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Breves considerações sobre o uso dos advérbios de lugar nas Cantigas de Santa Maria (séc. XIII)

Antonia Vieira Santos (PPGLL/Ufba)

Resumo: neste artigo, analisamos os principais usos dos advérbios de lugar nas Cantigasde Santa Maria (séc. XIII), de Afonso X, buscando descrever o sistema vigente no período lingüístico abrangido pelo corpus. Como suporte teórico, utilizamos alguns conceitos do âmbito da dêixis.

Palavras-chave: lingüística histórica, advérbios de lugar, dêixis, Cantigas de Santa Maria.

Abstract: in this paper, we analyse the principal uses of locative adverbs in the Cantigas de Santa Maria (13 th century) from Afonso X, attempting to describe the present system in the linguistic period covered by the corpus. As theoretical support, we use some concepts of deixis scope.

Key-words: historical linguistic, locative adverbs, deixis, Cantigas de Santa Maria.

INTRODUÇÃO

Os advérbios de lugar constituem uma categoria gramatical especial, uma vez que se incluem numa categoria lingüística maior, a dos chamados dêiticos, palavras com capacidade intrínseca de situar os elementos presentes no discurso e de fazer referência à situação na qual o enunciado é produzido. Os dêiticos representam os elementos indiciais da linguagem e atuam, portanto, como situadores no campo mostrativo da linguagem.

Contrariamente aos demonstrativos, que também são dêiticos por excelência, os advérbios são invariáveis quanto ao gênero e número. As mesmas formas que representam a referência espacial potencialmente também podem representar a referência temporal, quando combinadas com outros elementos do sintagma. Dessa forma, ao classificarmos essas formas de “advérbios de lugar” negligenciamos a sua dupla funcionalidade no sistema da língua portuguesa. No entanto, na ausência de um termo que melhor represente a sua realidade funcional, optamos por utilizar neste trabalho a designação tradicional.

O sistema atual dos advérbios de lugar apresenta um paralelismo com o sistema dos pronomes demonstrativos, o qual, por sua vez, mantém a configuração ternária do latim. Já em latim, a tríade adverbial HIC-ISTlC-ILLIC era associada aos pronomes demonstrativos e estabelecia graus de proximidade relativamente ao lugar em que se encontra o falante. Dessa forma, a língua portuguesa possui um sistema tripartido dos locativos relacionado do seguinte modo com o sistema demonstrativo [1]: aqui = ‘neste lugar’ (próximo do falante), = ‘nesse lugar’ (próximo do ouvinte), ali = ‘naquele lugar’ (afastado do falante e do ouvinte). Conserva-se, portanto, a potencialidade intrínseca dos advérbios locativos (e temporais) de servirem como indicadores no campo mostrativo do falante. Além desse sistema com três elementos, o português utiliza um bipartido, formado pelos termos e (acolá), que opõem as noções de ‘proximidade’ e de ‘distanciamento’ também em relação ao sujeito falante, exclusivamente.

No português arcaico também o primeiro sistema era dicotômico, ou seja, ainda não havia a forma (< hi), na sua origem um anafórico. Integrada ao sistema adverbial apenas no século XVI, essa forma transformou o microssistema binário em microssistema ternário (TEYSSIER 1981, p. 37).

O presente estudo está circunscrito às formas adverbiais aqui-ali; acá-alá; acó-aló. O nosso objetivo é descrever e analisar os principais usos dessas formas no período lingüístico abrangido pelo corpus, no que diz respeito a aspectos morfológicos e semânticos, utilizando para tal alguns conceitos relacionados com a dêixis.

METODOLOGIA

Em primeiro lugar faremos a recolha das formas adverbiais nas cantigas selecionadas. Em seguida procederemos ao levantamento quantitativo dessas formas. Na análise, separaremos os advérbios por tipos, apontando os seus principais usos. Para tal, servimo-nos de alguns conceitos do âmbito da dêixis, considerando-a, à partida, como um fenômeno geral: o que chamamos de dêixis situacional corresponde à mostração extralingüística; dêixis textual envolve as situações de anáfora e de catáfora e ocorre seja no discurso escrito seja no discurso oral; dêixis metatextual ocorre quando o dêitico "aponta" para o próprio texto (BÜHLER 1967; FONSECA 1992; LAVRIC, 1998).

