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Concordância verbal em português arcaico: um olhar descritivo sobre a documentação notarial

Pedro Daniel dos Santos Souza (PPGLL/Ufba)

Resumo:a partir de um corpus constituído por documentos notariais do Noroeste de Portugal e da região de Lisboa, neste artigo busca-se investigar a variação da concordância verbal no período arcaico da língua portuguesa, tendo em vista a descrição dos contextos lingüísticos que favorecem a presença/ausência de marca explícita de plural na relação SN sujeito e verbo.

Palavras-chave:Português arcaico, concordância verbal, variação.

Abstract:basead on a corpus composed by notary public documents, from Northwest Portugal and Lisbon region, this paper intents to search the verbal concordance variation in the Portuguese Language Archaic Period, focusing to describe linguistic contexts which promove the presence/absence of the explicit plural marks in the NP subject-verb relation.

Key-words: Archaic Portuguese, verbal concordance, variation.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A concordância verbal em português tem sido o fenômeno lingüístico mais investigado nos últimos anos, sobretudo sob a perspectiva da teoria da variação e mudança de orientação laboviana. Esses trabalhos, que têm priorizado uma investigação sincrônica, buscam, sobretudo, observar esse fenômeno no português brasileiro (PB), visando demonstrar se o que tipifica essa variante decorre de derivas antigas ou resulta das peculiaridades sócio-históricas que condicionaram sua formação.

Sob outra perspectiva, alguns trabalhos têm focalizado a dimensão diacrônica, histórica, abrindo “trilhas” para a realização de outras pesquisas que analisem a concordância verbal a partir de um corpus representativo da documentação medieval portuguesa como sugere Mattos e Silva (1986), a fim de tornar mais preciso o conhecimento do português no caminho de sua história e, conseqüentemente, possibilitar uma visão mais completa desse fenômeno lingüístico.

O caminho a ser percorrido passa pela reconstrução diacrônica no interior das estruturas da língua portuguesa, buscando, através de uma história interna, descrever e explicitar ou explicar o encaixamento no interior das estruturas e a difusão da variante em mudança pela estrutura. Refletindo sobre essa questão, torna-se evidente a necessidade de investigar o comportamento da variável em questão – presença/ausência de marca explícita de plural na relação SN sujeito e verbo – em fases anteriores à normatização da língua portuguesa, ou seja, o período arcaico.

Sendo assim, a partir de um corpus constituído por documentos notariais do Noroeste de Portugal e da região de Lisboa, nesse artigo procura-se investigar a variação na concordância verbal no período arcaico da língua portuguesa, o que confirmará ou não o encaixamento histórico da variação da concordância, tópico que tem sido considerado “pedra de toque da gramática do português brasileiro”.

 

DELIMITAÇÃO DE UM PROBLEMA

Observa-se, no PB atual, a coexistência de um sistema de regras de concordância que prevê, de forma idealizada, que falantes cultos deverão realizar a concordância de número entre o sujeito e o verbo da oração e outro sistema de regras facultativas que conduz a perdas das marcas formais de concordância, podendo chegar aos limites da simplificação as regras de concordância. Em contrapartida, “afirma-se sempre que o português europeu mantém o conjunto de regras em causa de forma categórica” (MATTOS E SILVA, 1998b, p. 165). Essa situação, ou seja, a divergência sintática entre essas duas variedades da língua portuguesa, tem sua razão nas histórias particulares de cada uma.

No que diz respeito ao PB, trabalhos desenvolvidos com base nas teorias e métodos de orientação laboviana chegaram a conclusões diferentes quanto ao estudo dessas regras ou ausência delas. As divergências interpretativas – mudança ou variação estável – decorrem de vários aspectos do problema, discutidos e analisados, rigorosamente, segundo as teorias e métodos que seguem os pesquisadores (NARO, 1981; GUY, 1986).

