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Sobre a historiografia no período arcaico da língua portuguesa

Eliéte Oliveira (PPGLL/Ufba)

 

Resumo: este trabalho objetiva fazer uma descrição historiográfica, comparando a História de Portugal de Fernão de Oliveira com o Livro de Linhagens do conde D. Pedro de Barcelos e a Crónica Geral de Espanhade 1344 a fim de perceber quais as influências destas naquela obra oliveiriana

Palavras-chave: Historiografia, Portugal, Fernão de Oliveira.

Resume: ce travail se propose à faire une description historiografique, en confrontant l’ História de Portugal de Fernão de Oliveira avec le Livro de Linhagens du conte D. Pedro de Barcelos et la Crónica Geral de Espanha de 1344, a fin de comprendere ses influences dans l’ouvre “oliveiriana”.

A historiografia da Península Ibérica tem em seus capítulos duas importantes obras, tanto do ponto de vista lingüístico como literário, que são a Crónica Geral de Espanha de 1344 e o Livro de Linhagens, escrito na mesma época pelo conde D. Pedro de Barcelos. Além de informações referentes ao uso da língua no português arcaico, esses registros oferecem fontes genealógicas dos nobres daquele período e fatos históricos recheados de fantasias, realidades, personagens lendários e episódios sobrenaturais. Por terem se tornado a base para os trabalhos historiográficos feitos posteriormente sobre os povos ibéricos do período medieval, esses documentos figuram atualmente como destaques históricos.

A Crónica Geral de Espanha, conhecida como Crónica Geral ou Primeira Crónica Geral, foi escrita por D. Afonso X, o Sábio — rei de Leão e Castela —, com o intuito de narrar os bons feitos dos homens nobres desde o tempo de Noé até a morte de seu pai, D. Fernando III. A fim de completar a narração dessa obra, seu bisneto, Afonso XI, escreveu a segunda parte da crônica, que compreende os reinados de Afonso X, de D. Sancho IV e de D. Fernando IV. Escrita originalmente em castelhano, a tradução da Crónica para o português foi encomendada pelo rei D. Dinis, que continuou a parte que se refere aos reis de Portugal.

O Livro de Linhagens do conde D. Pedro de Barcelos — filho bastardo do rei D. Dinis — foi escrito, provavelmente, entre 1340 e 1344. No entanto, o texto conhecido atualmente parece ser resultado de refundições posteriores, nomeadamente nos anos de 1360-1365 e 1380-1383, de acordo com Mattoso (1999, p. 575).

O presente trabalho busca estabelecer um confronto dessas duas obras com a História de Portugal, escrita por Fernão de Oliveira por volta de 1580, com vistas a proceder a um melhor entendimento sobre as práticas de descrição historiográfica dos primeiros momentos do período arcaico da língua portuguesa, assim como de sua manifestação nos anos de quinhentos em Portugal. Para isso, utilizou-se a edição crítica do Livro de Linhagens do conde D. Pedro, editada por José Mattoso em 1980 e a edição crítica do texto português da Crónica Geral de Espanha, feita por Luís Filipe Lindley Cintra — resultado de um longo trabalho iniciado em 1951 e só finalizado em 1990, cuja publicação consta de quatro volumes, em que o primeiro se refere a um estudo minucioso da obra — e as cópias do manuscrito da obra de Fernão de Oliveira, que serão editadas em breve como tema da dissertação de mestrado pela autora desta pesquisa .

O texto final da Crónica Geral de Espanha de 1344, por se tratar de um documento extremamente complexo devido às várias refundições, derivações e ampliações feitas a partir da Primeira Crónica Geral de Afonso X, foi reconstituído por Cintra, que, baseado em vários manuscritos portugueses e castelhanos, propôs o seguinte esquema:

Primeira Crónica Geral

(rascunho até Afonso VI)

 

Abreviação

(até Afonso VI)

Variante ampliada e continuada (rascunho)

Primeira Crónica Geral continuada até Fernando III

 

Crónica de Vinte Reis

(até a morte de Fernando II)

Texto definitivo

 

 

Crónica de 1344

(1ª redação)

Crónica de Vinte Reis (depois da morte de Fernando II)

