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ISSN 1679-1347

Inventário

Revista dos estudantes do

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA

(PPGLL)

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Artigo - Número 02 - Abril de 2004


Caetano Cult ou uma consciência limite

Vilma Mota Quintela (Doutoranda do PPGLL/UFBA)

Nos países subdesenvolvidos, o equipamento cultural se limita geralmente a círculos muito pequenos e classes médias rudimentares. Com freqüência consiste em apenas alguns poucos difusores e consumidores, ligados pela educação dos mecanismos culturais de nações mais desenvolvidas. Esses desventurados eleitos formam o único público disponível para os produtos e serviços culturais.

C. Wright Mills

Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.

(...)

Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar "o semelhante no mundo" é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.

Walter Benjamin

No ano em que Caetano Veloso faz 60 anos, não seria justo negar a importância decisiva de sua obra fonográfica à legitimação daquilo a que ele se referiu, ainda em meados da década de 1960, como sendo a "linha evolutiva" da MPB. Esse conceito, expresso pelo compositor, em 1966, em entrevista à Revista Civilização Brasileira, remete à Bossa Nova como referência moderna nessa "linha" na medida em que, rompendo com o tradicionalismo, esse movimento legitima e revitaliza a MPB, dando continuidade à sua tradição. Tal é o pressuposto do comentário feito por Augusto de Campos, em 1967, em artigo intitulado "O passo a frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil", em que avalia a intervenção dos dois compositores tropicalistas no cenário da MPB naquela década:

(...) foi justamente por não temer as influências e por ter tido a coragem de atualizar a nossa música com a assimilação das conquistas do jazz, até então a mais moderna música popular do Ocidente, que a bossa-nova deu a virada sensacional na música brasileira, fazendo com que ela passasse, logo mais, de influenciada a influenciadora do jazz, conseguindo que o Brasil passasse a exportar para o mundo produtos acabados e não mais matéria-prima musical (ritmos exóticos), "macumba para turistas", segundo a expressão de Oswald de Andrade (CAMPOS, 1993: 143).

Vista sob esse ângulo, a Bossa Nova representa um equivalente musical pop de uma determinada face do modernismo brasileiro, na medida em que encarna, musicalmente, o princípio antropofágico oswaldiano da superação das barreiras entre o nacional e o internacional, entre o periférico e o cosmopolita (1). Ou seja, a fusão do samba com o jazz ou a apropriação transformadora do modelo cosmopolita pelo periférico, e a conseqüente transformação do ritmo periférico em estilo internacional padrão, teria conferido à Bossa Nova o status da modernidade. Com tal gesto crítico e funcional, de ruptura e afirmação, Tom e João se inscrevem na "linha evolutiva" da MPB. Com essa atitude dissonante, a Bossa Nova teria, ao mesmo tempo, colocado em xeque e reativado a tradição musical brasileira iniciada, oficialmente, com a gravação comercial do samba "Pelo telefone". Só dessa forma, reinscrevendo o elemento nacional nesses termos, compositor e interprete teriam se tornado referência internacional, e, a Bossa Nova, conquistado lugar decisivo na "linha evolutiva" da MPB. É nesse sentido que parece se encaminhar o comentário de Caetano Veloso, feito na entrevista acima mencionada, a que se reporta Augusto de Campos em artigo de 1967 (CAMPOS,1993). Nesse comentário, é significativo o fato de Caetano se referir a uma certa "organicidade" como parâmetro ao julgamento crítico e à criação:

Numa entrevista de Caetano Veloso para a Revista Civilização Brasileira, nº 7 (maio 66), descobri o que me pareceu ser a mais lúcida autocrítica da música popular brasileira, naquele impasse: "Só a retomada da linha evolutiva (...) pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. (CAMPOS, 1993: 123)

No caso, o articulista, no calor dos acontecimentos que antecederam à Tropicália, alude ao impasse produzido em um momento "pós-protesto", em que, de acordo com seu julgamento, dominava, nos festivais, certo saudosismo inoperante, e instituia-se a cruzada inócua dos "puristas do samba" contra o iê-iê-iê:

