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Central do Brasil e Hotel Atlântico: a estética da morte e a fragmentação subjetiva na irreversibilidade da globalização

 

Maria Carlota de Alencar Pires

Doutorado em Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

carlotapires@yahoo.com.br

 

Resumo

Discutimos neste artigo o novo cenário sociocultural e político no último quartel do século XX, focalizando o fenômeno da globalização como paradigma de exclusão e contradições. Para a nossa análise, tomamos o cinema e a literatura produzidos nas últimas duas décadas do século passado, atendo-nos às narrativas de Hotel Atlântico, do escritor João Gilberto Noll, e Central do Brasil, do cineasta carioca Walter Salles Júnior. Observamos que essas duas narrativas movem-se por meio de dois roteiros comuns: a viagem e a morte. Ambos colaboram para a formação de uma estética fragmentária, como metáfora de um Brasil igualmente fragmentado.

Palvras-chave: Viagem, Morte, Paradoxos, Identidade, Desigualdade, Globalização.

Abstract

In this text we talk over the new socio-cultural and political scene of the twentieth century's last quarter, focusing the globalization phenomenon as a paradigm of exclusion and contradictions. For our analysis, we examined the movies and fiction produced over the two last decades of that century, focusing on the tales of Hotel Atlântico by writer João Gilberto Noll and Central do Brasil by filmmaker Walter Salles Júnior. We observe that these two tales move on through two common scripts: trip and death, both contributing to the buildup of a shattered aesthetics as a metaphor of an equally shattered Brazil.

Key-words: Trip, Death, Paradoxes, Identity, Inequality, Globalization.


Procuramos analisar neste artigo pontos de contato entre o romance Hotel Atlântico (1989), de João Gilberto Noll, e o filme Central do Brasil (1998), de Walter Salles Júnior, obras em que os temas da viagem e da morte compartilham o mesmo foco de interesse. Rastrear aspectos em torno do cenário sociocultural, nas últimas duas décadas do século XX, nos pareceu um caminho instigante para a nossa abordagem sobre os sintomas negativos da globalização, cujos meandros estão situados, no filme de Salles, em dois diferentes eixos de ação: o Rio de Janeiro e o interior nordestino. Já no romance de Noll, a lente rascante de uma escrita fílmica detecta esses efeitos globalizantes, de maneira muito rarefeita, entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.

O filme, tanto quanto o livro, mostra que o desenraizamento e a morte não são simples metáforas de uma estética árida sobre o Brasil contemporâneo, mas, antes, se apresentam como sintoma da falência do projeto identitário em que o sentido de nação se diluiu em meio ao novo paradigma da globalização, no último quartel do século XX.

No romance de Noll, a trajetória trânsfuga de um narrador anônimo compreende um roteiro nada turístico, à beira da estrada de um Brasil precário. Ele foge de algo do qual não tem a exata noção, menos ainda o leitor, que se vê arrastado vertiginosamente pelas imagens de uma pós-modernidade tortuosa, como também tortuosa é a viagem realizada por esta subjetividade fragmentada.

Na tela de Walter Salles, o roteiro não é muito diferente, visto que as trajetórias do menino Josué e da personagem Dora descortinam os mesmos resíduos do Brasil dos 1980, às margens de uma globalização insólita. A viagem, em ambas as narrativas, delineia agudamente os profundos abismos sociais em um mesmo espaço geográfico, porém economicamente fragmentado. Essa viagem é a mimese do desenraizamento, que no filme de Salles costura dois pontos de ação: o sudeste, ressaltando o contraditório de imagens caóticas da cidade grande, e o nordeste, com suas crenças e festividades populares. No romance, a viagem ocorre também entre dois pólos: o sudeste e o sul do Brasil, para onde o primeiro aponta. Nesse roteiro de Noll, a questão da nacionalidade torna-se problemática, porque encontramos o périplo de um ex-ator, desempregado, sem vocação para se fixar no tecido-nação, e nele buscar um sentido de permanência, de identidade cultural.

