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The Hours de Stephen Daldry: a reescritura de Mrs. Dalloway no cinema Carlos Augusto Viana da Silva (PPGLL/Ufba)
Resumo: este artigo tem como objetivo investigar a reescritura de Mrs. Dalloway de Virginia Woolf na literatura e no cinema. Considerando alguns princípios teóricos, ligados à reescritura de textos literários, discutimos alguns pontos do romance The Hours de Michael Cunningham e do filme The Hours de Stephen Daldry. Palavras-chave: cinema, literatura, reescritura, tradução. Abstract:this article aims at investigating the rewriting of Virginia Woolf´s Mrs. Dalloway into the context of literature and cinema. Considering some theoretical principles concerning the rewriting of literary texts, we discuss some points of Michael Cunningham´s novel The Hours and Stephen Daldry´s film The Hours. Key-words: cinema, literature, rewriting, translation. INTRODUÇÃO A reescritura de textos literários para diferentes meios de linguagem representa, para os estudos de tradução, um campo frutífero de investigação, pois se trata de um fenômeno cada vez mais comum de aproximação de textos de diferentes estilos por meio de diversas mídias. A literatura reescrita através da própria literatura e do cinema, por exemplo, é uma constante atividade na mídia contemporânea, já que, com a profusão de gêneros textuais, a delimitação entre as fronteiras desses gêneros torna-se cada vez mais escassa. Se, por um lado, um texto literário, ao ser reescrito, “desconfigura-se” no seu valor canônico por tornar-se mais popular, por outro, atinge outros públicos e, por ser ampliado para novos contextos de linguagem, cria imagens do texto original. Por meio dessas imagens, esse texto original volta a ser lido. Neste artigo, levantamos algumas questões sobre o filme The Hours de Stephen Daldry, considerando o fato de que o filme, que já é uma tradução do romance The Hours do escritor norte-americano Michael Cunningham, é uma reescritura do romance Mrs. Dalloway, da escritora inglesa Virginia Woolf para o cinema. Partimos da idéia de que tanto o romance de Cunningham quanto o filme de Daldry criam imagens do romance de Woolf, o que, consequentemente, influencia a sua leitura pelos leitores/espectadores desses textos refratores. A REESCRITURA DO TEXTO LITERÁRIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Um conceito importante para a ampliação das novas abordagens de análise do texto traduzido é o de tradução como reescritura, apresentado por André Lefevere (1992). Segundo esse conceito, a tradução é uma reescritura de um texto original e as reescrituras, segundo o autor, afetam profundamente a interpenetração dos sistemas literários, não somente pelo fato de projetar a imagem de um escritor ou uma obra em outra literatura ou por fracassar em fazê-lo, mas também por introduzir novos instrumentos no corpo de uma poética, delineando mudanças. Como exemplo dessas mudanças, Lefevere (1992) aponta o caso da ode que, segundo o autor, tornou-se um acessório do sistema literário francês na época da Pléiade, por meio de traduções do latim. Uma outra situação parecida ocorreu na Itália um pouco antes em que a ode, também inspirada nas traduções do latim, tinham imediatamente assumido o lugar ocupado pela canzone na poética da Idade Média. Com esse posicionamento, Lefevere compactua com os pressupostos teóricos que dão prioridade ao pólo receptor do sistema de chegada. Assim como Toury (1995) e Even-Zohar (1990), Lefevere concebe a tradução como um sistema de interação com outros sistemas semióticos e como uma força de delineação de sua literatura. Segundo Else Vieira (1996, p. 138), além de compartilhar com essa idéia, Lefevere acrescenta novas direções, introduzindo novas dimensões, como a de “poder”. A autora complementa:
Ele enfatiza o papel dos agentes de continuidade cultural, do contexto receptor na transformação de textos e criação de imagens de autores e culturas estrangeiras, bem como o da tradução na criação de cânones literários. Ou seja, as traduções, produzidas dentro dos limites ideológicos e poetológicos da cultura receptora, têm também um efeito retroverso ao criarem imagens da cultura e cânones transculturais (1996, p. 138). Nesse sentido, a tradução assume um diálogo permanente com as estruturas sociais, adquire uma grande autonomia e poder de transformação nas relações de formação do cânone de uma determinada obra. Ao ser posta dentro dos princípios da poética de um certo sistema de chegada, a tradução estabelece diálogos entre fronteiras culturais e se difunde por meio de diferentes meios de linguagens e códigos. Lefevere (1982, p. 3), ao discutir a teoria literária e a literatura traduzida, apresenta algumas fases de abordagem na análise da tradução literária. Até o início do século vinte, os estudiosos estabeleciam, em suas análises, um tipo de estética estilística comparativa. A idéia central era observar quão belas, ou até sublimes, certas expressões ou grupos de frases eram no original e quanto dessa “beleza” perdia-se na tradução. Essa postura, segundo o autor, favorecia a supervalorização de uma língua em detrimento da outra, estabelecendo uma forma de imperialismo lingüístico. No final do século dezenove, os estudiosos acreditavam que a análise da tradução literária seria capaz de funcionar como base para afirmações sobre problemas da filosofia lingüística ou até da psicologia da língua. Segundo Lefevere (1882, p. 4), este tipo de análise liderava afirmações sobre a psicologia de diferentes autores, especialmente naqueles casos em que um autor “original” traduzia outro. Como resultado desse tipo de abordagem, o autor conclui: “[...] isto levou a produção de trabalhos do tipo “X” como tradutor de “Y”, nos quais algumas afirmações eram feitas sobre X ou Y, ou sobre ambos, mas raramente sobre a tradução (1982, p. 4).[1] O desenvolvimento da lingüística moderna mudou radicalmente o estudo de textos traduzidos. Os lingüistas interessados em tradução quase nunca analisavam traduções da literatura, porque eles as consideravam complexas demais. E, nessa perspectiva de análise que lida com elementos puramente lingüísticos, é um ponto de vista totalmente justificável. Nessas abordagens, tenta-se construir modelos, ou pelo menos, propor descrições do processo de tradução que fossem relevantes para o ensino da tradução. Um modelo construído com base na literatura traduzida teria que levar em conta todos os tipos de complexidades tais como conotação, alusões ou características específicas de certos gêneros e formas, elementos que não estariam presentes, ou pelo menos nesses termos, em textos menos complexos, ou seja, os não-literários. Com o surgimento da “machine translation”, ou tradução automática de textos, os esforços foram concentrados no estudo do processo de tradução, simplesmente porque um modelo operacional desse processo era absolutamente necessário para o funcionamento da máquina. Ao se excluir a literatura traduzida do estudo do processo de tradução, os lingüistas deram a impressão de que há mais ou menos dois processos diferentes de tradução: um válido para a “tradução” e outro para tradução da literatura. Essa distinção entre possíveis diferentes processos tradutórios levanta uma outra, que é a competência do tradutor nessas duas vertentes. Lefevere (1882, p. 5) aponta que todas as traduções literárias têm sido representadas como “arte”. Assim, pode-se até afirmar que certas traduções literárias feitas sob essa competência têm sido aceitas como literatura da cultura-alvo. Este argumento parece plausível se observamos o número de traduções de escritores estrangeiros em nosso país que nunca serão lidos, ou pelo menos lidos por poucos, no original. E, no entanto, são bastante lidos e até discutidos por meio da tradução e poucos ou quase nenhum desses leitores se preocupam pelo fato de tratar-se de uma tradução. Porém, essa tentativa de isolar a especificidade da tradução literária em relação ao processo de tradução como um todo vem, na visão de Lefevere, de um conceito de literatura ainda empregado, não mais por muitos teóricos da literatura, mas por muitos lingüistas, que é a idéia de linguagem “literária” em oposição à linguagem “comum” ou “coloquial”. Essa idéia é usada como um critério para traçar uma linha divisória entre os textos “literários” e “não-literários”, argumento esse, insustentável na literatura contemporânea. Alguns exemplos que reforçam essa assertiva de Lefevere é o caso da poesia moderna que usou uma linguagem não muito distante da comum; os romances modernos, especialmente os realistas, que usaram similar linguagem. Assim, no escopo da tradução não se pode traçar uma distinção radical entre textos literários