ESTABELECIMENTO DO CORPUS

Selecionamos, para a recolha e a análise das formas adverbiais de lugar (e de tempo), o texto das Cantigas de Santa Maria de Afonso X, coletânea medieval de poesias em louvor da Virgem Maria, reunidas no princípio dos anos sessenta do século XIII [2]. A escolha deste texto se deveu ao seu caráter parcialmente narrativo, interpolado por diversas situações de discurso direto, o que favorece, principalmente, a observação do uso dêitico-situacional dos advérbios de lugar.

OS ADVÉRBIOS DE LUGAR EM LATIM

De acordo com o que já foi referido, os advérbios de lugar (e de tempo), no que diz respeito a sua função no processo de comunicação lingüística, destinam-se a situar o evento comunicado no espaço (e no tempo) em relação à figura do falante. Funcionam, portanto, como indicadores no campo mostrativo do falante (CÂMARA JR., 1979, p. 115). Tal funcionalidade não é de se estranhar, pois em latim a série de advérbios locativos encontrava-se, mórfica e semanticamente, em correspondência direta com a série de pronomes demonstrativos, dêiticos por excelência.

Em latim, o sistema dos advérbios pode ser apresentado como um grupo constituído por indicadores: (a) de posição ‘onde’ «estar, permanecer, ficar em um lugar»), (b) de direção ‘para onde, aonde’ «ir, dirigir-se a um lugar»), (c) de procedência ‘donde’ «vir, sair de um lugar») e (d) de passagem por um lugar ‘por onde’ «passar, andar por um lugar») (Cf. ALMEIDA, 1994, p. 143).

Na classificação de Pavao Tekavčić (1980, p. 408 e ss.), as oposições ocorrem entre os traços ‘dinâmico’ / ‘estático’, ‘movimento orientado’ / ‘movimento não-orientado’ (isto é, com ou sem ponto de referência), ‘movimento de um lugar’ / ‘movimento para um lugar’ (ponto de partida / ponto de chegada), estabelecendo-se categorias de ‘posição’, de ‘direção’, de ‘procedência’ e de ‘passagem por um lugar’. Distingue-se, para cada uma dessas categorias, uma forma para pergunta e uma para resposta. A forma utilizada na resposta, por sua vez, corresponde a uma indicação dêitica e configura, de acordo com o grau de orientação em relação às pessoas do discurso, uma dêixis personalizada ou uma dêixis não­ personalizada.

Esse sistema, assim como o dos demonstrativos, também sofre modificações: abandona-se a distinção formal entre ‘passagem por um lugar’ e ‘direção’, desaparecendo toda a série dos advérbios de ‘direção’ e também qua e ea. Os advérbios restantes da segunda categoria – hac, istac, illac – sobrevivem, porém não mais indicam ‘passagem por um lugar’. A perda de distinção formal também afeta quase completamente as categorias ‘direção’ e ‘posição’, iniciando-se já em latim a substituição de quo por ubi, processo que continua em quase todos os idiomas românicos (it. dove stai? / dove vai?; fr. où es-tu? / où vas-tu?; rom. unde eşti? / unde te duci?). A tendência a eliminar a distinção entre os advérbios indicadores de ‘direção’ e de ‘procedência’ também pode ser observada na substituição freqüente de ubi por unde.

O desaparecimento da maioria dos advérbios latinos deve-se, principalmente, à debilidade fonética que experimentavam essas formas, geralmente muito breves. Por outro lado, a oralidade – e toda a gama de circunstâncias e pressupostos que a envolve – favoreceu o surgimento, a exemplo dos demonstrativos, de formas reforçadas: nas perguntas, aparecem combinações com a preposição de, nas respostas, combinações com a partícula epidêitica ecce ou eccu (ou, ainda, * accu).

Dessa forma, o sistema dos advérbios latinos de lugar desagrega-se, resultando, daí, uma antecipação do sistema que cada língua viria mais tarde a adotar. No caso da língua portuguesa, em sua fase arcaica, encontramos os seguintes advérbios [3]:

AQUI

<

*ACCU HIC

 

ALI

<

ILLIC

ACÁ (4)

<

*ACCU HAC

 

ALÁ

<

ILLAC

ACÓ

<

*ACCU HOC

 

ALÓ

<

ILLOC

ANÁLISE DO CORPUS

Morfologia e semântica dos advérbios de lugar

A organização dos advérbios de lugar enquanto dêiticos situacionais é estabelecida de acordo com a oposição ‘o que está próximo’ e ‘o que está afastado’ da pessoa que fala. Assim, chegamos aos pares «aqui-ali» e «acá-alá». O par «acó-aló» não pôde ser confrontado, uma vez que não houve registro da primeira forma. Etimologicamente, o par «aqui-ali» tem a capacidade de designar lugares pontuais, delimitados, dizendo respeito ao ‘lugar onde se está’; o par «acá-alá» tem a capacidade de designar áreas extensivas, abrangentes – portanto, não pontuais – e direções, uma vez que seu sentido corresponde a ‘para cá’ / ‘para lá’. O par «acó-aló» assemelha-se a «aqui-ali», diferençando-se apenas na noção de movimento que apresenta (‘lugar para onde se vai’).