Ao mergulharmos nessas duas narrativas, diferentes em forma e muito semelhantes em fundo, temos a sensação de que nada mudou em um País “gigante pela natureza”, porém minúsculo em justiça social e desenvolvimento. A opressão, o desemprego, a pobreza dos que habitam à margem desse país-gigante são as mesmas lâminas que cortam transversalmente essas duas narrativas, operando a separação de um Brasil muito pobre daquele sintonizado com o novo paradigma da globalização.

Em Central do Brasil, Walter Salles focaliza imagens escurecidas, quase como num documentário em preto e branco, para dizer que este Brasil é mesmo precário, apartado do colorido das novas mídias globais. O cineasta parece buscar na crença popular um sentido de redenção sobre a identidade nacional fraturada. O menino Josué representa esta reconciliação com as origens perdidas, visto que ele deseja ir em busca do pai, Jesus. Reencontrar as origens paternas significa fazer o caminho de volta, retornar como o filho pródigo à casa paterna. Josué, assim, realiza uma trajetória invertida, abandonando o global para retornar ao seu local de origem. Com a ajuda de Dora, Josué se evade do centro nervoso de uma metrópole pretensamente globalizada, que se lhe torna hostil, mesmo sem ter consciência deste fato, a exemplo do outro Josué, o do filme A vida é bela (1997), de Roberto Benigni. Em Central do Brasil, Josué escapa dos tentáculos perversos da caótica polis, girando como engrenagens afiadas em torno dos vários outros josués, que transitam anônimos no terreno minado da pós-modernidade: subjetividades fragmentadas, que nem sempre escapam, como os meninos Josué e Josué, desses tentáculos. São os desassistidos de um mesmo filme, no qual transitam como figurantes anônimos, sem cachê, sem “queche”, sem “quentinha”.

Com efeito, no filme de Salles, essas subjetividades em estado de urgência, em meio ao caos urbano, configuram o caráter de exclusão do tecido-nação, enquanto que no romance apresentam-se como antiperspectiva de identidade cultural, inscrita na trajetória de um Eu-fragmento à deriva.

Central do Brasil mostra que a crença popular é o aporte para alguma tentativa de libertação, de salvação. Tal manifestação sucumbe à vontade política, bem como à vontade dos homens de se colocarem ao lado da vontade divina, não apenas como solução, mas, sobretudo, como sublimação. Nessa ótica, Walter Salles registra imagens verídicas de um grande teatro vivo, que opera a penitência como forma de catarse, diante da falta de uma hibres terrena. A penitência, então, ocupa o lugar da catarse e passa a se manifestar como promessa, alargando, ainda que momentaneamente, os horizontes de expectativas dessas subjetividades agônicas para fora da exclusão e da condição do Eu-fragmento.

Em Hotel Atlântico, o personagem-narrador é um ex-ator de telenovelas, decadente e desempregado, à procura de um lugar, de um re-conhecimento que o transporte de volta às suas origens. No entanto, essa necessidade de busca pela origem se fragmenta entre o desejo de fugir de si mesmo e a vontade de continuar representando um papel no jogo de ‘estar no mundo’ sem que o mundo do capitalismo tardio esteja, precisamente, nesse ator sem acrópole.

Mas, voltando ao filme, e como nos diz Vera Follain de Figueiredo (1998), em artigo intitulado “Central do Brasil: em busca da terra prometida”, vemos que a problemática da nação persiste como uma condição fundamental para se compreender os meandros obscuros do cenário sociocultural e político, ligando aí o trânsito de subjetividades à margem do Brasil central, no último quartel do século XX:

No final do século XX é novamente o Cinema que toma posição para reorganizar o imaginário brasileiro. Diante do processo de desinvenção da nação, desencadeado pela estratégia globalizadora do atual estágio do capitalismo, a narrativa cinematográfica tenta inventar outras formas de solidariedade que ocupem o lugar deixado pelo afrouxamento dos laços nacionais. É o que podemos perceber em Terra Estrangeira e em Central do Brasil de Walter Salles Júnior. (grifo meu)