Teorias lingüísticas recentes permitem afirmar que essa característica marcante da sintaxe brasileira é uma das conseqüências da direção tipológica do português do Brasil, que vem sendo classificado como língua de proeminência tópica, do que decorre, entre outras características de sua sintaxe, a perda da concordância. Em contrapartida, o português europeu (PE) seguiria outra direção, o que reforçaria a manutenção das regras de concordância e outras características sintáticas próprias à variedade européia (DUARTE; FARIA, 1989). No entanto há ainda muito a ser explorado no PE, sobretudo o estudo da sintaxe de suas variantes faladas, principalmente suas formas regionais, de falantes não ou pouco escolarizados (MATTOS E SILVA, 1998b). São essas questões que evidenciam a necessidade de “[...] uma volta pelo passado remoto do português, tanto europeu como brasileiro, para verificar se dele se pode depreender informação histórica que possa fornecer elementos para melhor explicitar a realidade atual” (MATTOS e SILVA, 1998b, p. 167).

 

AGORA, O PORTUGUÊS ARCAICO

Conflito de ‘olhares’: visão ‘preçeitiva’ versus visão descritiva

A primeira formulação prescritiva da língua portuguesa – a Grammatica da lingua portuguesa de João de Barros (BUESCU, 1971, p. 291-368) – data da primeira metade do século XVI, mais especificamente o ano de 1540, embora os primeiros documentos em português, que estabelecem o surgimento do período arcaico, sejam de inícios do século XIII, ou da segunda metade do século XII (MARTINS, 2001).

É justamente a Grammatica da lingua portuguesa de João de Barros, impressa por Luis Rodrigues em Lisboa, no ano de 1540, e dedicada ao “príncipe, nósso senhor” (BUESCU, 1971, p. 292), que inaugurará uma visão prescritiva sobre a língua, já que a Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão d’Oliveira (TORRES; ASSUNÇÃO, 2000, p. 79-155), impressa por German Gallarde em Lisboa, no ano de 1536, desenvolve uma perspectiva predominantemente descritiva, no sentido atribuído pela lingüística moderna.

A visão decididamente “preçeitiva”, ou prescritiva, de João de Barros pode ser observada logo no prólogo de sua Grammatica ao definir “gramatica e suas pártes” e ressaltar que as abordará “nam segundo convém à órdem da Gramática especulativa, mas como requére a preçeitiva” (BUESCU, 1971, p. 294). Seguindo essa linha de pensamento, João de Barros já apresenta a concordância verbal como uma regra categórica, não dando margens para um uso variável: “Tem máis o nome u â a concordânçia quando está em o cáso nominativo, que [h]á-de convir com o vérbo em número e pessoa, como quando digo: eu amo” (BUESCU, 1971, p. 351).

A partir dessa posição assumida por João de Barros, verifica-se que, desde o início de sua tradição gramatical, a língua portuguesa vinculou-se a um ideal prescritivo que se estenderá ao longo dos séculos. Opondo-se a essa perspectiva prescritiva, a análise de textos anteriores do português, particularmente aqueles da época antes do estabelecimento das normas gramaticais durante o período clássico do século XVI, tem mostrado ocasionalmente falta de concordância na relação entre o SN (sintagma nominal) sujeito e o verbo, conforme ressaltam Naro e Scherre (1999).

O primeiro a documentar a variação na concordância durante o período arcaico foi Joseph Huber ([1933]1986) em sua Gramática do português antigo. Ao explicitar as relações de concordância, inicialmente, Huber destaca que “[...] é evidente que o sujeito e predicado concordam em gênero e número: A sua face era amarella (Euf. 363). O padre e a madre aviã com ella grande plazer (Euf. 358)” ([1933]1986, p. 280). Conforme Huber explicita, somente o contrário é que chama a atenção. Diante disso, passa-se a apresentar essas situações que “chamam a atenção”. Assim, embora ressalte a regra categórica, Huber apresenta exemplos em que não há a aplicação da regra prevista. Após enumerá-los, busca-se uma explicação para esse fenômeno lançando mão de critérios semânticos e sintáticos, como a questão da posposição do sujeito. Embora de forma ainda “tímida”, observa-se uma primeira tentativa de explicitar o mecanismo da concordância verbal sem a visão “preçeitiva” da tradição gramatical, abrindo portas para uma reflexão metalingüística mais detalhada, coerente, na medida do possível, com uma visão que considera a variação lingüística.

A análise descritiva desenvolvida por Mattos e Silva (1989) sobre a versão trecentista dos Quatro Livros dos Diálogos de S. Gregório – 30% do texto – permitiu que se confirmassem as informações de Huber; mas, além disso, que a distância do sujeito em relação ao verbo e não apenas a posposição interferia na aplicação da regra geral.