Analisando o levantamento dos locativos adverbiais nos dois primeiros volumes da edição das Cantigas de Santa Maria, observamos o predomínio do primeiro par: juntos, «aqui» e «ali» totalizam 209 ocorrências. Em seguida, «lá» e «acá» apresentam 81 registros. O último par apresenta, na realidade, uma única ocorrência de «aló»:

221.36 - «E oyu falar de Onna, | u avia gran vertude; / diss’ ela: «Leva-lo quero | aló, assi Deus m’ajude, / ca ben creo que a Virgen | lle dé vida e saude.»

Observe-se o valor diretivo de «aló», também pressuposto pela semântica do verbo levar.

São contabilizadas, nesta estatística, expressões como «des aqui», «des ali», «des aly», «per aqui», «per ali» e «per aly». As locuções com a preposição «des» apontam para uma referência temporal, significando ponto de partida, enquanto que as estruturas com «per» indicam uma referência locativa. Vejamos alguns exemplos:

31.63 - «E des ali adeante | non ouv’y boi nen almallo / que tan ben tirar podesse | o carr’ e soffrer traballo»

16.42 - «Amigo, creed' a mi, / se esta dona vos quererdes, fazed’ assi: a Santa Maria a pedide des aqui, / que é poderosa e vo-la poderá dar»

15.52 - «E mais ti digo que, sse conqueiro / terra de Perssia, quero vĩir / per aqui log’ e teu mõesteiro / e ta cidade ti destroyr»

É necessário destacar ainda, na morfologia dos advérbios, duas ocorrências da forma «lá», sinalizando o processo de aférese que viria a se concretizar definitivamente nas formas «acá» e «alá» nos estados lingüísticos subseqüentes do português. A forma «cá», por sua vez, não ocorre no corpus analisado. Vejam-se as ocorrências:

24.17 - «Quand’ algur ya mal fazer, / se via omagen seer / de Santa Maria, correr / ya sen tardança.»

195.115- «O convent’ estando / a el asperando / muit’ e preguntando / quando chegaria; / mais mui queixosa / a moça foi por el, quando / ouve sospeytosa / Sa vida, e forte / temeu del sa morte.»

O advérbio «acá» ocorre 11 vezes como dêitico situacional, sendo uma vez combinado com a preposição «de». Seguem-se alguns exemplos:

62.47 - «E cavalgou logo sen demorança / e foi a seu fillo con esperança, / e viu-o estar u fazian dança / a gente da vila, qu’ esteve muda, / Que non disse nada quand’ o chamava: / «ven acá, meu fillo»

107.59 - «Acá / Vĩid’ e batiçar-m-edes, / e tal miragr’ oyredes / que vos maravillaredes, / e tod’ om’ assi fará.»

124.33 - «Por Deus, acá / Un crerigo mi aduzede, | a que diga quanto fix / de mal, de que pẽedença | de meus pecados non prix?»

35.106 - «Todos responderon logo: | «Preit’ outr’y non averá / que o todo non tomemos, | mas tornaremos dacá; / daquelo que guaannarmos | cad[a] ũu y dará / o que vir que é guisado, | como o poder soffrer.»

O advérbio «aqui» ocorre predominantemente como dêitico situacional, ou seja, em situações de discurso direto, por se tratar do «dêitico mais fundamentalmente dêitico», servindo como parâmetro topológico do espaço enunciativo:

15.45 - «Pois ta pessõa nobr’ aqui vẽo, / filla-o, se te jaz en prazer.»

35.52 - «Non me praz / con estes que aqui vẽen; | mas paremo-nos en az, / e ponnamos as relicas | alt’ u as possan veer.»

45.62 - «O que vos dig’ entendede: / eu sobirei ao ceo, | e vos aqui me atendede, / e o que Deus mandar desto, | vos enton esso fazede»

97.44 - «Sennor, vos enviastes por mi, / e tanto que vossa carta vi, / vin quanto pud’, e áque-m’ aqui.»