Com efeito, o cineasta, não por acaso, redimensiona e atualiza a problemática do projeto de afirmação da identidade nacional, como também ocorre no início dos 1990, registrado nas imagens de Terra estrangeira (1995). Nesse filme de Salles, o movimento migratório é a metáfora viva da falência de um projeto de “reconstrução nacional” que levou centenas de brasileiros a buscarem uma saída de emergência: o aeroporto. As personagens Alex e Miguel realizam uma viagem a Portugal sem passagem de volta ao Brasil, cultivando a esperança de se fixarem no lugar do Outro, e nele ascenderem economicamente. Alex, uma paulistana que vai tentar a vida em Lisboa e acaba trabalhando de garçonete, mantém um relacionamento angustiado com Miguel, que sobrevive como músico, tornando-se viciado em heroína. Em Terra estrangeira, os desacertos do Governo Collor afetam a vida familiar, ao mesmo tempo em que atravessam os desejos subjetivos, acendendo o drama da falência da classe média brasileira. Nessa ótica, Salles discute as conseqüências nefandas da política-econômica do Governo Collor, que provocou um momento de diáspora, além da profunda instabilidade entre as classes no país. Deixar o Brasil significaria para os protagonistas ir em busca de uma vida promissora em terras estrangeiras. Fato que se revela não apenas como negação da identidade nacional, mas, sobretudo, como revelação da absoluta falta de perspectiva em um país falido.

Por outro lado, em Central do Brasil, esse movimento migratório acontece dentro dos limites do território nacional. No contracanto da câmera de Salles, a problemática da seca forja uma diáspora em direção ao centro de uma terra de promessas, cujas benesses se diluem juntamente com a ilusão de se estar no “sul-maravilha”. Ana, Jesus e Dora são diluídos nessa diáspora invisível aos olhos dos que detêm o poder político-econômico.

O trânsito acelerado dos personagens que se cruzam, o movimento genealógico, a morte e a perplexidade diante da fragilidade humana, são alguns dos aspectos de Central do Brasil que coincidem com a narrativa de Hotel Atlântico. Embora sigam roteiros opostos, a viagem se faz presente, em ambas as narrativas, como metáfora do deslocamento de personagens à deriva, inseridos em um movimento genealógico não linear. É interessante observar que essa antiga problemática existencial – a busca pelas origens – é remontada, no romance de Noll, dentro de um contexto urbano, em que a fragmentação ontológica e a pulverização da identidade cultural se antagonizam radicalmente ao novo projeto nacional do governo Collor, como vimos em Terra estrangeira.

O narrador de Hotel Atlântico vivencia, na sua viagem, encontros insólitos e fugazes, como próprio daqueles que estão à deriva. O ex-ator, ao chegar de táxi na Rodoviária Novo Rio, do mesmo modo que Dora e Josué em Central do Brasil, abre num banco de espera um mapa que comprara há dois dias, escolhendo aleatoriamente seu roteiro para o sul do país. A viagem transcorre numa tensão entre o desejo de seguir em frente, e o impulso de fugir de um incômodo existencial, impregnado neste andarilho anônimo. O trânsito vertiginoso, por entre fronteiras sulistas, o conduz por caminhos tortuosos, que vão compondo cenários a céu aberto, cortado pela claridade do sol de inverno.

Em Central do Brasil, Dora e Josué viajam para escapar da morte. Eles protagonizam uma fuga, em que são compelidos a tomar a estrada. A viagem, tanto no filme quanto no livro, é o aporte simbólico para a circunscrição do movimento genealógico, conduzindo Josué ao encontro de sua identidade familiar, enquanto que no romance de Noll a genealogia é o fio que liga o ex-ator à sua cidade-natal.

Em Hotel Atlântico, a presença da morte é uma constante, que atravessa a viagem insólita do ex-ator de telenovelas. Primeiro, em Copacabana ele assiste a remoção de um cadáver do hotel, cujo nome é Atlântico, em que irá pernoitar até o momento de sua viagem. Depois, no ônibus, ele se vê diante da morte de Susan, uma americana que se suicida durante o percurso até Curitiba. Ela vivia em estado depressivo, em razão da morte de sua filha de sete anos por afogamento, como noticiariam os jornais na manhã seguinte. Em Central do Brasil, a morte é também o fio condutor para o desencadeamento dos acontecimentos, a partir do atropelamento de Ana, diante do relógio da Estação Ferroviária.