e não-literários. Lefevere (1982, p. 5) sugere, ao invés disso, uma distinção gradual. Essa distinção de natureza gradual tem implicações para a competência específica dos tradutores literários. O autor sustenta: Será obviamente de um tipo diferente do esperado dos tradutores que lidam com a bioquímica, voltando ao exemplo anterior. Mas isto não necessariamente implica que a competência esperada do tradutor de literatura deva ser algo concebido como de “caráter superior”. O tradutor de textos históricos, por exemplo, também tem a sua competência que é diferente tanto do tradutor de literatura quanto do tradutor de textos de bioquímica. Porém este não é um argumento plausível para se começar a estabelecer distinções entre tradução “literária, bioquímica, histórica, nuclear, dietética”. A subdivisão do processo de tradução dessa forma somente leva à total atomização: todo tipo de tradução teria que ter o seu próprio processo específico.[2] Com esse argumento, a discussão de Lefevere converge para os princípios dos estudos descritivos de tradução, apresentados por Toury (1995) e a teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990). Ao propor essa distinção gradual dos textos literários e não–literários, ao invés da radicalização nessa distinção, o autor compactua com a idéia de que a tradução e o seu processo não podem mais estar ligados somente a questões lingüísticas. Os fatores extralingüísticos estão também envolvidos. A especificidade da competência do tradutor literário não se apresenta mais somente no nível do processo tradutório, mas também na forma como esse produto, ou seja, a tradução, funciona na língua alvo ou na cultura alvo. Assim, para Lefevere (1992, p. 6), o estudo da literatura traduzida não deve contribuir somente para os estudos de tradução, mas também para o estudo da literatura como um todo. Neste contexto, poderíamos inserir a tradução de textos literários por meio dos recursos midiáticos. As obras literárias que são traduzidas pela televisão ou pelo cinema também fazem parte do conjunto das normas vigentes de um determinado sistema literário, pois os textos reescritos são, em muitos casos, os principais responsáveis pelo estatuto de canonização de um corpus. Isso se dá pelo fato de que a própria poética de uma literatura já é uma reescritura, à medida que no momento da sua primeira formulação, ela reflete implícita ou explicitamente a prática dominante desse período. A partir das reescrituras, alguns textos saem da periferia do sistema para a parte central. Ao apresentarmos, aqui, os conceitos de reescritura de André Lefevere, gostaríamos de pontuar que não há nenhuma tentativa de negar o valor intrínseco da obra canonizada. Assim, como o autor, acreditamos que não é somente o valor intrínseco o responsável pelo estatuto canônico do texto. Esse estatuto só é adquirido após um longo processo de reescritura. Se observarmos o romance The Hours, de Michael Cunningham, por exemplo, podemos previamente estabelecer uma fronteira entre dois momentos distintos: antes e depois da sua tradução para o cinema. Apesar de ter sido um best seller desde a sua publicação em 1998, com a ampliação do público, ele tende a ser lido cada vez mais e discutido nos contextos acadêmicos. Diante desse fato, perguntamos se não seria este um primeiro passo para sua canonização. A sua condição de texto reescritor de um cânone da literatura inglesa moderna já o instaurou também enquanto objeto de reescrita no cinema. ANÁLISE PRELIMINAR DOS DADOS O romance Mrs. Dalloway (1925) de Virginia Woolf apresenta-se como um dos grandes momentos de consolidação de um estilo particular de escrita. Sua estrutura peculiar de lidar com universos individuais de seus personagens, ao invés de lidar com fatos externos, faz desse romance uma nova forma de experimentação, quebrando as estruturas comuns aos romances chamados tradicionais que estão mais presos a um enredo com começo, meio e fim. Em Mrs. Dalloway, ao contrário, não há essa preocupação em contar uma história, mas em apreender os processos mentais nos quais mostram seus personagens em momentos de profundo isolamento e presos em si mesmos como nos seguintes trechos: Clarissa Dalloway que prepara mais uma festa e repensa sua vida; Septimus Smith, um neurótico da guerra, que percebe a vida como algo intolerável; e Peter Walsh que volta da Índia e