A Banda e Disparada passariam e deixariam tudo no seu lugar, como estava: Chico, por certo, um grande compositor (já o era antes), e a jovem guarda com seu prestígio inalterado. Impossível fazer o novo com o velho. Pois o novo ainda era Tom & João. (CAMPOS, 1993: 123)

Quando fala, na entrevista, em "organicidade", Caetano Veloso revela uma consciência prévia do que sua intervenção representava naquele impasse. Em tom de autocrítica, Caetano assumia, naquele momento, um papel decisivo à retomada por ele defendida, reconhecendo a necessidade dessa retomada à legitimação de sua proposta artística. Vale ressaltar que, a partir de tal depoimento, o compositor revela, talvez, intuitivamente, uma postura muito bem definida quanto à MPB; uma atitude crítica e, por que não dizer, culta, que, desde já, operava essa legitimação. As palavras de Caetano publicadas em 1966, antes, portanto, do lançamento de seu primeiro disco solo (2), evidenciam que, a ele, desde a sua estréia no panorama artístico e cultural brasileiro, interessava, antes de mais nada, posicionar-se afirmativamente no cenário artístico-musical brasileiro de onde ele agora passava a falar. A MPB era a casa a que, atualizando o gesto realizado pela Bossa Nova e indo além deste, ele deveria retornar trazendo consigo guitarras, recursos cinematográficos, arranjos da vanguarda erudita, arte pop e conquistas da era eletrônica. Desse modo, Caetano e o grupo de artistas que, pouco depois, assumiram o Tropicalismo, puderam ampliar os efeitos dissonantes da Bossa Nova, à medida em que os incluia em uma nova ordem (3). Reatualizando, em princípio, intuitivamente, a proposta oswaldiana, Caetano e seu grupo distendiam a base a partir da qual operariam a síntese antropofágica, superando o impasse entre o tradicionalismo e o iê-iê-iê (4). Diante da constatação do papel hegemônico da indústria cultural na nova ordem do mundo, elegeram como objeto de reflexão e referência à criação os produtos desta, como observamos nesta fala do artista, publicada em 1968:

Acredito que a necessidade de comunicação com as grandes massas seja responsável, ela mesma, por inovações musicais. O rádio, a TV, o disco, criaram, sem dúvida, uma nova música: impondo-se como novos meios técnicos para a produção de música, nascidos por e para um processo novo de comunicação, exigiram, possibilitaram novas expressões. Esse novo processo de comunicação é presa de um esquema maior ( as leis estéticas que comandam a produção musical em rádio, disco e TV nascem de necessidades comerciais, respeitos oficiais-estatais, compromissos morais etc. etc.) que representa, muitas vezes, um entrave à inovação (inovar, no sentido de ampliar o campo do conhecimento através de uma forma de arte). Livre do patrocinador, do censor, do compromisso com a mediocridade das massas, o "pesquisador puro" é que irá dar saltos ousados; não sem risco, entretanto, de cair no vazio. (CAMPOS, 1993: 199-200) (5)

Tendo em vista a discussão contemporânea sobre os efeitos da influência, cada vez maior, dos mecanismos de comunicação de massa no contexto cultural brasileiro, Caetano se coloca de maneira peculiar, em relação a esta. Por um lado, ressalta os benefícios decorrentes das inovações tecnológicas, incorporando-as como mecanismos de criação estética; por outro, efetua a crítica à ordem segundo a qual a produção artística segue a lógica do mercado particularizando o uso dessas inovações de acordo com as vanguardas musicais. Em outras palavras, podemos dizer que Caetano aposta no diálogo entre a cultura de massa e o experimentalismo das vanguardas como saída ao impasse diante das injunções da indústria cultural:

Assim, se poderia pensar que o rádio, a TV, o disco, como meios de comunicação, teriam transformado a própria forma das artes por eles divulgadas, mas que esses meios, com toda a força que eles tinham, trariam em si mesmos o freio às inovações. Creio, porém que a possibilidade do meio novo exigir a forma nova não está esgotada. (...) Por exemplo: os Beatles romperam esse mecanismo, mas só o conseguiram através do poder adquirido através do disco. Você ouviu o disco do Jimi Hendrix, Experience? (...) Jimi é guitarrista e faz as letras de suas músicas. Além disso, ele canta atrás desses sons que ele e o baixo tiram da guitarra, em primeiro plano. E isso que ele canta e você quase não ouve são letras excelentes e difíceis. Eu tenho a impressão de que tudo isso penetrou um pouco como exigência de que se faça a novidade. (CAMPOS, 1993: 199-200)

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Contrariando certa linha populista dominante, na década de 1960, entre os intelectuais de esquerda que conduziam o debate sobre a política e a cultura nacional em veículos informativos de prestígio, como é o caso da Revista Civilização Brasileira (6), Caetano Veloso reconhece o valor mercadológico do iê-iê-iê ao passo que frui e assimila a linha mais sofisticada do rock. Leva, pois, às últimas conseqüências, a atitude dos expoentes da Bossa Nova, propondo um diálogo entre o autêntico e o inautêntico e a superação da dicotomia entre o sofisticado e o kitsch. Nesse ponto, ao passo que propunham uma estética que dava continuidade à linha evolutiva da MPB, Caetano e os tropicalistas superavam certos limites que circunscreviam o campo de ação da Bossa Nova a uma certa classe média requintada. Efetuavam, também, plenamente, o princípio antropofágico, ao promover o diálogo entre essas diferenças culturais. Em suma, afrontavam como propunha Oswald, o tabu e o ícone ao realizarem o salto que possibilitou a imersão da MPB e de suas referências tradicionais na cena pop e vice-versa.

Como se pode deduzir dessas intervenções críticas de Caetano Veloso, àquela altura, o compositor, sempre apoiado por Gilberto Gil, demonstra assumir, de modo consciente, uma postura crucial para a revitalização da MPB. A propósito, cumpre ressaltar um aspecto característico do Tropicalismo, tal como Caetano o traduz. Tal aspecto, já vislumbrado na fala de Caetano antes mesmo de o termo "tropicália" virar marca, se confirmará, ao longo dos anos, como um distintivo do seu discurso. Refiro-me, aqui, ao diálogo que se instituiu na MPB nesse período, sobretudo, através de Caetano, não apenas com as vanguardas literárias e com a literatura decorrente desta, mas, de maneira geral, com certas linhas do discurso intelectual ou culto. Vale, a propósito, destacar, na produção fonográfica de Caetano Veloso, alguns exemplos em que se observa esse diálogo, muitas vezes comentado pelo compositor. É o caso do LP Caetano Veloso, lançado em 1968 antes do coletivo Tropicália ou Panis et Circencis; do LP Araçá Azul, obra experimentalista pós-exílio, produzida em 1972; dos CDs Circuladô e Circuladô ao vivo, de 1992, e dos CDs Noites do Norte e Noites do Norte ao vivo, respectivamente, de 2000 e 2001, entre tantos outros exemplos em que tal diálogo se explicita. No que diz respeito às vanguardas, vale lembrar, como significativa à consagração do Tropicalismo no cenário intelectual brasileiro, o diálogo de seus compositores com os poetas do Concretismo; especialmente, o diálogo entre Augusto de Campos e Caetano Veloso, a partir do qual o discurso oswaldiano vai se integrando ao do tropicalista como uma espécie de referência legitimadora. Podemos observar isso, por exemplo, nesta fala do compositor em entrevista feita pelo concretista no final da década de 1960:

É fácil você compreender como Oswald de Andrade deve ser importante para mim, tendo passado por esse processo, tendo ficado apaixonado por um certo debochediante da mania de seriedade em que caiu a BN. (...). Uma outra importância muito grande para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas idéias dele sobre a poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo. (CAMPOS, 1993: 204-5)