Crónica de 1344

2ª redação

(Adaptado de CINTRA, 1951-1990, p. CCCX)

Com isso, Cintra sugere que do rascunho da Primeira Crónica Geral, escrita até o reinado de Afonso VI, surgiram três redações: a primeira, abreviada em relação ao texto original; a segunda, corrigindo a parte que vai de Fernando I a Afonso VI, a fim de incluir alguns fatos não abordados no texto primitivo e continuar a redação para além da morte de Afonso VI; a terceira é a continuação da Crónica, baseada nos materiais já reunidos e ligados ao rascunho original. Depois disso, um novo cronista, servindo-se da Abreviação, do rascunho da Variante Ampliada, além de outras fontes, refundiu o texto, não ultrapassando o reinado de Fernando II. A continuação desse trabalho, em data posterior, deu origem ao que é conhecido atualmente como Crónica de Vinte Reis. Cintra (1951-1990, p. CCCXIV) conclui, portanto, que “a Crónica Geral de 1344 é uma refundição da Variante Ampliada, feita com auxílio da Crónica de Vinte Reis e de outras fontes”.

Mas, deixando um pouco de lado essa descrição historiográfica, faz-se necessário penetrar um pouco no fascínio das histórias que os homens fizeram e escreveram, geralmente incorporando ao seu estilo um pouco de fantasia e realidade; textos históricos e literários, como a história do Rei Lear; a presença do maravilhoso, como aparições de santos; e episódios de lendas como a de D. Rodrigo e da Dama do Pé de Cabra.

Assim, os escritos contam que, após o dilúvio que matou todas as pessoas, deixando sobrevivente apenas a família de Noé, a terra foi dividia em três partes: Ásia, que foi herdada pelo filho mais velho de Sen; África, que ficou para os filhos de Cam; e Europa, parte que ficou para os filhos de Jafeth e os outros filhos de Sen. Todavia, as outras linhagens, insatisfeitas com essa divisão, iniciaram disputas pelas terras “por a qual razom ouve antr’eles muytas e grandes contendas e lides e mortes.” (CINTRA, 1951, p. 10).

Os sete filhos de Jafeth — Gomer, Magoch, Maday, Yvam, Tubal, Mereth, e Tyraz — povoaram toda a parte ocidental da Europa e daí surgiram vários outros povos que disputaram esse território. Da linhagem de Gomer vieram os povos que conquistaram a terra onde denominaram Lácia, por isso, chamados de povos latinos; da linhagem de Magoch descenderam os povos denominados Godos, Vândalos, Suevos e Alanos; e da linhagem de Tubal surgiram os povos Espanhóis. Estes últimos chegaram “aas partes d’oucidente, aos muy grandes montes que son chamados Perineos, os quaaes departe â Espanha, a mayor, da outra parte” e fizeram nesse local a sua povoação.

Algum tempo depois Amilcar, imperador de Cartago — parte situada ao norte da África, o que hoje compreende à Tunísia — deu início à expansão territorial, invadindo a região da Península Ibérica no mesmo período em que os habitantes de Roma, região do Lácio, queriam dominar esse mesmo espaço. Nessa disputa, ocorre a morte de Amilcar, fato que ajuda a provocar a rivalidade entre romanos e cartagineses. As guerras que sucedem depois disso são narradas na Crónica nos capítulos 51 ao 62. Vale ressaltar que essas guerras são conhecidas atualmente como guerras púnicas e ocorreram no séc. III a. C.

Com a derrota dos cartagineses, a Península Ibérica ficou sob o domínio dos romanos por um longo tempo até a chegada dos povos Godos no séc. V d. C. Nesse período já havia aí a presença dos povos Alanos, Vândalos e Suevos. Os Godos, no entanto, ao expulsá-los, conquistam toda a região ibérica e, então, reinam nesse território 36 reis dessa linhagem até a invasão dos mouros, que ocorre no reinado de D. Rodrigo.

Os primeiros reis mouros dentro do território ibérico foram Abaly, Aboazabar, Amraamolim, Taric e Eunter. Inicia-se, então, a guerra da Reconquista, quando os reis católicos que haviam se refugiado para o norte da península retomam o território aos povos muçulmanos.