11.47 - «Ide daqui vossa via, / que dest’ alm’ aver / é juigado»

As demais ocorrências de «aqui», ou seja, que não caracterizam o tipo de discurso direto, dizem respeito à localização espacial relativamente à figura do narrador. Em alguns casos parece haver uma oposição de caráter metafórico: o "céu", lugar da Virgem, pressuposto pelo contexto, versus a "terra", lugar dos mortais, representado por «aqui». Por exemplo:

49.16 - «E ar acorre-nos aqui / enas mui grandes coitas, / segund’ eu sei ben e oý, / quaes avemos doitas»

75.40 - «E porend’ eu vos conselIo | que façades testamento, / e dad’ a nossa ygrega | sequer çen marcos d’arento; / ca de quant' aqui nos derdes | vos dará Deus por un çento, / e desta guis’ averedes | no Parayso entrada.»

103.56 - «E por aquesto a loemos; | mais quena non loará / Mais d’outra cousa que seja? | Ca, par Deus, gran dereit’ é, / pois quanto nos lle pedimos * | nos dá seu Fill’, a la ffe, / por ela, e aqui nos mostra | o que nos depois dará»

Consideramos ainda uma ocorrência de dêixis metatextual:

B.45 - «Aqui sse acaba o Prologo das Cantigas de Santa Maria.»

Com a preposição «de», «aqui» ocorre combinado 19 vezes. Nessa situação, é observável o seu uso com valor temporal, principalmente quando seguido da palavra «adeante».

42.34 - «poren daqui adeante | serei eu dos servos teus, / e est’ anel tan fremoso | ti dou porend’ en sinal.»

42.70 - «Mal te nenbrou a sortella | que me dést’; ond’ á mester / que a leixes e te vaas | comigo a como quer, / se non, daqui adeante | averás coyta mortal.»

Também a expressão «daqui a cras» indica um valor dêitico temporal:

237.90 - «Sey aqui, | non temas nemigalIa, / e pornán que daqui a cras | mãefestes ta falIa / quantas ás feita contra Deus, | e crey ben que te valIa / meu Fill’ e vivirás con el, | pero te vay sannudo.»

Sem a preposição, identificamos uma ocorrência de «aqui» que pode ser interpretada como designando valor temporal:

238.48 - «El respondeu escarnindo: | «Crerigo, que torp, [sic!] estás! / O ben, de Deus e da Virgen | renegu’, e aqui me dou / Que non ajan en min parte | e que xe me fazam mal / e me metan, sse poderen, | dentro no fog’ infernal.»

O emprego designando tempo não foi encontrado na análise das ocorrências de «acá» .

O comportamento de «acá» muito se assemelha ao de «aqui», no que se refere às ocorrências em situação de discurso direto. Há também ocorrências em que o tempo do discurso tem como referencial dêitico o narrador, e não o personagem, ou seja, o valor dêitico do advérbio é depreendido em relação à "fala" do narrador.

229.7 ­- «E dest’ un mui gran miragre | avẽo, tempo á ja, / quando el Rei Don Alffonso | de Leon aduss’ acá / mouros por roubar Castela, | e chegaron ben alá / u ora é Vila-Sirga, | segundo que aprendi»

242.9 - «e poren, macar nos ceos | ela con seu Fillo sé, / mui tost’ acá nos acorre | sa vertud’ e seu poder.» (acá = ‘na terra’, em oposição a ‘no céu’)

Ainda em relação a «acá», observamos o seu uso acompanhado por uma determinação do tipo «acá de fora», o que configura uma ruptura com o espaço enunciativo, uma vez que não ocorre em situação de discurso direto e nem situa o fato enunciado relativamente à posição da pessoa que narra. Trata-se antes de um uso expressivo do referido locativo, tomando mais próxima do público ouvinte a situação relatada. Por outro lado, o uso de «acá» em vez de «aqui» pode dever-se ao seu caráter de locativo menos marcado.

246.23 - «Mas quando chegou a ela, | cuidou log’ entrar alá, / mas as portas ben serradas | achou, e fillou-ss’ acá / de fora fazer sas prezes | e começou de chorar»

As expressões «acá nen alá», «alá nen acá» e «dacá e dalá» ocorrem uma vez e representam uma visão distributiva do espaço, com valor semântico representado pelas perífrases ‘nem um lado nem o outro’, nos dois primeiros casos, e ‘de um lado para o outro’, no último caso.