Em sua trajetória de errância, o narrador anônimo de Hotel Atlântico, ao chegar na fronteira entre o Paraná e o Rio Grande do Sul, escapa da morte em uma desabalada fuga de carro, que o leva para uma estrada de terra e de vegetação rasteira. Os flashes e cortes da narrativa nolliana movem o olhar do leitor para dentro de uma incrível tela de Cinema em que as imagens ganham um movimento acelerado, tridimensional. O leitor, que é também espectador, vai adentrando, in media res, por um cenário quase onírico. No entanto, a linguagem perde velocidade no meio do romance, e as imagens, antes aceleradas, agora empurram em câmera lenta o espectador para dentro de caminhos de terra, barro, pedra, mato. Narrador e narrativa fundem-se numa relação telúrica, abrindo brechas paradoxais numa linguagem desacelerada, visto que o moto contínuo sofre um corte. Temos a sensação de que o tempo ali anda mais lento, recusando a morte. Através dessas brechas, vemos outras diásporas, outras subjetividades provisórias, que se movem mais devagar, como se o tempo cronológico resistisse ao passar das horas neste outro lado do Brasil. O ex-ator pega carona numa carroça carregada de abóboras, para escapar também da morte, sob o sol morno do inverno sulista. O final aqui já está próximo.

Dora e Josué também escapam da morte, numa corrida desesperada pelas ruas do subúrbio carioca, tendo como cenário a Avenida Brasil. Nesse fundo cênico, o trânsito é intenso àquela hora do rush, em que por detrás dos outdoors se escondem as mesmas mazelas do descaso governamental, captadas também pelas lentes do cineasta Otávio Bezerra, no documentário longa metragem Uma Avenida chamada Brasil (1985). Nesse filme, Bezerra mostra os rastilhos incandescentes do que ele chama de uma guerra civil em pleno Rio de Janeiro. O tráfico de drogas, a violência ilimitada, o flagelo humano em meio à falta absoluta de condições dignas de sobrevivência na Favela da Maré, permeiam o cenário real de uma avenida chamada Brasil, em meados do governo Sarney.

Em Central do Brasil, Dora e Josué são figurantes deste mesmo cenário de tantas colagens imprecisas. É como se eles estivessem fugindo de uma guerra civil, que não vingou nos 1970, registrada pelas outras lentes da guerrilha urbana, como vemos no filme de Bruno Barreto, de 1997, O que é isso, companheiro?, baseado na autobiografia de Fernando Gabeira, de mesmo título. No entanto, Central do Brasil redimensiona o mesmo país dos anos 70, desprovido de qualquer alento revolucionário. Agora as subjetividades transitam pelo tecido-nação sem malas, sem bagagens, sem ideologias, apenas com o desejo de garantir a própria sobrevivência. Dora e Josué, personagens-trânsfugas, depois de também terem pegado uma carona na boléia de um caminhão, encontram a paisagem árida do deserto nordestino, sob o sol escaldante do verão. É assim que Josué, mesmo apartado de seu pai e órfão de Ana, é colocado a salvo, pela mão de Dora, em sua terra prometida. A trajetória genealógica de Josué configura um caminho de vida, de permanência e retorno às origens. Dora, por sua vez, representa o regresso contraditório ao lugar da exclusão, da diluição identitária e da falta de perspectivas no árido caos urbano.

