. Estes podem ser associados aos "sujeitos de primeira" de que fala o psicanalista Jurandir Freire Costa. Segundo ele,

a prática lingüística ou a tradição burguesa à qual pertencemos organizou o jogo da crueldade, formando no seu núcleo uma espécie de central de sujeitos que são considerados 'sujeitos de primeira' e que não necessariamente são sujeitos que possuem só os predicados de quem se apropria privadamente dos meios de produção. (COSTA, (s./d): 81)

De acordo com o psicanalista, esse núcleo é formado, grosso modo, pelos ricos, pelos inteligentes, pelos jovens, pelos brancos, pelos bonitos, pelos heterossexuais, pelos poderosos e pelos bem sucedidos. Os componentes desse núcleo seriam o "você" a quem Caetano Veloso se dirige na letra de Haiti?

O tratamento diferenciado que as polícias dispensam aos que estão embaixo do adro (ou seja, aos que estão na parte inferior da hierarquia social), reprimindo-os com violência enquanto protegem os que estão no alto, é retratado, em Haiti, sem retoques nem colorizações: uma fila de soldados dando porrada em malandros, ladrões e outros pretos pobres ou quase brancos.

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O Primeiro relatório nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) em 1999, a pedido da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, afirma que a "Bahia enfrenta problemas graves de violência policial, grupos de extermínio com participação de policiais, violência contra crianças e adolescentes, negros, indígenas e homossexuais" (PINHEIRO; MESQUITA, 1999: 22).

A Comissão Justiça e Paz, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa da Bahia registraram, em 1995, 32 chacinas resultando em 104 mortes - na sua maioria de jovens negros desempregados com idade entre 17 e 25 anos - cujos responsáveis seriam policiais, vigilantes e comerciantes. Segundo a Comissão Justiça e Paz, somente na região metropolitana de Salvador, em 1996 e 1997, 295 pessoas morreram vítimas da ação de grupos de extermínio e 238 pessoas morreram vítimas de ação policial. Em 1997, o Ministério Público da Bahia recebeu 158 denúncias de crimes de violência policial e requisitou 95 inquéritos policiais civis e 9 militares.

A violência policial contra malandros e ladrões (e - também - numa associação perversa entre negritude, pobreza e criminalidade produzida historicamente e explorada e estimulada pela mídia - a violência da polícia contra pretos e contra brancos pobres tratados como pretos), quase sempre, ganha a cumplicidade das maiorias silenciosas (BAUDRILLARD, 1994) (das quais fazem parte também os mesmos pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres), como exemplifica Caetano Veloso ao se referir ao "silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina" (VELOSO: 2001) do Carandiru, em que oficialmente 111 presos foram violentamente exterminados numa ação da tropa de choque da PM paulista.

Claro que o apoio tácito das maiorias à violência policial é fruto também do medo e da sensação de insegurança que se apoderaram do corpo social em decorrência da visibilidade alcançada pela violência dos bandidos e dos traficantes de drogas ilegais. O medo e a sensação de insegurança, segundo afirma Ciro Marcondes Filho, em Violência política, funcionam como importantes elementos nos controles civis. Ante as imagens da violência veiculadas pela mídia, os telespectadores, ouvintes e leitores, quase sempre sugerem uma resolução que não mexe com as estruturas sociais: o aumento do policiamento. Quanto menos seguras as pessoas se sentem, mais elas exigem um Estado policial e um Estado forte. As conseqüências políticas deste comportamento são bastante previsíveis segundo Marcondes Filho (1987: 56): "Um Estado forte e policial reduz o espaço da democracia e instala-se para garantir, a qualquer preço [grifo do autor], a realização dos interesses e aspirações dos sujeitos e classes que o controlam". Não à toa o "deputado em pânico mal dissimulado diante de qualquer [...] plano de educação que pareça [...] fácil e rápido e vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau" (VELOSO, 2001) vai à tevê defender a adoção da pena de morte. O pânico dos políticos diante de uma possível democratização do ensino, mencionado por Caetano Veloso no verso supracitado, só se explica pela idéia de que o conhecimento, o saber e a informação também podem libertar as pessoas do medo e da exploração. E ainda não pode ser considerado um mero equívoco do Cardeal a afirmação de que há "tanto espírito no feto e nenhum no marginal" (VELOSO, 2001). Os soldados espancam, em público, malandros pretos, ladrões mulatos e "outros quase brancos tratados como pretos, [grifo meu] pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) e aos quase brancos pobres como pretos como é que pretos e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". (VELOSO, 2001)

Outras conseqüências da exigência de um Estado policial e forte são apontadas pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares em argumento que complementa o de Marcondes Filho:

os 'duros' [...] tendem a sustentar intervenções violentas, cujo efeito é a liberalização de atos policiais arbitrários, visando à derrocada mais rápida e completa dos bandidos. Contudo, o efeito perverso acaba sendo a inversão das expectativas, pois [...] a inflação dos preços da vida e da liberdade dos criminosos, decorrente da redução do custo do 'desvio de conduta' policial, funciona como forte atrativo que termina por induzir muitos policiais a negociar com bandidos, aumentando a taxa de corrupção, cumplicidade e impunidade. Essa é a paradoxal equação das políticas truculentas. Os resultados são conhecidos e comprovam a veracidade do argumento. (SOARES, 2000, p. 34-5).