92.12 - «E esta Virgen santa deu / pois lum’ a un crerigo seu / que perdera, com’ aprix eu, / que non vii’ acá nen alá

186.73 - «E a gente viu / cabo dela outra, e falar oyu, / que depois non viron alá nen acá.»

159.31 - «E fezeron log’ a arca | abrir e dentro catar / foron, e viron sa posta | dacá e dalá saltar»

O advérbio «alá» ocorre 53 vezes, «lá» 2 vezes. A forma «dalá» surge 4 vezes. O que caracteriza os usos de «alá» é o seu valor dêitico textual e o seu papel de co-referenciador:

55.2 - «Esta é como Santa Maria serviu pola monja que se fora do mõesteyro / e lli criou o fillo que fezera alá andando»

114.52 - «Logo madr’ e fillo en camy’ entraron / e foron a Salas e alá contaron / aqueste miragre»

116.46 - «dizendo «Adu-me», / A un seu sergent’ assi, «duas grandes candeas», / as que de Toled’ aqui / trouxe, que non son feas; / ca eu taes alá vi / mellor arder que teas / nen que nihũa cousa / que o fogo conssume.»

Observe-se na ocorrência 116.46 que o uso anafórico de «alá», retomando o referente «Toledo», contrasta com o uso de «aqui», que aponta para a situação real de discurso.

A forma «alá» aparece algumas vezes determinada pela partícula «u», na verdade um advérbio com função de relativo:

32.44 - «E poren / Te dig’ e ti mando | que destas perfias / te quites; e se non, d’oj’ a trinta dias / morte prenderias / e alá yrias / u dem’ os seus ten / na ssa baylia, / ond’ ome non ven.»

146.56 - «E u seu camynno fillou / por ir aa Madre de Deus, / alá u el ya, topou / con esses ẽemigos seus, / que o prenderon»

O único registro de «acolá» pode ser observado a seguir. Essa forma está acompanhada do advérbio relativo «u» e conduz para uma interpretação de catáfora. Trata­-se de uma única ocorrência; portanto, seu emprego pode estar condicionado pela quantidade de sílabas do verso.

135.100 - «Poren nunca mi averá / erg’ a quen m’ ela dará; / e vos, quitade-vos ja / d’irdes contra seu mandado, / mais levade-m’ acolá / u ést’ o que seerá / meu marid’ e meu amado.»

A forma adverbial «ali» ocorre 72 vezes; «aly», 19. As formas com a preposição – as variantes «dali» e «daly» – ocorrem 37 e 10 vezes, respectivamente. Predomina nessas ocorrências a dêixis textual, principalmente na modalidade anáfora, como podemos observar nos exemplos abaixo:

5.69 - «Dous monteiros, a que esto mandou, filIárona des i / e rastrand’ a un monte a levaron mui preto dali; / e quando a no monte teveron, falaron ontre si / que jouvessen con ela per força, segund’ eu aprendi.»

209.19 - «Poren vos direi o que passou per mi, / jazend’ en Bitoira enfermo assi / que todos cuidavan que morress’ ali / e non atendian de mi bon solaz.»

235.55 - «E pois entrou en Castela, | vẽeron todos aly, / toda-las gentes da terra, | que lle dizian assy:»

O acompanhamento das formas de «ali» pelo advérbio relativo «u» se faz 25 vezes (e uma vez pela forma «onde»), configurando, nesses casos, uma situação de dêixis catafórica. Seguem-se alguns exemplos:

18.40 - «Onde ll’ avẽo assi / ena gran festa / d’ Agosto, que vẽo y / con mui gran sesta / ant’ a omagen orar; / e ali u jazia / a prezes, foi-lle nenbrar / a touca que devia.»

55.25 - «E foi ao mõesteiro | ali onde sse partira, / e falou-ll’ a abadessa»

75.169 - «Para mentes | en quant’ agora aqui viste / outrosi [e] ena choça, | ali u migo seviste»

125.103 - «Foi-ss’ enton a Virgen Santa | aa donzela, ali u | dormia, e disso:»

127.49 - «E tantas vezes diss’ esto, | que adormeceu aly / u sse jazia tenduda | chorando ant’ o altar.»

O uso de «ali» com significação temporal também ocorre com relativa freqüência com a forma preposicionada, quando esta vai acompanhada da palavra «adeante»:

149.69 - «E dali adeante | en creenc’ e en vida / foi tal, que pois ll’ a alma | do corpo foi sayda, / dos angeos levada | foi suso na altura.»