revê Clarissa, sua grande amada que o rejeitou para casar-se com Richard, que representa um futuro político que lhe daria mais segurança. Woolf usa técnicas específicas de escrita na construção do romance, tais como o fluxo da consciência e, por isso, torna-se um construto narrativo complexo, pois à medida que a descrição dos processos mentais são cênicas e abstraídas dos referenciais externos, o leitor fica na posição de espectador, tentando apreender essas realidades internas. Essas realidades são constituídas através de reminiscências, conjecturas mentais, impressões, digressões. Por isso, o tempo no relato das memórias é sempre ressaltado como elemento fundamental para o desenvolvimento narrativo. Como já discutimos em trabalhos anteriores (SILVA, 2002, p. 55), em princípio, poderíamos até afirmar que, apesar do caráter inovador do romance, a unidade de tempo em Mrs. Dalloway estaria relacionada à narrativa tradicional, já que no romance tudo se passa em algumas horas de um dia do mês de junho. E nessas poucas horas, o leitor mergulha no universo de Clarissa Dalloway e a idéia de tempo é sempre enfatizada. No entanto, embora se vislumbre essa aparente unidade temporal, ela está diretamente ligada à natureza subjetiva do romance, pois a narrativa desenvolve no nível das operações inconscientes dos personagens. Essa unidade temporal, então, não faria parte da realidade externa dos personagens. Esse universo complexo de Mrs. Dalloway foi reescrito tanto na literatura quanto no cinema. Em 1998, Michael Cunningham publicou o romance The Hours por meio de uma narrativa de tessitura também particular que colocou no livro, além desse universo literário, a própria Virginia Woolf como personagem. O romance apresenta uma trama paralela de um dia na vida de três mulheres. A primeira personagem é Virginia, quando está escrevendo Mrs. Dalloway em Richmond, subúrbio de Londres em 1923. A segunda é Laura Brown, uma dona de casa, num subúrbio de Los Angeles em 1949. A terceira personagem é Clarissa, uma editora de cinqüenta anos bem sucedida em Nova York, no final do século vinte, bem casada com uma produtora de TV e é a melhor amiga de Richard, um poeta gay e aidético terminal que irá receber um prêmio literário. Clarissa prepara a festa de comemoração pela conquista do prêmio do seu amigo. Há, portanto, três histórias diferentes, em épocas diferentes, mas ligadas por um único ponto: o romance Mrs. Dalloway. O filme The Hours, de Stephen Daldry (2002), traduzido do romance de Cunningham, também entrelaça essas três histórias paralelas e reproduz para as telas imagens do romance Mrs. Dalloway para o espectador. Trata-se, portanto, da tradução da tradução do romance de Woolf para o meio cinematográfico: Cunningham reescreveu o romance para o contexto literário e Daldry para o contexto cinematográfico. Nessa seção, levantaremos questões sobre como se deram alguns aspectos dessas reescrituras e a sua influência no processo de criação de imagem do romance nesses outros contextos. Tanto o romance quanto o filme começam com uma idéia emblemática do suicídio de Woolf. Essa idéia funciona, na nossa visão, como forma delineadora dos destinos das três personagens. Elas, assim como Clarissa Dalloway, apresentam, de alguma maneira, um questionamento sobre a aparente “normalidade” das situações simples do cotidiano, quando, na verdade, existem questões existenciais sérias que subjazem a essa “normalidade”. No romance, logo no início do prólogo, temos a descrição do ato: She hurries from the house, wearing a coat too heavy for the weather. It is 1941. Another war was begun. She has left a note for Leonard, and another for Vanessa. She walks purposefully toward the river, certain of what she´ll do, but even now she is almost distracted by the sight of the downs, the church, and a scattering of sheep, incandescent, tinged with a faint hint of sulfur, grazing under a darkening sky (CUNNINGHAM, 1998, p. 3).