O silêncio sorridente das maiorias diante da violência (não só a da polícia) dá a contribuição simbólica para que aquela se incorpore

nas práticas informais, pertencentes ao campo dos acordos tácitos da vida cotidiana, que não são explicitadas em nenhum código, mas gozam do aceite das pessoas nas suas interações sociais, adquirindo a invisibilidade do que é 'natural' ou habitual, mesmo na esfera das instituições criadas para defender a lei. (ZALUAR, 1998: 246-7)

No caso, as polícias e o Ministério Público. O silêncio, nesse caso, confirma o exílio de um contingente de um sistema de fato liberal e igualitário, de um Estado que exerça minimamente suas funções de proteção e garantia.

Por fim, quero concluir este artigo com a certeza de que não se exauriu o que se tem a dizer acerca de cidadania e violência no Brasil a partir da canção de Caetano Veloso (não se mencionou, por exemplo, a violência no trânsito citada explicitamente em um dos versos) -, e tambèm lembrando que a música em questão nos leva a pensar que o grande número de pretos, a desigualdade social, as violências policial e urbana, o cinismo, o medo e o sentimento generalizado de insegurança existentes no Brasil aproximam este país do Haiti. No Haiti - a primeira república negra moderna e um dos países mais pobres e violentos do mundo -, segundo relatório da Organização dos Estados Americanos (5), os bairros, as favelas e até o centro de Porto Príncipe são dominados por quadrilhas chamadas "As quimeras", que seriam criminosos organizados e a serviço dos partidos políticos. Esses bandos distribuiriam armas de guerra entre adolescentes recrutados nas favelas, exatamente como, por outros motivos, o fazem os narcotraficantes brasileiros.

Mas a polícia do Estado, segundo o mesmo relatório da OEA, não seria menos violenta. Por esse outro retrato em branco e preto, o Haiti é aqui, como afirma Caetano Veloso. E por se declarar oficialmente uma república negra, o Haiti não é aqui, como nega Caetano Veloso.

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Notas

(1) O título faz referência a um verso da letra de "Retrato em branco e preto", escrita por Tom Jobim; à canção "Outro retrato", composta por Caetano Veloso para o disco Estrangeiro; e ao livro Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX, de Lilia Moritz Schwarcz, publicado pela Companhia das Letras.

(2) O impacto de Haiti na indústria cultural esteve associado ao fato de a música ser um rap composto por dois "medalhões" da chamada MPB (Caetano Veloso e Gilberto Gil) e ter sido usada como carro-chefe de um disco, Tropicália Dois, lançado exatamente num momento em que o rappers das periferias das grandes cidades - quase todos negros- começavam a se tornar grandes vendedores de discos e a penetrar a programação da MTV com suas crônicas da violência - sobretudo a policial - a que estava sujeita a maioria negra das favelas e bairros pobres.

(3) "Quando você for convidado pra subir no adro/ Da Fundação Casa de Jorge Amado/ Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/ De ladrões mulatos e outros quase brancos/ Tratados como pretos".

(4) A área em frente à Fundação Casa de Jorge Amado é chamada de Largo do Pelourinho porque ali existia um instrumento de tortura de escravos chamado de pelourinho e que esteve no local até a década de 1980.

(5) Quinto Relatório da Missão Da Organização dos Estados Americanos ao Haiti.

 

Referências

BAUDRILLARD, Jean (1994). À sombra das maiorias silenciosas - o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Editora Brasiliense.

COSTA, Jurandir Freire (s./d.). Psicanalista diante da realidade brasileira. In: Mídia e violência. (Fotocópia).

MARCONDES FILHO, Ciro (1987). Violência política. São Paulo: Editora Moderna, 1987.

PINHEIRO, Paulo Sérgio, MESQUITA Neto, Paulo de (1999). Primeiro relatório nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil. São Paulo: NEV/USP.

SCHWARCZ, Lilia Moritz (1998). Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: Schwarcz, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras. p. 173-244.

SOARES, Luiz Eduardo (2000). Meu casaco de general - Quinhentos dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

VELHO, Gilberto (1996). "Debate 1 – Violência e cultura". In: VELHO, Gilberto, ALVITO, Marcos (org.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV.

VELOSO, Caetano (2001). Noites do norte - ao vivo, Universal Music 04400165272.

ZALUAR, Alba (1996). "A globalização do crime e os limites da explicação local". In: VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos (org.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV. p. 48.

ZALUAR, Alba (1998). "Pra não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil". In: Sshwarcz, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras.



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