193.62 - «Poi-la jostiça fezeron, | o mercador entregado / foi de quanto lle fillaran | quando foi no mar deitado; / e el dali adeante | sempre serviu de grado / a Virgen Santa Maria | sen faliment’ e sen erra.»

Como dêitico situacional, identificamos apenas uma ocorrência:

216.31 - «Ela yndo per carreyra, | viu eigreja cabo ssy / estar de Santa Maria | e disso: «Quer’ eu aly / folgar ora hũa peça, | e andaremos des y.»

Tipos de verbos que compatibilizam com as formas adverbiais

Ao fazermos o levantamento de quais verbos ocorriam com maior freqüência com os advérbios de lugar, percebemos que, nas situações de dêixis situacional o verbo vir costuma aparecer seguido dos advérbios «acá» e «aqui», o que está em conformidade com a sua semântica atual. O verbo trazer ocorre duas vezes com «aqui» enquanto que com «acá» o verbo que aparece é buscar. Ir ocorre uma vez com «alá» e sair duas vezes com «acá» e com «daqui».

Quando o advérbio está contraído com a preposição de, os verbos que mais ocorrem, ainda nos casos de dêixis situacional, são: tornar(-se) («dacá», «daqui»), ir e sair («daqui»).

No que diz respeito aos demais usos dêiticos dos advérbios (dêitico textual, anafórico ou catafórico, dêitico metatextual, dêitico espacial), destacamos a ocorrência dos verbos ir, jazer, vir, trazer com o advérbio «ali»; ir, levar, chegar com «alá».

Nas situações de dêixis textual, surpreende o número de ocorrências de «alá» com o verbo ir: 27, quase 50% do total de suas ocorrências, contra 3 de «ali».

O que também chama a atenção nesse levantamento é o duplo valor semântico de dois verbos: vir e sair. O primeiro apresenta algumas ocorrências, em situações de dêixis textual, com o advérbio «ali», em que se esperaria o verbo ir. Recorde-se, no entanto, que o verbo ir também ocorre com «ali». Vejamos algumas ocorrências:

37.41 - «Quantos aquest’ oyron, log ali vẽeron / e aa Virgen santa graças ende deron»

52.27 - «E quatr’ anos durou, segund’ oý, / que os monges ouveron pera si / assaz de leite; que cada noite ali / vĩian as cabras esto fazer»

164.46 - «Enton todas essas gentes | que ali foran vĩir / por veeren tal miragre, | loaran a que falir / nunca quer aos coitados | nen dos seus quer partir»

No primeiro exemplo, embora a expressão «log’ ali» conduza a uma interpretação relacionada com o aspecto temporal (‘lá, nesse tempo, então’, cf. METTMANN, p. 15, Glossário, s.v. ali), interpretamos que «log’» mantém seu valor temporal, equivalendo a ‘imediatamente’, e «ali» apresenta significação locativa anafórica, dizendo respeito ao lugar anteriormente referenciado («eigreja ant’ o altar», 1. 13).

O verbo venire apresentava em latim a significação de movimento em geral, sem designar uma direção específica. Nos contextos em que foram recolhidas essas formas, o valor de vir equivale ao valor do moderno ir.

No caso do verbo sair (‘passar (do interior para o exterior)’; ‘apartar-se (de dentro para fora)’), ele apresenta semântica do verbo vir, uma vez que ocorre com o advérbio «acá», significando ‘transportar-se de um lugar (para aquele em que estamos)’. As ocorrências estão numa situação de discurso direto e o verbo está conjugado no imperativo:

75.155 - «Sal acá, alma, | ca ja tenp[o] é e ora / que polo mal que feziste I sejas senpr’ atormentada.»

176.26 - «Vai, non temas, | ca per ren non te verá | null’ ome que mal te faça, | e leva-t’ e sal acá / ca yr-te podes en salvo | ata que chegues alá o compras ta romaria | e sejan-te perdõados / Os pecados que ás feito»

Ainda em situação de discurso direto, o verbo sair ocorre com o advérbio «aqui» contraído com a preposição de:

103.19 - «Ai, Virgen, que será / Se verei do Parayso, | o que ch’ eu muito pidi, / algun pouco de seu viço | ante que saya daqui, / e que sábia do que ben obra | que galardon averaá?»

176.21 - «Leva-te, ca ja es solto, | e daqui logo te sal.»

Note-se, no último exemplo, que o verbo sair, conjugado no imperativo, é pronominal.