Importa destacar, no fragmento acima, que o compositor traduz sua postura a partir de pressupostos articulados em um contexto cultural que, em princípio, se poderia pensar alheio ao contexto de produção da MPB na década de 1960, qual seja, o contexto de certa produção literária brasileira articulada na década de 1920, retomando tais pressupostos como legitimadores de sua proposta artística. Cumpre dizer, a propósito, que o trânsito entre o pop e o "culto" se constituirá como um dado característico do modo como, ao longo de sua trajetória, Caetano Veloso se insere no contexto da MPB e, de maneira geral, no debate sobre a produção cultural brasileira. Passados mais de trinta anos do surgimento da Tropicália, os ecos desse diálogo podem ser ouvidos ao longo de sua obra fonográfica, que, com o tempo, foi incorporando outras referências literárias, filosóficas ou que dizem respeito ao saber culto ou a cultura letrada como pressupostos de novas propostas artísticas. Tal é o caso do recente Noites do Norte, em que o autor transforma em canção um trecho da obra do abolicionista Joaquim Nabuco. Ao fazê-lo, incita, indiretamente, uma polêmica sobre a idéia da escravidão como uma marca nacional, a partir da revitalização lírica do discurso de um representante de um setor conservador da intelectualidade brasileira pós-colonial (7).

Agora, como já se observava na década de 1960, as referências eruditas são, também, mediadores a partir dos quais Caetano instaura um discurso sobre o Brasil e sobre a realidade brasileira, levando em conta um contexto cultural mais amplo. Cumpre ressaltar, esse diálogo com a erudição, que se institui como uma marca característica de sua obra, resulta, também, como um mecanismo de legitimação de seu discurso para além desta. É o que podemos observar na entrevista recente de Caetano Veloso à Revista Cult:

Oswald foi o ponto que uniu todos os envolvidos direta ou indiretamente nas atividades que cercaram o tropicalismo. Tanto os Campos quanto Zé Celso, Oiticica como Zé Agrippino, Antônio Cícero e Zé Almino, Duprat, Rogério Duarte, Torquato, Waly, todos concordavam a seu respeito. O patriarca do matriarcado de Pindorama, o antropófago indigesto, o modernista mais conseqüente porque mais irresponsável. (VELOSO, 2001: 50)

Nesse novo contexto, Caetano volta a falar de Oswald juntando essa menção a diversas outras relativas à sua formação intelectual. Estas vão sendo comentadas pelo artista a partir das perguntas feitas pelos entrevistadores, cuja tônica incide sobre as referências cultas do entrevistado. Em alguns pontos da entrevista, Caetano chega a falar diretamente sobre sua relação com os livros, e sobre como essa relação veio a definir ou confirmar sua postura artística:

(...) a leitura do William Saroyan me fez intuir o que era o mundo de possibilidades dessa idéia das rupturas do modernismo. Eu era muito garoto, mas aquilo me engajou, eu me engajei com aquilo, eu me tornei torcedor daquela atitude, me tornei um modernista, de imediato, ao ler William Saroyan. (VELOSO, 2001: 50)

Mais adiante, ele fala de como, antes de entrar em contato, diretamente, com as vanguardas literárias e filosóficas que iriam marcar sua atuação na década de 1960, começou assimilando a produção literária pós-guerra, que viria a ser a base da sua formação:

Logo tomei contato, no primeiro número (da Revista Senhor) que tive na mão, com um conto lindíssimo da Clarice Lispector, "A imitação da rosa". Pensei: "Isso é mais bonito que o William Saroyan, e é uma mulher, no Brasil", eu não acreditava. E havia uns textos curtos, muito perspicazes e modernos e irônicos e bem feitos do Paulo Francis, que meencantavam (...) E, finalmente, meses mais tarde, um conto do Guimarães Rosa (...). No ano seguinte (1960), eu me mudei para Salvador, com esse acervo imenso para mim na verdade, embora eu não tivesse uma infância num ambiente literário. (VELOSO, 2001: 46)