Por outro lado, o personagem-narrador de Hotel Atlântico, antes do final de sua trajetória, depara-se, mais uma vez, com a presença da morte. Ao chegar na cidadezinha de Viçoso, o ex-ator de telenovelas hospeda-se na casa paroquial, visitada pelo padre local apenas uma vez ao mês. Na manhã seguinte, o caseiro Antônio lhe oferece, depois do banho, uma batina de um padre falecido há três anos, enquanto a irmã Graça lavava as suas roupas muito sujas de barro. O ex-ator encena um caminhar vago pelas ruas, vestido de padre e segurando um bordão feito de tronco. Caminha lento, com o olhar perdido no infinito, como se estivesse desprovido da visão. Mesmo assim, os transeuntes do lugar o cumprimentam, uma criança lhe acena, uma velha ajoelha-se em sinal de respeito. Aqui vemos as cenas de uma mesma religiosidade, que corta o Brasil de norte a sul, ocupando, assim, o lugar da promessa de ordem política. Já perto do final da rua, o ex-ator ouve um choro vindo da última casa. O “padre" vê a porta aberta, resolve entrar. Na casa sombria, uma velha muito enrugada vem ao seu encontro. Diz que a sua irmã está às portas da morte, e Deus o havia enviado ali. O falso padre, mais uma vez, vê a morte diante de si. No leito, a velha moribunda segura um terço entre as mãos, geme e de vez em quando entra em espasmos. Logo depois da extrema-unção, concedida pelo ex-ator, Diva dá o último suspiro.

Com efeito, a condição precária de ambas as viagens é também condição sine qua non para a exposição de imagens em torno de um Brasil falido. São imagens desabridas, descarnadas até, que desvelam um roteiro nada turístico, sobre o panorama nacional depois do Governo Collor. Mesmo assim, o País entrava no processo da globalização com Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995. Um país arruinado, ainda muito distanciado dos avanços tecnológicos propalados, e, ao mesmo tempo, deletado do discurso populista neoliberal do Estado. No entender de Marilena Chauí, o termo ‘populismo’, entre muitas outras conceituações, é caracterizado por uma forma velada de poder, que não se pode ver a olho nu. Assinala Chauí:

Um poder que procura afastar e que opera ativamente para afastar as instituições e os partidos políticos, como formas políticas de organização da sociedade civil, quanto a própria estrutura de organização do Estado, sob a forma mediada dos Três Poderes Republicanos. Pretende operar numa relação direta entre governantes e governados. Um poder pensado e realizado sob a forma da tutela e do favor, em que o governante se apresenta como aquele que detém não só o poder, mas também o saber sobre o social e sobre a Lei, o significado da Lei (...). O governante se apresenta como se estivesse fora do social, como transcendendo o social, na medida em que é o detentor do poder, do saber e da Lei. (CHAUÍ, 1980: 15)

Central do Brasil e Hotel Atlântico são narrativas que nos mostram, em grande-angular, as profundas contradições dos discursos populistas, que também atravessaram o último quartel do século XX, especialmente no que se refere ao Governo Collor. As imagens do filme e do livro se completam, mesmo partidas, e são reveladoras do estado de pobreza do povo brasileiro, habitantes, por vezes, de espaços lúgubres, sempre localizados nos arrabaldes do espaço urbano, a exemplo da casa de Irene, uma professora primária aposentada, vivendo da prostituição e de negócios ilícitos, como Dora. Subjetividades agônicas que também habitam comunidades carentes numa cidadezinha qualquer do interior, como a casa da velha moribunda. As viagens nos revelam, à contraluz, um Brasil desassistido e à margem da globalização e da sociedade de consumo; da política e da cidadania; dos meios de comunicação e da educação. Um Brasil órfão, para utilizarmos a expressão de Vera Figueiredo, relegado à eterna condição de país do futuro. É preciso e urgente uma reflexão a respeito do futuro do país:

O sentimento de orfandade vai ser trabalhado visando a criação de um imaginário de esperança e fé no futuro do país. Futuro que deve ser edificado a partir de uma viagem de retorno à ingenuidade do homem do interior, deixando para trás a perversidade do litoral e a desagregação cosmopolita da cidade. Não é à toa que o personagem menino se chama Josué. O mesmo nome do profeta que conduziu o povo de Israel na travessia do Jordão e na conquista da terra prometida. (FIGUEREDO, 1998: 81)

A lente atenta de Walter Salles capta ainda outros aspectos de um tecido sociocultural corrompido, através da radiografia velada por sobre a falência do projeto de identidade nacional, que não vingou nas duas últimas décadas do século XX, como promessa dos vários governos ditos democráticos. Além disso, Salles sinaliza os efeitos perversos da globalização, que Noll já rastreara uma década antes.