Um outro aspecto a destacar no estudo dos advérbios diz respeito aos casos em que eles aparecem precedidos das palavras «ben» (ou «bẽes») e «logo» (ou «log’»). As duas formas adverbiais podem adquirir acepções de tempo ou de espaço, dependendo da interpretação do contexto em que surgem.

No que diz respeito a «logo», a freqüência é maior com formas de «ali» e «alá», principalmente em situações de dêixis textual. Os advérbios «acá» e «aqui» apresentam apenas um registro. No entanto, ocupando a posição depois do advérbio no sintagma, encontramos três ocorrências de «daqui logo» e uma de «alá logo».

As palavras «ben» e «bẽes», que nos contextos analisados se equivalem, quando precedem o advérbio locativo atenuam, modalizam a noção de distância expressa pelos advérbios «alá» e «ali» (e «aly»). Observem-se os exemplos a seguir:

8.33 - «Pois a candea fillada | ouv’ aquel monge des i / ao jograr da viola, | foy-a põer ben ali / u x’ ant’ estav’, e atou-a | mui de rrig’»

197.24 - «Ca tan forte o fillava | o demo, com’ aprendi, / cinc’ ou seis vezes no dia, | ou sete, per com’ oý; / mais hũa vez atan forte | o fillou, que ben aly / u estava afogou-o, | e morreu, u non ouv’ aI.»

229.8 - «E dest’ un mui gran miragre | avẽo, tempo á ja, / quando el Rei Don Alffonso | de Leon aduss’ acá / mouros por roubar Castela, | e chegaron ben alá / u ora é Vila-Sirga, | segundo que aprendi.»

No exemplo abaixo, o referido advérbio ocorre com o locativo «aqui», no discurso direto, na óbvia situação de dêixis situacional:

96.68 - «Amigos, se for / Vosso prazer, rogo-vos que roguedes / a Deus por mi e me ll’ acomendedes, / ca bẽes aqui vos me veeredes / ora jazer morto e sen coor.»

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o tratamento quantitativo realizado, observamos que quanto ao uso dêitico predomina a modalidade textual, principalmente a anáfora, o que já se esperava, tendo em vista a natureza escrita do corpus. No uso anafórico, os advérbios fazem referência a um termo antes referido, mas não necessariamente imediatamente expresso, com sentido locativo. Nessa função, predominam as formas do advérbio «ali», seguidas pelas formas de «alá». As formas de «aqui» e «acá» não se desvinculam da atualidade do discurso, estabelecendo as coordenadas dêiticas a partir da figura do narrador ou da personagem.

Nesse uso dêitico predominam os registros de «aqui», que ocorre com verbos como vir, ficar, dormir, aduzir, folgar etc, apresentando tanto sentido diretivo quanto de posição.

As ocorrências de «acá» são com os verbos vir, sair, buscar e aduzir. Em outros três casos é precedido do advérbio expletivo eis.

Os advérbios «alá» e «ali» apresentam, cada um, apenas uma ocorrência como dêitico situacional: o primeiro com o verbo ir, o segundo com o verbo folgar.

A única ocorrência de «aló» em uma situação de discurso direto, mas referido como anafórico e a não-ocorrência de «acó» nos fazem pensar na pouca funcionalidade deste par. Por outro lado, os escassos dados recolhidos não nos permitem falar numa variação com as formas «acá» e «alá».

Tendo em vista a baixa freqüência de «acá» e «alá», e considerando a sua permanência no sistema (como e ), seria interessante verificar esse dado em vários outros textos, pertencentes ao período estudado e a outros períodos lingüísticos, de maneira que se pudesse realizar uma estatística da sua freqüência e, a partir daí, estabelecer cronologias.

Quanto à seleção das formas nos seus usos dêitico-textuais, a análise dos contextos apontam «ali» («aly», «dali», «daly») em combinação com uma gama maior de verbos relativamente à «alá». Em alguns casos os verbos são coincidentes como ir, tornar(-se), estar, fillar etc. O advérbio «ali» parece, portanto, do ponto de vista sintático, menos restritivo que seu correspondente «alá», nas situações de dêixis textual. Um inconveniente observado no confronto entre «aqui» e «acá», «ali» e «alá» diz respeito ao fato de essas formas aparecerem com freqüência em final de verso, na posição de rima. Como dêitico situacional não foi possível confrontar os usos de «ali» e «alá» devido à escassez de registros. Postula-se modernamente o uso de «ali» para o que ainda está ao alcance da vista e de «lá» ao que extrapola o campo visual. Mais uma vez ressaltamos que esse aspecto seria melhor explorado em uma diversidade de textos, principalmente textos que apresentem riqueza de diálogos.