Naro e Scherre (1999, 2000), por sua vez, buscando uma explicação para as origens do português brasileiro, realizaram um estudo em oito textos do português medieval e encontraram mais de 200 ocorrências de formas verbais de terceira pessoa do singular em contextos em que a norma exige obrigatoriamente formas plurais de terceira pessoa. Após a codificação de cada um dos casos de ausência da marca explícita de concordância de acordo com as categorias que, segundo os pesquisadores, são estatisticamente válidas hoje no Brasil, os dados foram submetidos ao programa de regra variável VARBRUL. A partir da análise dos dados, argumenta-se que os fatores controladores da variação no português medieval são os mesmos que controlam a variação no PB, uma vez que “as restrições variáveis que governam o uso da concordância não mudaram com o passar do tempo, somente mudou o peso do input” (NARO; SCHERRE, 1999, p. 11).

A documentação notarial – um olhar descritivo

Segundo Martins (2001), o uso de documentos não-literários como fonte de informação lingüística pode produzir resultados tão relevantes no domínio da sintaxe quanto nos da fonologia, morfologia ou léxico. Sendo assim, a presente análise utilizou como corpus 22 documentos notariais (de caráter particular) editados por Maia (1986) e 70 editados por Martins (2001). Essa divergência no número de documentos escolhidos para compor o corpus fundamenta-se em duas razões: i) os documentos de Maia (1986) são mais extensos do que os editados por Martins (2001); ii) buscou-se uma simetria relativa entre os documentos escolhidos, levando em consideração o número de linhas.

Os documentos editados por Maia (1986) e aqui analisados encontram-se distribuídos, como salienta a pesquisadora, por duas províncias (do Douro Litoral e do Minho) que compõem a região de Entre-Douro-e-Minho. Já os textos de Martins (2001), além de pertencerem ao Noroeste de Portugal, também representam a região de Lisboa. São documentos provenientes de fundos documentais de mosteiros, principalmente do mosteiro de Vilarinho (Noroeste) e do mosteiro de Chelas (Lisboa).

No corpus analisado, foram encontradas 886 ocorrências de P6, sendo assim distribuídas: 872 (98,4%) exibindo marcas explícitas de plural, enquanto que 14 (1,6%) sem marcas formais. Observou-se também que, em se tratando de textos notariais, carregados de fórmulas e construções cristalizadas, a maioria das ocorrências apresentam estruturas como as que podem ser observadas nos exemplos de (1) a (5), o que corrobora para uma tão baixa freqüência dos contextos favorecedores da ausência de marcas:

  • Sabbham quãtos este testemoy ) o uire ) e léér ouuire ) que donna Sancha Esteuaiz, [...] 137CM (1)
  • Te S temoyas que presentes foro ) : frey Pedro – 18 Steue ) ez, frey Afonso da ordin dos preega-dores; Fernam da Veiga e eu Johã – 19 Perez, tabaliõ de Miragaya, [...] 142CM
  • Os que a esto forõ presentes: BééytoPeriz, alfaiame, Steuã Miguéez, Martin F(.....)dj, al – 17 fayates de Bragáá, e Johã Dominguiz, clerigos do dito juyz. 156CM
  • Conhoscam quantos este prazo uire ) e léér ouuire ) que eu Stevam anes Abbade do monsteiro de Cety / 2 e o Priol e cõuento desse logar. ffazemos [...] 16AM1
  • Sabhã todos que en pressença de mj ) ffrancisco gíraldez publico tabaliõ de Gujmarães e das testemunhas que Adeantesom scritas ena crasta / 2 de santa Maria [...] 50AM

Além disso, excluindo as ocorrências que não exibem as marcas formais, verificou-se que, em 51,8% dos casos, a oposição entre as formas singular e plural apresenta o traço menos saliente, ou seja, a diferença entre as formas revela-se apenas pelo traço mais nasalidade que, no corpus analisado, é marcado de duas maneiras: a) uso do ~ (til); b) uso variável de uma consoante nasal m~n. Tendo em vista que tanto Maia (1986) quanto Martins (2001) utilizam como critério de transcrição o uso do til para marcar um sinal de nasalidade sobre as vogais, sendo este colocado imediatamente anterior à consoante nasal etimológica, coloca-se uma questão: até que ponto as ocorrências de formas menos salientes não reproduzem uma interferência do editor? Não se pode deixar de ressaltar que, enquanto 40,7% das ocorrências menos salientes exibem o uso variável de uma consoante nasal m~n – o que não deixa dúvidas sobre a análise –, 59,3% apresentam o ~ (til) como marca formal que estabelece a oposição. Os exemplos apresentados abaixo elucidam a questão aqui posta:

  • In Dei nomine, amen. Sabhã todos quantos esta mãda e testame ) to uire ) que eu Steuã – 2 Pááiz, [...] 142CM
  • Sabbham quãtos este prazo uyrem e léér ouuire ) que nos Pedro Esteuayz, caualey – 2 ro, e mha molher Tareiga Me ) diz de nossas liures vóóntades e ssen cons(t)re ) gime ) to – 3 ne ) hu ) u, queremus, damus e houtorgamos [...] 138CM
  • E depos morte dessa pesoa, as ditas quebradas cõ toda ssa benfeytorya – 14 deue ) ficar ao dito mone S teyro liures e en paz e ssen cõtenda ne ) hu ) a. 144CM

Enquanto que em (7) o uso da consoante nasal –m deixa explícita a marcação da oposição pelo notário, em (6), sobretudo se associado a (7), e (8), tal oposição pode ter sido resultado da interferência do editor. No entanto como as pesquisadoras ressaltam que usaram como critério de transcrição o uso til como desenvolvimento de abreviatura tal problema fica resolvido.

No que diz respeito aos contextos mais salientes, ou seja, aqueles cuja oposição se dá não apenas pelo traço mais nasalidade, verificou que, em 69,8% das ocorrências, utiliza-se o ~ (til) para marcar esse traço, enquanto que 30,2% exibem uma consoante nasal (m~n). No entanto as generalizações feitas a partir desse resultado não comprometem a análise, visto que a marcação de plural não se dá apenas pelo traço mais nasalidade, como se pode evidenciar nos exemplos abaixo:

  • [...] e na qual carta era cõtiu – 8 do que elles derã sente ) ça, da qual sente ) ça dizya a carta que sse pagarõ as – 9 partes [...] 152CM
  • E / 9 estauan (sic) eanes ditu tedon é outru Steuan eanes de sar/ 10duira subre mal e forza que fezeru ) e faze ) nas nossas herda/ 11des de mazaeira e de sangaedu e ssubre que esses dauanditus / 12 fillus de Pedru brandu ) ueeron ou Moesteiru de Pedruso / 13 e britaru ) a porta da Clausura cu ) armas e cum oméés e bri/ 14taru ) á ádega e a tulha e a camara du abbade e fillaru ) pã / 15 uiu. carne. e ceuada. cantu quiseru ) e subre que us dauã/ 16ditus Esteuam eanes e outru Steuan eanes britaru ) / 17 a porta du Moesteiru e curreru ) per u coutu cu ) caua/ 18llus e cum armas (?) e mataru ) uu porco que comeru ) e gallí/ 19as e ceuada é outras cousas [...] 9AM

Os dados apresentados em (9) e (10) permitem verificar que oposições mais salientes não deixam dúvidas quanto à posição dos notários em estabelecer a diferença entre singular e plural, como pode ser observado nos pares deu~ derã , pagou~pagarõ, fez~fezeru ) , ueo~ueeron, britou~britaru ) , fillou~fillaru ) , quis~quiseru ) , correu~curreru ) , matou~mataru ) , comeu~comeru ) . O mesmo não se pode afirmar quando se trata de contextos menos salientes como chama~chamã, deue~deue ) , auya~auyã, sabha~sabhã, era~erã, tíj @ nha ~tíj @ nhã , pussua~pussuã, deuja~deujã, conosca~conoscã, fezesse~fezesse ) .

Além da saliência fônica e do tipo de marca formal de plural, outro fator que possibilita algumas reflexões é o parâmetro pro-drop. Do total de ocorrências de P6, 40,5% não apresentam sujeito expresso, fazendo-se necessário o uso das marcas formais, uma vez que as mesmas possibilitam a retomada do sujeito. Apenas em duas ocorrências em que se verificou a ausência das marcas de plural no verbo o sujeito é nulo. Esse comportamento pode ser um dos indicadores para a explicação da perda de marcas explícitas no PB por um lado; e a retenção das mesmas no PE, por outro, já que esta tem sido considerada uma língua de sujeito nulo em oposição àquela. Somente uma análise mais cuidadosa dessa variável possibilitará resultados mais precisos, tendo sempre em vista que qualquer generalização está sujeita às limitações impostas pelo próprio corpus, sobretudo em estudos de natureza diacrônica.