[3] No filme, a primeira cena também se desenvolve por meio do ato do suicídio de Woolf. A seqüência alterna-se entre a saída da personagem de sua casa, sua caminhada até o rio e a escrita de sua carta que ela deixou para Leonard. No primeiro plano temos “Sussex, England 1941”[4] no momento em que Virginia sai de casa. Após a cena do afogamento, a narrativa se transfere para Los Angeles, em 1923 na casa de Laura Brown. Novamente, a narrativa é transferida para a cidade de Richarmond na Inglaterra em 1923, ano em que o romance Mrs. Dalloway foi escrito e em que a história da personagem Virginia é contada. É nesse primeiro momento que o espectador sabe, por meio de um pequeno diálogo entre Leonard e o médico, que Virginia enfrenta uma conturbação mental. Há uma outra transferência espacial da narrativa para a cidade de Nova York, no ano de 2001. Aqui, a terceira personagem, Clarissa, é introduzida e o espaço do desenvolvimento narrativo do filme fica demarcado para o espectador. Na cena seguinte, as três personagens são mostradas sendo acordadas por despertadores. E, ao acordarem, as imagens de flores se fazem presentes nos três espaços. Essas imagens são indicações metafóricas que fazem referências diretas ao romance de Woolf: os despertadores nos remetem à idéia de tempo, constantemente ressaltada em Mrs. Dalloway por meio da presença do Big Ben; e as flores nos remetem ao próprio desenvolvimento temático da obra, ou seja, a preparação da festa. Podemos, então, partir do próprio título do romance de Cunningham As Horas e estabelecer a primeira relação com o romance de Woolf, já que este teria sido o primeiro título concebido pela autora. Esses primeiros momentos representam um prólogo do texto cinematográfico, no qual há um delineamento das histórias e dos espaços narrativos. A partir de então, estabelece-se um entrecruzamento de fatos e atitudes por parte dos personagens que fundam o desenvolvimento da narrativa. A seqüência se apresenta da seguinte maneira: após acordar, Virginia conversa com o marido. Ele sugere que se alimente e ela diz: Virginia: Leonard, I believe I may have a first sentence. Leonard: Work, then.[5] Por meio dessa fala de Virginia, a sugestão do tecido da narrativa configura-se, pois o processo de criação é anunciado e passará a ser recorrente durante toda a narrativa. A personagem vai para o quarto para começar a escrever Mrs. Dalloway. Um corte transfere a narrativa para Laura Brown lendo o livro e, em seguida, para Clarissa pensando sobre a organização da festa. À medida que o delineamento de cada história vai sendo feito, o paralelismo entre essas histórias e a relação com o universo literário do romance acentua-se cada vez mais. Da imagem de Clarissa, passamos novamente para a imagem de Virginia, falando a primeira sentença de Mrs. Dalloway, Laura lendo essa primeira sentença do livro e Clarissa anunciando que irá comprar flores: Virginia: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. Laura: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. Clarissa: Sally, I think I´ll buy the flowers myself.[6] A partir desse momento, as três personagens estão envolvidas em seus projetos individuais: uma escritora que pensa sobre o processo de criação de seu livro, uma dona de casa que lê o romance e busca nele abstrair elementos de recusa de uma vida “normal” e uma editora bem sucedida que prepara uma festa. Observamos que, tanto a narrativa de Cunningham quanto a de Daldry, parece começar pelo fim: a morte de uma personagem. No entanto, no romance, o leitor é surpreendido, logo em seguida, com a abertura de um capítulo intitulado Mrs. Dalloway e é surpreendido ainda mais quando os primeiros parágrafos desse capítulo remetem imediatamente aos primeiros parágrafos do romance de Woolf. Vejamos: There are still flowers to buy. Clarissa feigns exasperation (though she loves doing errands like this), leaves Sally cleaning the bathroom, and runs out, promising to be back in half an hour. It is New York City. It is the end of the twentieth century. The vestibule door opens onto a June morning so fine and scrubbed Clarissa pauses at the threshold as she would at the edge of a pool, watching the turquoise water lapping at the tiles, the liquid nets of sun wavering in the blue depths (1998, p. 9).[7] E, em Mrs. Dalloway, temos: Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her. The doors would be taken off their hinges; Rumpelmayers were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach. What a lark! What a plunge! For so it had always seemed to her when, with a little squeak of the hinges, which she could hear now, she had burst open the French windows and plunged at Burton into the open air (WOOLF, 1976, p. 7).