Ainda em tempos dos mouros, reinou na Península Ibérica outro rei da linhagem dos Godos — D. Paio —, que fora eleito pelos cristãos e, porque vivera nas montanhas com os que escaparam da guerra em que desapareceu o rei D. Rodrigo, chamaram-lhe D. Paio, o Montesinho. Depois de reinar por dezoito anos, D. Paio passou o trono a seu filho, Fafilla, que não reinou mais que dois anos porque foi morto por um urso.

Após a morte de D. Fafilla, reinou D. Afonso, o Católico — terceiro rei de Leão e primeiro deste nome —, que entrou em Portugal e tomou aos mouros as cidades de Porto, Braga, Viseu e Beja. D. Afonso — casado com D. Ermesenda, filha de D. Paio — teve um filho chamado D. Fruella, que foi rei por quatorze anos e morreu na era de 807, segundo Afonso X.

Depois disso, neste reino de Leão, houve muitos reis, como D. Aurélio VI, D. Afonso (o Casto), D. Ramiro II — o que tirou os olhos do irmão e de cuja linhagem saiu a boa geração de fidalgos de Castela e Portugal, como mostra o título XXI do Livro de Linhagens. Neste capítulo consta que o primeiro rei de Castela foi D. Sancho, o Maior, que teve três filhos: D. Fernando, D. Garcia e D. Reimom.

D. Fernando, o Magno, foi senhor de Leão, Castela, Navarra e Portugal e, casado com D. Sancha, gerou três filhos — D. Sancho, D. Garcia e D. Afonso — entre os quais dividiu suas terras, deixando os reinos de Castela e Navarra para D. Sancho, o reino de Galiza e o que havia do condado de Portugal para D. Garcia, e o reino de Leão para D. Afonso.

No entanto, após a morte de D. Fernando em 1065, D. Sancho fez muitas guerras com os irmãos no intuito de tomar seus territórios. Assim, esteve D. Garcia como rei da Galícia e conde de Portugal por apenas seis anos — de 1065 a 1071. D. Afonso, o sexto deste nome e rei de Leão, Castela e Portugal, gerou duas filhas: Tareja e Urraca. Esta recebeu o reino de Leão e Castela por seu casamento com Raimundo em 1091 e aquela, filha bastarda do rei, recebeu o reino de Portugal por ter casado com Henrique de Borgonha.

Destarte, em meio a partilhas hereditárias, traições, discórdias internas e guerras contra os mouros em nome da fé cristã, dá-se início a formação do reino português quando o filho de Henrique de Borgonha, Afonso Henriques, é aclamado rei dessa nação no episódio mitificado da lenda de Ourique que a historiografia se encarregou de descrever.

Cintra, em sua edição aqui mencionada, afirma que a Crónica de 1344 e o Livro de Linhagens do conde D. Pedro de Barcelos estão intimamente relacionados. Contemporâneas, essas obras utilizaram como fonte de pesquisa o Liber Regum, um livro escrito no início do séc. XIII em Navarra, provavelmente por um monge do mosteiro de Fitero.

Dessa forma, o Livro de Linhagens e a Crónica Geral de Espanha, seguindo uma característica da historiografia antiga, iniciam o texto fazendo um relato das linhagens universalmente conhecidas, para inserir nestas o quadro genealógico dos nobres da Península Ibérica. Esse comportamento começou a mudar a partir do séc. XV, quando na própria refundição da Crónica Geral foi suprimido “todo o inicial esquema linhagístico de história universal, trocando-o por um prólogo e por uma narrativa dos primeiros povoadores da península”, como afirma L. Krus (1993, p. 190).

Com efeito, nas crônicas escritas por Fernão Lopes a partir de 1434, quando é oficialmente encarregado de escrever as histórias dos reis de Portugal, o autor não inclui em suas obras toda essa descrição das linhagens universais, muito menos dos primeiros povoadores ibéricos. O mesmo se observa nos documentos deixados pelo seu sucessor, Gomes Eanes de Zurara.