No filme, o cineasta aborda, em um mesmo roteiro, temas como o analfabetismo, a violência urbana, a miséria, a prostituição, o tráfico de crianças e o êxodo rural. Mazelas que sacodem um grande terreno impoluto da globalização no Brasil. No livro, o analfabetismo aparece, ainda que de relance, na história da avó do enfermeiro Sebastião. Ao chegarem finalmente a Porto Alegre, depois de abandonarem a clínica do Dr. Carlos, Sebastião e o ex-ator seguem no fusca azul até o endereço da avó que ele não via há vinte anos. O papelzinho amarelecido pelo tempo indica o caminho da casa de madeira azul, que agora era um prédio de quatro andares, recém construído. Sebastião explica que nunca havia trocado cartas com a avó, analfabeta e com dificuldade de se comunicar com os outros. Ela trabalhara de faxineira num hotel durante muitos anos, era muito fechada em si mesma, poucos entendiam o que falava, e nunca solicitara a ninguém o favor de lhe escreverem uma carta ao neto. Sebastião, assim, permaneceu apenas com a única lembrança da avó analfabeta, registrada pela própria caligrafia, quando escreveu o endereço num minúsculo papel gasto pelo tempo.

Em outro sentido, o fenômeno da globalização apresenta-se, em Central do Brasil, de maneira diluída, tomando como parâmetro o conceito mais comum de globalização, centrado no poder econômico, que incentiva a implementação de recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados, direcionados à troca e ao controle de informações, a exemplo da INTERNET, como instrumento emblemático de unificação das nações. Para Zigymunt Bauman, a globalização é mais do que um sentido de pós-modernidade, em que as novas mídias se afirmam como vetores de aceleração das informações científicas para o progresso humano. Ela é, sobretudo, um processo irreversível:

Globalização está na ordem do dia. Uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica. Uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, globalização é o que devemos fazer se quisermos ser felizes. Para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, globalização é o destino irremediável do mundo. Um processo irreversível. É também um processo que nos afeta, a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo ‘globalizados’ e isso significa basicamente o mesmo para todos. (BAUMAN, 2000: 7)

Com efeito, as novas tecnologias da chamada globalização revelam-se, na narrativa de Salles, de maneira insólita. O espaço da estação Central do Brasil, que compreende o embarque e desembarque das várias linhas ferroviárias, ligando os subúrbios do Rio de Janeiro, é o lugar de milhões de subjetividades agônicas. Elas se cruzam anônimas, vertiginosas, cheias de desesperanças, indiferentes ao líquido corrosivo da pós-modernidade, que as arrasta para o fundo escuro de um submundo insuspeitado, por entre os trilhos da Estação. As subjetividades agônicas, desta polis insólita, não possuem acesso à forma mais elementar de comunicação à distância: a carta escrita à mão. Elas carregam o analfabetismo como forma de domesticação e subjugação que o poder impõe. Dora representa este poder, cortando as mínimas possibilidades de comunicação, de libertação. Os analfabetos da Central do Brasil são capazes apenas de reconhecer os números do dinheiro e os ponteiros do relógio da estação ferroviária, que indicam a hora para o trabalho, ou mesmo para a falta do que fazer nessa ponta obscura do Brasil. No entanto, “correm para não desistir / dos seus salários de fome / é a esperança que eles têm / nesse filme como extras / todos querem se dar bem”, como diz a letra de Cazuza no filme Um trem para as estrelas (1987), de Cacá Diegues. Nesse filme, vemos o desenrolar de uma tortuosa trajetória de um jovem saxofonista, que parte em busca da namorada e acaba envolvido no submundo do crime.