[8] No filme, como vimos acima, após a cena do suicídio, vemos o delineamento das histórias paralelas das três personagens. No romance, como vimos também acima, apresenta-se a descrição do suicídio. Entretanto, no romance, a descrição do suicídio acontece somente no início da narrativa e termina com uma simples conversa entre Clarissa e Laura: “ And here she is, herself, Clarissa, not Mrs. Dalloway anymore; there is no one now to call her that. Here she is with another hour before her. ’Come in, Mrs. Brown,’ she says. ‘Everything´s ready’” (1998, p. 226).[9] Assim como em Mrs. Dalloway, o final do romance The Hours é aparentemente simples por apresentar uma espécie de reconciliação dos personagens consigo mesmo. O filme apresenta também essa reconciliação, mas, por outro lado, toma uma outra posição em relação ao romance. A cena do suicídio é retomada e a reconciliação aqui é entendida pela escolha de Virginia por não continuar viva. Em voice-over, o pensamento da personagem é mostrado enquanto a cena da entrada dela no rio se repete: Virginia: Dear, Leonard. To look life in the face. Always to look life in the face. And to know it what it is. At last to know it, to love it for what it is. And then... To put it away. Leonard... Always the years between us. Always the years... Always... The love. Always... The hours.[10] Vemos que essa estratégia de tradução de Daldry converge para o final das narrativas de Woolf e de Cunningham pelo aspecto da reconciliação, já mencionado, e cria um impacto visual para o espectador, já que agora ele já tem consciência do construto narrativo. Também converge para aquelas narrativas à medida que propõe um final aberto, quanto ao destino das personagens, desencadeando reflexões. Por meio dessa rápida análise de alguns fragmentos do romance de Cunningham e das primeiras cenas do texto cinematográfico de Daldry, podemos perceber importantes ecos da narrativa de Woolf para o leitor/especatador. Primeiro, a reescrita do incidente real da vida da escritora, o seu suicídio, e, em seguida, a constituição das personagens que, de alguma forma, estão ligadas ao romance Mrs. Dalloway. Para Cunningham, em sua entrevista à revista Cult em 2002, a sua tentativa nesse projeto narrativo foi a de trazer Woolf para a Nova York contemporânea. E uma das suas grandes ambições era tentar captar o mundo contemporâneo, ou seja, o mundo dele, com algo aproximado à força e a intensidade que Woolf trouxe para a Londres de Clarissa Dalloway. Para justificar o seu ponto de vista o autor assim se posiciona: Na minha opinião, uma das principais qualidades da literatura é a habilidade que ela tem de criar uma névoa sobre a linha que liga o passado, o presente e o futuro. Ou melhor, o passado e o futuro, já que o “presente” termina muito antes do tempo que leva para digitar a palavra (CUNNINGHAM apud ROCHA, 2002, p. 48). Essa posição do autor parece explicar muitos aspectos da construção do seu projeto de reescritura de Mrs. Dalloway, pois, além da sua narrativa entrecruzar os tempos, cria uma “névoa” entre a ficção e a realidade, já que retrata como um de seus personagens ficcionais alguém que viveu de fato. Com base nessa rápida discussão sobre as reescrituras (que chamamos também de tradução) de Mrs. Dalloway nos contextos da literatura e do cinema, passamos, agora, a levantar alguns pontos relacionados ao funcionamento dessas traduções nesses contextos. Poderíamos vislumbrar, a partir desses exemplos, desdobramentos importantes quanto ao efeito provocado por essas traduções na recepção do universo literário de Woolf nos dois novos contextos. Para ilustrar melhor esses desdobramentos, apresentamos três prováveis públicos receptores das traduções: o público leitor da obra original; os que não leram a obra original, mas já leram algumas reescrituras por meio de resenhas críticas, resumos ou coletâneas literárias, ou até mesmo pela tradução, e têm uma idéia da posição do texto de Woolf em relação ao cânone moderno; e, em menor quantidade, mas que não pode ser deixado de levar em conta são aqueles que não conhecem nada a respeito da autora. No primeiro caso, encontram-se os leitores mais especializados, capazes de opinarem e até julgarem a qualidade da tradução da obra. No segundo, estão aqueles que já têm uma idéia do que seja o universo literário de Woolf e vêem no filme um objeto de melhor visualização desse universo. E, no terceiro caso, estariam