No entanto, vale salientar que, dentro da historiografia portuguesa, Fernão de Oliveira, ao escrever a História de Portugal por volta de 1580, retoma o comportamento de descrever os primeiros povoadores da Península Ibérica, partindo da linhagem do patriarca bíblico Tubal, filho de Noé. Seria uma influência da Crónica Geral de Espanha e de muitas outras fontes da historiografia antiga ou há aí uma necessidade de Oliveira enquadrar Portugal na genealogia primogênita perante as outras nações?

Vale lembrar que a História de Portugal foi escrita por Fernão de Oliveira após a derrota de Alcácer-Quibir, quando Portugal é entregue ao reino espanhol sob o domínio de Filipe II em 1581 — portanto, Oliveira, ao que parece, precisava construir a imagem de uma nação portuguesa superior a qualquer outra.

Essa obra, composta de três livros e três capítulos dedicados à história de Dom Sancho I, filho de Afonso Henriques, está dividida da seguinte maneira:

1º livro

  • Capítulo 1: Primeiros povoadores de Portugal;
  • Capítulo 2: Primeiras cidades;
  • Capítulo 3: Primeiros reis;
  • Capítulo 4: Portugal antes dos romanos;
  • Capítulo 5: Portugal em tempo dos romanos;
  • Capítulo 6: Portugal em tempo dos godos;
  • Capítulo 7: Portugal em tempo dos mouros;
  • Capítulo 8: Portugal em tempo dos leoneses e do rei D. Paio;
  • Capítulo 9: Portugal em tempo de Castela.

2º livro

  • Capítulos 1-5: Vida do Conde D. Henrique e princípio da restauração deste reino.

3º livro

Capítulos 1-14: Vida e feitos heróicos d’El Rei D. Afonso Henriques

 

É de notar que Fernão de Oliveira parece seguir o mesmo estilo das fontes em que se baseou e nelas incluem o Livro de Linhagens e a Primeira Crónica Geral de Espanha. Sendo essas duas obras indispensáveis para a historiografia da Península Ibérica, Franco (2000, p. 156) vai dizer que esta última serviu “em grande medida [a]os objectivos programáticos da obra oliveiriana”; e dos Livros de Linhagens, Fernão de Oliveira buscou

informações sobre as grandes famílias e figuras do reino de Portugal, para esclarecer questões de heráldica e para confirmar conclusões do historiador sobre a autonomia das instituições religiosas de Portugal em relação aos reinos vizinhos (FRANCO, 2000, p. 157).

Parece então que na História de Portugal, contrariamente ao modelo apresentado pelos cronistas dos primeiros reis da Dinastia de Avis, no século XV, cujas narrativas se concentravam na figura do indivíduo real, Fernão de Oliveira compôs sua obra baseado numa tradição da historiografia antiga sem seguir aqueles cronistas que o antecederam diretamente. No entanto, por ser esta uma pesquisa que faz parte de um trabalho maior ainda em andamento, a questão aqui apresentada traz apenas algumas considerações iniciais.

NOTAS

Segundo informações de Franco (2000, p. 155), Oliveira preferiu utilizar a obra castelhana escrita por Afonso X e não a versão final, conhecida como Crónica Geral de Espanha de 1344.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CINTRA, Luís Filipe Lindley. Edição Crítica do texto português da Crónica Geral de Espanha de 1344. Imprensa Nacional -Casa da Moeda: Lisboa, (1951-1990).

FRANCO, José Eduardo. O mito de Portugal. A primeira história de Portugal e a sua função política. Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d’Orey: Lisboa, 2000.

KRUS, L. Crónica Geral de Espanha de 1344. S. v. LANCIANI, Giulia e TAVANI, Giuseppe (Orgs.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa . Lisboa: Caminho, 1993.

MATTOSO, José. Edição Crítica do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Academia das Ciências: Lisboa, 1980.

MATTOSO, José. A transmissão textual dos livros de linhagens. In: FARIA, Isabel Hub (Org.). Lindley Cintra. Homenagem ao homem, ao mestre e ao cidadão. Lisboa: Cosmos/FLUL, 1999, p. 565-84.

PIMPÃO, Álvaro J. da Costa. Idade Média. 2. ed. Coimbra: Atlântida, 1959.

 

 





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