É interessante observarmos, através dos filmes, que no contexto dos 1980 as novas mídias, assim como a entrada da tecnologia global no Brasil, parecem ter contribuído para o aumento das desigualdades entre as classes, gerando sérias contradições no bojo sociocultural do pós-ditadura militar. Ainda assinala Bauman:

A globalização tanto divide como une. Divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do Globo, junto com as dimensões, colocado em movimento um processo localizador de fixação no espaço. Conjuntamente os dois processos, intimamente relacionados, diferenciam nitidamente as condições existenciais de populações inteiras e de vários segmentos de cada população. O que para alguns parece globalização, para outros significa localização. O que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel. A mobilidade galga ao mais alto nível dentre os valores cobiçados – e a liberdade de movimentos, uma mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o principal fator estratificado de nossos tardios tempos modernos ou pós-modernos. (BAUMAN, 2000: 8)

Em Central do Brasil, a globalização é situada no lócus das mínimas possibilidades de acesso à informação, revelando o total apagamento de uma certa escrita, que eles não conhecem de fato: a Constituição Federal. O que está escrito na Lei, sem dúvida, lhes garantiria o direito e acesso à alfabetização, bem como a educação de modo geral. Mesmo assim, os analfabetos usam a escrita de Dora como fio condutor das cartas, que os liga às origens muito distantes, perdidas, como eles, em algum lugar do Brasil. Dora traduz a opressão social ao interromper o destino das cartas, depois de cobrar pelo serviço. Ela é a detentora do poder da informação escrita: metáfora perversa de uma microglobalização, localizada no espaço fraturado da Central do Brasil. Salles revela nesse espaço a engrenagem de uma verdadeira luta de classes, dentro dos mais variados propósitos. Tal estrutura de poder sedimenta as desigualdades, acirrando cada vez mais a violência, que ocorre de maneira passiva ou efetiva. De acordo com Vera Follain de Figueredo, Dora ainda traz outros significados:

Trata-se, porém, de uma mãe sem afetividade, com um comportamento cínico, endurecida na luta pela sobrevivência. Dora é a pátria-mãe sem referenciais éticos em tempo de individualismos acirrados e de descrença nos valores humanísticos. É a pátria-mãe não gentil. Por isso o lugar adequado para o seu trabalho que explora o analfabetismo e o desenraizamento é a estação de trem Central do Brasil, onde circulam milhares de trabalhadores pobres que vieram de diversas partes do país em busca de uma vida melhor e que se radicaram nos subúrbios longínquos da cidade. (FIGUEREDO: 87)

Salles mostra ainda no filme uma estrutura de poder à margem, muito complexa, em que ocorre, num certo sentido, uma atualização do conceito de luta de classes, fixado pelo cimento ideológico do marxismo nas décadas anteriores. Considerando o pensamento de Marilena Chauí como argumentação válida para a nossa abordagem, podemos dizer que o antigo modelo marxista da luta de classes foi corrompido por mazelas de toda ordem, que as ideologias não conseguiram minimizar até o momento, sejam elas de esquerda ou de direita:

Para que a violência da dominação exercida por uma classe surja como natural, inscrita na ordem das coisas, racional e legítima, ou como lugar de direito no exercício da dominação, sem que os dominados tivessem o direito de insurgir-se contra ela, é preciso que seja anulada como violência, e a única via possível consiste em produzir uma imagem unificada da sociedade, com polarizações suportáveis e aceitáveis para todos os seus membros. (CHAUÍ: 28)

Em Central do Brasil, a polarização de poder, assim como as diferenças entre classes subalternas, realizam um diálogo profundo com o espectador, trazendo à tona o esfacelamento de qualquer intenção unificadora de cidadania. O filme de Salles mostra, inexoravelmente, que já não há mais instâncias instauradoras de um Projeto Nacional, que garanta o apagamento de tantas contradições dispersas no bojo social. Os rastros sinistros da globalização parecem mesmo acirrar as diferenças subjetivas, numa luta de classes altamente fragmentada, e já muito longe das intenções panfletárias do marxismo. Central do Brasil evidencia que o fenômeno da globalização não é capaz de reverter um cotidiano esgarçado, atravessando subjetividades em eterno trânsito. No entanto, essas personagens sem papel, diluídas nos meandros do fenômeno global, entram em contato com alguns objetos de comunicação, em rápidos flashes na objetiva de Salles. É como se os meios de comunicação não fizessem parte daquele mundo cru, e ao mesmo tempo, os afetasse sobremaneira.