aqueles que estão sendo submetidos a esse universo por meio dessas reescrituras pela primeira vez. Mas, vale ressaltar que, nos três casos, esses leitores/espectadores são receptores de imagens do original, mesmo que as reações sejam distintas. Ao discutir sobre o público leitor do romance The Hours, (CUNNINGHAM apud DEGENHART, 2003, p. 4) afirma que houve um aumento considerável desse público, em relação aos seus livros anteriores, mas, ao escrever o livro, não teve a intenção de aumentar esse público. Sua intenção era a de escrever um livro de caráter mais “artístico”. Apesar da perspectiva peculiar dada a esse romance pelo autor, não se pode negar o fato de que o prestígio da obra de partida teve influência nessa ampliação de público. Com a tradução para o cinema, esse público certamente se ampliou ainda mais. E Cunningham admite isso na mesma entrevista. Ao ser questionado quanto ao nível de conhecimento do público, em relação ao original, para um bom entendimento do seu texto, ele afirma que é importante tanto para o romance quanto para o filme que as narrativas sejam completamente acessíveis para as pessoas que não sabem nada sobre Virginia Woolf, ou até mesmo para aquelas que não tenham nem a idéia se ela é uma pessoa real ou fictícia. Pois, segundo Cunningham, não é necessário saber nada sobre Woolf para entender a sua compulsão em criar algo tão belo: “que é uma das coisas que eu acho que torna a espécie humana mais interessante e digna de perpetuação” (2003, p. 2).[11] Mas uma questão importante ele sinaliza: “Eu adoraria se o feito do filme provocasse bastante interesse em Virginia Woolf de forma que as pessoas fossem lê-la. Mrs. Dalloway já está chegando na lista dos mais vendidos. Não é impressionante isso?” (CUNNINGHAM apud DEGENHART, 2003, p. 2).[12] Por meio dessas falas de Cunningham, percebemos que ele, na posição de autor, pressupôs leitores imaginários para o seu texto. Seria um texto de fácil acesso, mas reescrevendo, ao mesmo tempo, uma obra literária considerada de difícil leitura. E, ao ser transmutada para o cinema, o autor reconhece o alcance que esse texto terá no novo contexto. Parece claro, portanto, que o autor tem noção da relevância da reescritura na criação de imagens de Virginia Woolf para esses públicos distintos, já que a “grandeza” da obra, na concepção dele, está além do conhecimento que se tem da autora. Uma outra noção implícita que salta aos olhos no posicionamento de Cunningham é quanto ao papel das resscrituras dentro dos sistemas literários. É a idéia de que através dessas reescrituras, o original volta a ser lido. CONCLUSÃO O estudo das reescrituras de obras literárias para diferentes contextos de linguagem se configura como elemento importante no cenário atual dos estudos de tradução. Para o desenvolvimento de estudos nessa perspectiva, é necessário um diálogo entre os campos para que possamos entender questões relacionadas ao funcionamento dessas reescrituras. Neste trabalho, por exemplo, apresentamos uma breve análise da reescritura de Mrs. Dalloway para a literatura e o cinema. Utilizamos o romance The Hours de Michael Cunningham e o filme The Hours de Stephen Daldry como corpo para a análise por considerarmos esses textos tradutores do universo literário de Virginia Woolf para os contextos da literatura e do cinema. Chegamos à conclusão de que, por meio do processo de construção narrativa dos textos tradutores e da presença constante de elementos referenciais de Mrs. Dalloway, mesmo que implicitamente, criam-se constantemente imagens do texto original para o leitor/espectador e essas imagens favorecem à volta de sua leitura. Mesmo que tenhamos confirmado a nossa hipótese inicial através dessa breve análise, faz-se necessário o seu aprofundamento para um melhor entendimento das estratégias de criação dessas imagens nos textos refratores e o seu funcionamento dentro dos novos contextos. NOTAS 1- As traduções sem referências são do autor deste artigo. This led to the production of a number of monographs of the “X” as translator fo “Y” type, in which some statement was often made about X ou Y, or both, but rarely about translation. 