Além dos aspectos citados, referimos alguns usos temporais dos advérbios de lugar, fato que denuncia a impropriedade da designação tradicional. Seriam simplesmente "advérbios dêiticos"? Nesse caso, seria necessário ampliar o número de elementos do grupo considerado. No entanto, trata-se de uma discussão de cunho conceitual e terminológico, que foge aos objetivos deste trabalho. Enfim, a semântica que tradicionalmente é atribuída aos advérbios de lugar – de direção, de posição, de procedência – depende da combinação com os elementos do contexto, principalmente verbos e preposições.

Pensamos que são essas as principais considerações sobre o uso dos advérbios de lugar nas Cantigas de Santa Maria (séc. XIII), objetivo central do nosso trabalho. Nele levantamos questões importantes e interessantes que, como indicado anteriormente, para cada uma delas ser respondida, faz-se necessária a ampliação do corpus, seja na diversidade da tipologia textual, seja na inclusão de diferentes períodos lingüísticos.

NOTAS

(1) A significação de um advérbio comporta uma perífrase formada com o demonstrativo, ou seja, aqui, por exemplo, equivale a ‘neste lugar’, referindo-se a uma região próxima do falante. Jeronymo Soares Barbosa (1881), Grammatica Philosophica da lingua portugueza, Lisboa, (Academia Real das Sciencias), p. 235-236, no tratamento que faz dos advérbios, fala em «reducção da preposição com o seu complemento em uma só palavra». Assim, no exemplo dado, de acordo com esse Autor, o advérbio aqui contém em si a preposição em e o complemento este lugar, «como se dissessemos: n’este logar». Ainda mais adiante reitera: «Ja dissemos que o adverbio, propriamente dito, é uma palavra só, e essa indeclinavel, e destinada pelo uso para exprimir com mais brevidade uma preposição com seu complemento» (o destaque em "negrito" é nosso). Napoleão Mendes de Almeida (1962 14), Gramática metódica da língua portuguêsa. São Paulo (Saraiva), p. 276-277, notas (5) e (6), faz referência à relação dos advérbios com o sistema de pronomes pessoais, ao apontar que «Aqui, aí e ali são advérbios demonstrativos de lugar, relacionando-se aqui com a primeira pessoa (neste lugar), aí com a 2 a (nesse lugar) e ali com a 3 a (naquele lugar. Acrescenta: «Não devemos esquecer-nos de que aqui corresponde ao demonstrativo êste, aí a êsse, ali e a aquêle». Sobre cá, lá e acolá aponta, também em nota: «corresponde também à 1 a pessoa (...). e acolá correspondem ainda à 3 a pessoa e indicam maior afastamento do que ali (...)».

(2) A edição utilizada é a de Walter Mettmann, baseada no manuscrito E, conservado na Biblioteca do EscoriaI. De acordo com essa edição, as cantigas se encontram assim distribuídas: voI. I (1-100), voI. II (101-250) e voI. 3 (251-427), voI. IV (glossário). Utilizamos, no levantamento dos dados, apenas os dois primeiros volumes, totalizando, portanto, 250 cantigas. Cf. Afonso X Cantigas de Santa Maria. Editadas por Walter Mettmann, 4 volumes. Coimbra (Acta Universitatis Conimbrigensis), vol. I (1959), vol. II (1961), vol. III (1964), vol. IV (1972).

(3) Relacionamos apenas os advérbios estudados neste trabalho. No entanto, também havia no período arcaico da língua portuguesa os anafóricos hi (< hic) e ende (< inde).

(4) Para M. Said Ali (1964), Gramática histórica da língua portuguesa. 3ª edição melhorada e aumentada de Lexeologia e Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico. São Paulo (Melhoramentos), p. 184, §917, o aque precede, no português «antigo», as formas modernas e (também presente em aló), tem valor preposicional e foi adjungido às referidas formas em virtude do valor diretivo que estas apresentavam. No caso do moderno aí, o mesmo Autor atribui ao aa influência analógica de aqui e ali. No caso de ali, alá e aló, Coutinho dá os étimos ad illic, ad illac e ad illoc, respectivamente (Cf. I smael de Lima Coutinho (1958 4), Pontos de gramática histórica, Rio de Janeiro (Livraria Acadêmica), p. 290.

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