É interessante observar como esse aspecto ganha importância fundamental, a partir do momento em que o diálogo de Caetano com a instituição literária se revela como um distintivo de sua postura ambígua com relação à ordem mercadológica em que se insere sua atividade artística, transformando-se em um mecanismo e em um parâmetro à criação. Isso se torna significativo, sobretudo, se pensarmos na fragmentação da cultura letrada, decorrente, em parte, da popularização do ensino formal, implicada nas reformas educacionais realizadas a partir do Estado Novo, como um fenômeno decisivo à formação intelectual de certa classe-média constituída após a segunda guerra (8). Tal fenômeno se revela, como se observa em seu depoimento, na maneira como foi se dando a formação de Caetano Veloso, a partir do encontro fortuito com obras que surgiam em seu ambiente doméstico, ou através de veículos culturais como a Revista Senhor, que surgem, em parte, como resultado dessa popularização:

Mas não havia livros na minha casa. Aquela frase na minha canção "Livros" é quase um desabafo, um lamento autobiográfico. Nossa casa era imensa, um sobradão daqueles enormes, antigos, do recôncavo da Bahia, (...) Mas não tinha uma biblioteca. Nem sequer uma estante com livros. Mas havia livros em minha casa. Uns livros fugazes que estavam sempre nas mãos de minha mãe – que era a única pessoa que eu via dentro de casa lendo. (VELOSO, 2001: 43)

A propósito, cabe, aqui, levar em consideração o breve comentário em que o crítico Antonio Candido se refere ao fenômeno da "generalização" do saber letrado instituído ao longo do século XX, após a década de 1930, como um evento análogo ao que aconteceu à música popular nesse mesmo período, e a relação desse fato com o que sucedeu à música popular nos anos 60:

(...) na música popular ocorreu um processo equivalente de "generalização" e "normalização", só que a partir das esferas populares, rumo às camadas médias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes, tornando-se um pão-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 20 um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional homens como Noel Rosa, Ismael silva, Almirante, Lamartine Babo, João da Baiana, Nássara, João de Barro e muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo da música popular nos anos 60, inclusive de sua interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário (VELOSO, 2001: 198)

Tal fenômeno, que tornou possível a Bossa Nova, junto com o fato da rotinização de certos segmentos do saber letrado, observada a partir da década de 1930, e mais a nova ordem instituída a partir dos anos 1960, quando a indústria cultural se afirma, mundialmente, como força hegemônica, compõem, em suma, um conjunto de condições a partir das quais se tornou possível a retomada da linha evolutiva da MPB, nos termos anunciados por Caetano Veloso. Estas definiram o caráter híbrido da sua obra fonográfica, resultante do cruzamento de discursos produzidos em diferentes esferas da atividade cultural, bem como a postura ambígua que o artista assumiu diante da constatação da força hegemônica da cultura de massas no contexto mundial :

Naquela época, essa colaboração de gente da alta cultura com a cultura de massa e a indústria cultural era uma amostra de independência e coragem, como na arte pop e no cinema de Godard. E também no caminho inverso, saindo do popular para o erudito, como nas experiências dos Beatles e dos tropicalistas. Mas evidentemente as coisas não são assim fácéis e lineares. Mais tarde, houve uma necessidade e um refluxo da idéia de volta aos cânones mais tradicionais e um cuidado com a idéia de alta e baixa cultura. Nos Estados Unidos, misturaram muito e depois houve muita reação,"high","low" (...) Mas o meu caso pessoal terminou pondo o João Gilberto no centro da resolução das perspectivas estéticas, criativas e receptivas. (VELOSO, 2001: 51)

Hoje, quando o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito, não uma transgressão, ou seja, à medida em que esses princípios se transformam em valor negociável, e tais procedimentos foram incorporados à cultura de massa, Caetano Veloso ainda, se coloca, na esfera de produção da indústria cultural, como uma espécie de consciência limite:

Nós já falamos na palavra "produssumo" que o Décio cunhou. Mas essa própria palavra, hoje, oscila, treme, por causa de vários fatores que atingem com a experiência que nós temos do pensamento crítico como se desenvolveu daquela época para cá. Por exemplo, se você chama - como eu chamei, e chamei de propósito, repetidas vezes, nessa entrevista que dei para o lançamento do Noites do Norte - aquilo que você apresenta para julgamento, para a fruição pública de produto, isso causa um mal-estar em todas as pessoas envolvidas. (VELOSO, 2001: 51)

Tal é o que ocorre, por exemplo, no caso do recente Noites do Norte, em que a recuperação lírica de uma fala erudita sobre um problema estrutural da sociedade brasileira, dá o tom inicial à reflexão sobre a possibilidade de existência da música popular brasileira, não apenas como um meio efetivo de comunicação de massa para a poesia, mas, também, como um veículo capaz de exprimir, em uma síntese poética, as tensões próprias de nossa identidade cultural.

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Notas

(1) A propósito, cf. Manifestos Antropófago e Pau Brasil, escritos por Oswald, que representam uma das tendências estéticas que se tornaram hegemônicas após a década de 1920.

(2) LP lançado em 1968, no mesmo ano do LP coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que reúne os artistas então ligados ao Tropicalismo.

(3) A respeito do Tropicalismo e da Geração Tropicalista, na qual também se destaca bastante a atuação do compositor Gilberto Gil, cf. Celso Favareto (1996) e Augusto de Campos (1993).

(4) Caetano afirma, em entrevista a Augusto de Campos, ter composto Tropicália uma semana antes de assistir à montagem de O Rei da Vela, em 1967. Teria sido esse seu primeiro contato direto com a obra de Oswald. Cf. Augusto de Campos (1993), p. 204.

(5) Caetano responde a pergunta formulada pelo autor: "Você acha possível, Caetano, conciliar a necessidade de comunicação imediata (tendo em vista as grandes massas) com as inovações musicais?"

(6) Surgida em 1965 e extinta em 1968, às vésperas do AI5, a Revista Civilização Brasileira foi uma das publicações cultas de maior difusão na história desse tipo de imprensa periódica. A propósito, cf. MOTA, Carlos Guilherme (1994), p. 205-29.

(7) Refiro-me à obra Minha Formação, de Nabuco, de 1900 e reeditada em 1999 pela Topbooks. Eis parte do trecho do livro aproveitado por Caetano: "A escravidão permanecerá por muito tempo ainda como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou (...)". A propósito, sobre Noites do Norte, cf. SOVIC, Liv (2002).

(8) Para uma contextualização do panorama cultural brasileiro a partir da revolução de 30, cf. CANDIDO, Antonio (2000).

 

Referências

CAETANO VELOSO. Revista Cult, São Paulo, n. 49, ano V, agosto de 2001.

CAMPOS, Augusto de (1993). O Balanço da Bossa e outras bossas. 5. ed., São Paulo: Perspectiva.

CANDIDO, Antonio (2000). "A Revolução de 30 e a Cultura". In: CANDIDO, Antonio. A educação pela Noite e outros ensaios. 3. ed., São Paulo, Ática, 2000.

FAVARETO, Celso (1996). Tropicália Alegoria Alegria. 2. ed. São Paulo, Ateliê Editorial.

MOTA, Carlos Guilherme (1994). Ideologia da cultura brasileira (1933*1974). 8. ed., São Paulo: Ática.

NABUCO, Joaquim (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks.

SOVIC, Liv (2003). "Vozes ouvidas nas Noites do Norte: etnicidade dominante na obra recente de caetano Veloso". Anais do VIII Congresso da Abralic - Mediações, Belo Horizonte, ABRALIC/UFMG, 23 a 26 de julho de 2002, CD-ROM.



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