Quanto à ocorrência de formas verbais na terceira pessoa do singular, alguns dados estão em contextos considerados facultativos à aplicação da regra geral de concordância de acordo com a prescrição gramatical, como pode ser observado nos exemplos (11) e (12).

  • [...] o qual herdame ) – 14 to a my emtregou o dito Pedro Heanez e a dita ssa molher; o qual herdame ) to eu reçe ) – 15 by para o dito moesteyro. 137CM
  • E pos uossa morte fiqueó Casal e o meio barco liure é en paz / 8 áo Monsteiro. 39AM

Em (11), a forma verbal emtregou relaciona-se como um sujeito composto posposto (o dito Pedro Heanez e a dita ssa molher), o que justifica a ausência da marca de plural, uma vez que o verbo concorda com o núcleo mais próximo a ele. O mesmo contexto evidencia-se em (12) no que diz respeito à forma verbal fique.

Já em (13), a forma verbal fique, com sujeito composto anteposto (o dito casal e emplazamento cõ toda sa be ) feytoria), ocorre em um contexto em que a norma exige obrigatoriamente formas plurais de terceira pessoa.

  • [...] depos morte do dito Johã Paris e da dita sa molher e da dita outra pessoa o dito casal e empla – 13 zamento cõ toda sa be ) feytoria fiqueen paz e en saluo aa dita capela. 159CM

Retomando a variável saliência fônica, verificou-se que, no corpus analisado, dos 14 dados sem marcas explícitas de plural, 12 ocorrem em contextos menos salientes. No entanto o número de ocorrências é muito pequeno para permitir uma reflexão mais relevante sobre o comportamento dessa variável. Sem dúvida, é preciso testá-la em um corpus mais representativo da documentação medieval portuguesa.

 

FINALIZANDO

Justificar a importância da produção medieval não-literária para os estudos de sintaxe histórica parece ser uma tarefa muito árdua, sobretudo porque a sua relevância para a pesquisa de informação de natureza sintática não é tão óbvia. Atributo que se deve ao caráter desses textos, como sua estrutura formular que segue modelos da tradição jurídica latina. Mesmo assim, a observação sistemática dos documentos notariais, no nível da sintaxe, possibilitará entrever outras vias para a compreensão da constituição histórica do português. Certamente, os dados aqui apresentados, e reflexões que suscitaram, revelam apenas uma ponta do iceberg.

Embora o número de ocorrências de P6 sem marcas explícitas fosse muito baixo, os dados possibilitaram alguns questionamentos quanto às variáveis que interferem no fenômeno em análise: será o parâmetro pro-drop responsável pela retenção da marca formal de plural no PE? Até que ponto o tipo de texto (nesse caso, notariais) favorece a aplicação da regra de concordância? Qual a relevância da saliência fônica para a compreensão do fenômeno lingüístico?

Os dados aqui apresentados mostraram que em contextos mais salientes, e mesmo nos menos salientes marcados pela inserção de uma consoante nasal (m~n), é evidente a percepção do notário da oposição entre as formas singular e plural. Da mesma maneira, a ausência do sujeito, favorecia, no corpus analisado, a recuperação do mesmo através das marcas formais de plural dos verbos. Apenas o aprofundamento das questões aqui levantadas num corpus mais representativo do período arcaico permitirá generalizações mais precisas sobre o fenômeno da concordância verbal, levando em consideração as próprias limitações que estudos diacrônicos impõem ao pesquisador.

Sem dúvida, a variação na concordância verbal no período arcaico da língua portuguesa não é aleatória, mas motivada por fatores de ordem semântica, sintática e morfo-fônica, além de fatores extralingüísticos, como a natureza dos textos e o tempo. Este artigo representa o passo inicial para a compreensão desse fenômeno lingüístico sob a dimensão diacrônica.

NOTAS

1. A numeração apresentada corresponde ao número do documento do qual fora retirado o exemplo, enquanto que as iniciais maiúsculas dizem respeito à edição (CM – Clarinda de Azevedo Maia; AM – Ana Maria Martins).

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