2 - It will obviously be of a different kind than that expected of translators of texts dealing with biochemistry, to go back to a previous example. But this does not necessarily imply that the competence expected of the translator of literature should somehow be thought of as being “of a higher order”. The translator of historical texts, e. g., also has his or her competence, which is different from both that of the translator of literature and the translator of texts on biochemistry. Yet this is no valid reason to start establishing distinctions between “literary, biochemical, historical, nuclear, dietetic” translating. Subdividing the translation process in this way only leads to total atomization: every kind of translation would have to have its own specific process. 3 - Todas as traduções referentes ao romance The Hours são de Beth Vieira; a tradução do romance Mrs. Dalloway é de Mário Quintana e as traduções do filme são das legendas em vídeo. Ela sai apressada de casa, vestida com um casaco pesado demais para a época do ano. Estamos em 1941. Há uma outra guerra em andamento. Deixou um bilhete para Leonard, outro para Vanessa. Caminha decidida em direção ao rio, certa daquilo que fará, mas mesmo assim um tanto distraída, observado as colinas, a igreja e um grupo de carneiros, incandescentes, matizados por um vago tom cor de enxofre, que pastam sob o céu enfarruscado (CUNNINGHAM,1999, p. 9). 4 - Sussex, Inglaterra 1941 5 - Virginia: Leonard, creio que tenho a primeira sentença. Leonard: Trabalhe, então. 6 - Virginia: Sra. Dalloway diz... “vou comprar as flores... eu mesma.” Laura: Sra. Dalloway diz... “vou comprar as flores... eu mesma.” Clarissa: Sally, eu mesma vou Comprar as flores. 7 - Ainda é preciso comprar flores. Clarissa finge-se irritada (embora adore tarefas como essa), deixa Sally limpando o banheiro e sai correndo, com a promessa de voltar em meia hora. Estamos em Nova York. No final do século XX. A porta do vestíbulo abre-se para uma manhã de junho tão clara e pura que Clarissa pára na soleira, como teria parado na beira de uma piscina para ver a água turquesa roçando nos ladrilhos, as redes líquidas de sol tremulando nas funduras azuis (1999, p. 15). 8 - Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flôres. Quanto a Lucy, já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia. Que frêmito! Que mergulho! Pois sempre assim lhe parecera quando com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton (WOOLF,s/d, p. 15). 9 - E eis aqui a própria Clarissa, não mais a Mrs. Dalloway; não há há mais ninguém para chamá-la assim. Aqui está ela, com mais uma hora pela frente. 10 - “Venha, Laura”, ela diz. “Está tudo pronto.” (1999, p. 176). 11 - Virginia: Querido, Leonard... É preciso encarar a vida... Encarar a vida sempre. E saber... Como ela realmente é. Pelo menos... Conhecer a vida. Para amá-la conforme Ela se apresenta para você. E depois... Você a descarta. Leonard... Sempre haverá os anos... Sempre... O amor... Sempre... As horas. 12 - I would love it if the point of the I movie sparked enough interest in Virginia Woolf so that people went on to read her. Mrs. Dalloway is turning up in best seller lists already. Isn´t that wild? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNNINGHAM, M. The hours . New York: Farrar, Straus and Giroux, 1998. CUNNINGHAM, M. As horas . Tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. DEGENHART, C. Michael Cunningham author interview [on line]. Disponível em: < http:/entertainment.lycos.com/thehours_int.asp >. Acesso em: 28 set. 2003. LEFEVERE, A. Literary theory and translated literature. Dispositio , v. 7, n.19-20 p.3-22. Michigan: Department of Romance Languages, University of Michigan, 1982. LEFEVERE, A. Translation, rewriting & the manipulation of literary fame. London and New York: Routledge, 1992. ROCHA, F. Cunningham, um escritor sem medo de Virginia Woolf. Cult São Paulo, p. 47-9, 2002. SILVA. C. A. V. Transmutando Virginia Woolf: uma análise da tradução cinematográfica de Mrs. Dalloway. 2002. 111 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. VIEIRA, E. R. P. Contextualizando a tradução: introdução. In: VIEIRA, E. R. P. (org.). Teorizando e contextualizando a tradução . Belo Horizonte: Programa de pós-graduação em estudos lingüísticos da FALE (UFMG), 1996, p. 105-63. WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. London: Grafton Books, 1976. WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Tradução de Mário Quintana. [s.l]: Bruguera, [s.d]. |
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