Na televisão de vinte e nove polegadas, produto de um “grande negócio” de Dora, assistimos no giro dos canais as cenas de um cotidiano igualmente fragmentado. Dora aciona o controle remoto, e as imagens vão se sucedendo. Nelas visualizamos o mundo maravilhoso do consumismo “eletrodomésticoimportado”, um noticiário sobre greve no porto de Santos, "topa-tudo-por-dinheiro”, a cena de um filme qualquer, entre outras. São imagens que denunciam fortemente o apelo para o consumo, para a ilusão de um Brasil moderno. Mas é necessário dizer que a cena da greve no Porto de Santos é o contraditório deste Brasil globalizado, no qual percebemos que nada mudou. Pelo contrário, as greves explodiram no cenário político, no final dos 1990, como metáfora de que algo andou mal, de que o Brasil descarrilhou, saiu dos trilhos de uma política pouco centrada no social, despreparada para receber o fenômeno global. Assinala ainda Bauman:

Uma causa específica de preocupação é a progressiva ruptura de comunicação entre as elites extraterritoriais, cada vez mais globais e o restante da população, cada vez mais localizada. Os centros de produção de significado e valor são hoje extraterritoriais e emancipados de restrições locais. (BAUMAN: 12)

Em última análise, o fenômeno da globalização, no romance de Noll, apresenta-se de maneira ambígua, pois ao mesmo tempo em que as benesses da tecnologia aparecem ainda muito insipientes (lembramos que este narrador é um ex-ator desempregado, ou seja, um excluído do cenário da globalização) tudo à sua volta parece funcionar dentro de uma condição provisória, num mercado de instabilidades emocional e financeira.

Hotel Atlântico atravessa o terreno político e cultural por meio de temas universais, como o sexo, o medo, a solidão, a dor física e moral, a fome, a vida e a morte. São vieses que acompanham a trajetória genealógica de um eu-narrador à deriva, entre dois hotéis chamados de “Atlântico”, os quais também separam o Brasil urbano do Rio de Janeiro, daquele mais agrário, à parte, da região Sul. Agora, este narrador errante caminha lento, como se carregasse estes dois lados do Brasil por sobre os ombros. Por outro lado, em Central do Brasil, as individualidades são atravessadas pelos vieses político-sociais, reduzindo as subjetividades aos instintos mais primitivos, visto que nem o ‘social’ e nem o ‘político’ significam mais a garantia de bem-estar para o todo da sociedade.

Finalmente, nos constantes vaivens de imagens cambiantes no romance fílmico de Noll e na romanesca tela de Salles, captamos os flashes de dor, prazer, pânico, desejo e espanto, que acompanham o percurso tortuoso de subjetividades pulverizadas, sem porto e sem portas para bater à procura de alguém, ou de alguma coisa. Percebemos o Eu-fragmento manco, remanescente à beira do caminho, refletindo um Brasil de cabeça para baixo, decepcionado com a imagem de falência de seu próprio corpo fragmentado, esfacelado. Seu corpo social.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. (2000). Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar.

BEZERRA, Otávio. Uma avenida chamada Brasil. Documentário longa metragem. Rio de Janeiro, 1985.

BENIGNI, Roberto. A vida é bela. Longa metragem. Itália, 1997.

BARRETO, Bruno. O que é isso, companheiro?. Longa metragem. Rio de Janeiro, 1997.

CHAUÍ, Marilena de Souza. (1980). Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna.

DIEGUES, Cacá. Um trem para as estrelas. Longa metragem. Rio de Janeiro, 1987.

FIGUEIREDO, Vera Follain de. (1998). “Em Busca da Terra Prometida”. In: Cinemais. n.15, jan./fev. Centro Cultural Banco do Brasil.

NOLL, João Gilberto. (1989). Hotel Atlântico. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

SALLES, Walter Júnior. Central do Brasil. Longa metragem. Rio de Janeiro, 1998.

SALLES. Terra estrangeira. Longa metragem. Rio de Janeiro, 1995.

 

 

 




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